domingo, 21 de junho de 2020

[103] Pepita Tristão e um terror em pontas

Pepita Tristão
A LENDA DE PÊRO BOI


Era uma vez uma linda menina de olhos cor do céu e longos cabelos louros que lhe escorriam pelos ombros em cachos de seda brilhante...

Era assim que começava a maior parte das histórias que minha avó me contava ao serão, fazendo-me sonhar com belas princesas e garbosos cavaleiros, sempre prontos a regatá-las de todos os perigos.

Para além da avó, também a minha querida Dadá, empregada de meus pais, me contava belas lendas de cariz popular. Mouras encantadas, almas penadas e tesouros escondidos, guardados por temíveis feras...

Claro que estas narrativas davam asas à minha imaginação, mergulhando-me num mundo onírico onde se viviam incríveis aventuras.

Mas não era a única a sonhar... contava-se na terra que certo indivíduo, cansado de ser pobre, decidiu quebrar um feitiço que diziam ocorrer junto à fonte de Pêro Boi, onde um rei mouro em fuga teria enterrado os seus tesouros.

Tencionando mandar recuperá-los mais tarde, e temendo ser roubado, o monarca transformou o seu vizir em touro, encarregando-o de guardar as riquezas que só deveria entregar a quem se aproximasse dele sem mostrar medo, numa noite de lua cheia.

Ora o nosso amigo já passara inúmeras vezes pela fonte, localizada numa quinta com o mesmo nome, onde, por coincidência, havia um touro bravo, sempre pronto a investir sobre quem se aproximasse, desprevenido,

Numa noite de lua cheia, o rapaz bebeu uns bagaços para lhe darem coragem e foi até à quinta de Pêro Boi, aproximando-se da fonte.

Quis o destino que o dito touro tivesse ido dessedentar-se a essa hora e, vendo que o homem se aproximava, invadindo os seus terrenos, investisse contra ele, não lhe dando sequer oportunidade de se arrepender da afoiteza.

Como resultado do embate, o destemido aventureiro foi parar ao hospital com várias costelas partidas. Se lá estava ou não o tesouro, nunca o soube e jurava nem querer mais saber, pois quando acordou do desmaio, apenas se recordava do bafo do monstro antes do impacto.

Dizia-se que só de ouvir falar do encanto, o desgraçado tremia de pânico.

In colectânea solidária "À Volta da Fogueira", Emporium Editora



domingo, 14 de junho de 2020

[102] Mais um conto de Sofia Cardoso, desta feita com asas a bater e zumbidos por todo o lado

Sofia Cardoso brinda-nos com novo conto, recentemente publicado na colectânea "À Volta da Fogueira",  pela Emporium Editora, de Almada

A MOSCA

Sofia Cardoso
A noite caíra. Festejos em cada recanto, atraiam corpos sedentos de apaziguamento. Na tenda, o fresco da noite tornara-se num hálito gelado. As constelações permaneciam mudas aos anseios dos humanos. Os insetos, enfrentavam a noite sem receios. Zumbidos cruzaram o ambiente. Os muscidae são dos insetos mais comuns, dada a sinantropia de algumas das suas espécies.

Ninguém parecia incomodado. A música, os fogos de artificio, o hálito a cerveja barata e morna, ofereciam um festim a cada um dos pequenos insetos que arriscavam a vida para que a sua prole sobrevivesse a mais uma noite, a outro dia.

Hematófaga - é próprio da sua natureza alimentar-se de sangue -, voou livremente durante algumas horas que lhe pareceram uma vida. A eternidade do ciclo, levou-a a concentrar-se. Contraiu as asas de modo a testar a capacidade de voo, zona superior bem posicionada, probóscide em posição final. O sistema de foco funcionou perfeitamente e nos últimos segundos a sintonia com a natureza atingiu o ponto mais elevado. De cócoras, um robusto espécime, tornara-se no recetor ideal. Nem chegou a ter qualquer tipo de pressentimento.

Muscidae é um dos insetos mais comuns, dada a sua sinantropia. Pousou ágil. Uma picada só. Pouco habituada ao contacto com o sangue dos audazes, jovens apaixonados e nobres de alma, caiu morta. Pouco elegante, mas missão cumprida. Morrera de barriga cheia e com um esgar de satisfação.

Se as moscas tivessem direito a ter sentimentos, hoje, este insignificante mas temido inseto sentir-se-ia realizado.