domingo, 30 de junho de 2019

[0075] Novo conto de Pepita Tristão

NOITE


Sonolentamente virei-me na cama de espinhos de roseira que na Primavera protegeram as rosas vermelhas contra a avidez das crianças, que diariamente  queimam no jardim público o desejo de sonharem com castelos de chocolate e espadas de “chantilly”.

Toquei em tua cabeça e enrolei um dos teus caracóis negros em meus dedos pavorosamente alvos.

Um arrepio percorreu-me o corpo como se o teu cabelo fosse serpente gélida que me deslizasse pelos dedos, braços, seios, envolvesse meu ventre, violando a placidez de meu sono.

Soergo-me sobre o teu acordar espantado e bebo o brilho de teus olhos com o fel de meu desejo, respondo à pergunta que não formulaste com o sarcasmo de minha amargura, recebo o ar que respiras como pontas de estilete, que se alojam em meus pulmões, fazendo o sangue golfar em loucas cavalgadas que me electrizam o corpo.

Tombo sobre os espinhos, ferindo-me, enojada de mim e lamentando-te.

Abro as pernas à dor de te ter sem o prazer de me dar. Sinto a carne rasgada, a pele ensanguentada, e rio da porca da vida que não sonhei.

Semicerro os olhos. Arquejante, acaricio-te a pele sedosa com toda a ternura que a raiva de mim obriga a dedicar-te. Praguejo, em silêncio, contra o mundo, contra a existência, contra a crueldade e contra a minha baixa estima.

Sem amor à vida nem ao universo, sem força para lutar nem vontade de vencer, odeio ser obrigada a estar presente, como os demais, representando quotidianamente a peça da existência na sua amargura, no seu prazer, na intensidade de vivências que nunca mais sentirei.
De novo eu, agora eu mesma, na morte do sono que tudo faz esquecer, sou o fantasma de um ser a que o sofrimento roubou a vida, obrigando-o, por puro sadismo, a continuar fisicamente vivo.

Arrancas uma rosa vermelha da jarra que orna o quarto e entregas-ma, com amor. Beijas-me, com paixão. Correspondo...

Desesperada, olho em volta. Vejo uma pequena adaga dourada, sobre a mesa de cabeceira... uma adaga cravejada de diamantes, que me poderá devolver a vida.

Liberta do amplexo, compreendo que, mais uma vez, a imaginação me levou longe demais... é apenas a aliança que ontem à noite colocaste no meu anelar...