terça-feira, 16 de julho de 2019

[0079] Mário Pereira, em conto angolano

Do escritor angolano Mário Pereira, já reportado em Contos da Tinta Permanente, referimos mais um conto


MAN JACK DA COBARDIA

Corria o ano de 1963 em Luanda.

E, num dos subúrbios da capital, num dia em que o sol insistia em aquecer o ambiente como raras vezes o fazia, os putos corriam atrás de uma bola de borracha: uns à procura do golo do empate, enquanto outros defendiam, de qualquer maneira, a sua baliza, lançando a bola para longe: para queimar tempo; simulando lesões que não existiam e agarrando o avançado fora da grande área afastando-o da boca do golo,…

E, num certo momento, o jogo parou!

A bola, que fora chutada para a baliza defendida por Santito Matias, entrara no quintal de Man Zeca, o tal que vezes sem conta rasgara o esférico a punhal perante a mol de gente embevecida que assistia o jogo do princípio ao fim! Pela frustração causada, muitos auguravam, num dia destes, a oportunidade para indagarem Man Zeca, no beco da rua de trás, quando o sol se fosse embora! 

O presságio, para alguns, era funesto; enquanto, para outros, não passava de mais um episódio que teria um final semelhante: o da bola rasgada pela fúria de quem, sempre, pelos mesmos motivos, exibia um punhal na mão; ao da tristeza estampada no rosto, não só de quem fora impedido de correr atrás da pelota, mas também dos que se aglomeravam nos quatro limites do campo.

E enquanto se pressagiava sobre o que viria a seguir, - a desforra que fariam a Man Zeka botando no chão do beco escuro onde namorava com a Zinha as cascas de 100 bananas no momento em que ele se dirigisse para lá ao anoitecer - vinha do fundo da rua uma débil figura que parecia incapaz de se contrapor à ira dos ventos de Abril, estes que se habituaram a levantar para os ares as ninhadas de aves assentes no meio das moitas; as chapas esburacadas do casario em desalinho, deixando a céu aberto a desgraça do povo clamando por liberdade. 

Fingindo conhecer o que à sua volta se passava, a débil figura - que trazia no canto direito da boca uma beata apagada de cigarro Juca e um gorro negro na cabeça -, evitou indagar a causa por que ali se achava a mole de gente e, acenando aos conhecidos que o saudavam com deferência, levantou a mão com o dedo indicador em riste, chamando, para o beco mais próximo, um dos que implorava a resolução daquele caso que parecia insolúvel. – O que é que se passa aqui? – Indagou Man Jack. 

É o puto Zito que jogou a bola para o quintal do Man Zeka. Então, o Man Zeka, furioso, prendeu não só a bola, mas também o miúdo que chutou a redonda para lá. 

– Mas a bola estragou alguma coisa? Aleijou alguém? Partiu algum vidro? – indagou Man Jack, enquanto ajeitava o cigarro, já aceso, inspirando e expelindo, pela boca e pelo nariz a fumaça quente que se alojara no peito. 

– Não se sabe, Man Jack. Só sabemos que o dono do quintal disse que já tinha avisado que da próxima vez que a pelota entrasse no seu quintal, não só ela seria retida, mas também o autor do chuto, e quem viesse em seu socorro, fosse quem fosse! E a clausura seria por tempo indeterminado, a não ser que houvesse, por parte dos familiares, a intenção de pagar o estrago… e exigiria um pedido de desculpas por parte dos pais, avós, tios e amigos do prevaricador, pelos abusos que vêm sendo cometidos até à presente data…

Dirigindo-se à porta da casa do ofendido, lá onde a bola e o puto estavam retidos, Man Jack falou assim: - Dá-me licença, Man Zeca. Sou eu, o Jack. – Quem? – O Jack, Man Zeka. – Oh! Man Jack? Entra, se faz favor. Pode entrar, Man Jack. O prazer é todo meu, caramba…. Ó, Man Jack? Como é, meu? Há tanto tempo que a gente não se via, pá!

Gerou-se um silêncio sepulcral quando Man Jack e Man Zeca se abraçaram perante o olhar atónito de quem espreitava a cena pelos intervalos das aduelas do quintal; gente que ansiava a solução do caso que juntara a vizinhança contra o detentor da bola e do puto Zito, o melhor goleador do musseque Rangel. 

– Então, Man Jack? Como é que vão as coisas por aí? Lá em casa tá tudo bem? - Graças a Deus, man Zeca! Tirando as perseguições dos Arara kwara, o resto vai caminhando, mas com a maior das atenções, porque o Arara Kwara não estão para brincadeira, não. Ainda ontem, não sei se já sabes, cangaram o Jingongo, o filho da Donana, o mais velho. 

– Mas estas questões vão ser tratadas noutro dia. E, então, como é que vão os mambos por aqui? Os miúdos; a mana Dominguinha? E a Donana, a tua irmã mais nova? Nunca mais a vi, Man Zeca. Anda mesmo cá ou viajou? Desde o ano passado no funeral da Ximinha que nunca mais lhe pus o olho em cima! 

– Está tudo sob controlo, Man Jack; vamos indo, como dizem os mais velhos cá da banda, mano. 

– Bom, mas o que eu queria mesmo dizer, Man Zeka, é o seguinte: é esse aglomerado aí fora que me está a preocupar; temos de evitar esses ajuntamentos tumultuosos à nossa volta, seja por que motivo for. Os Jipela Njipe e os Araras volta e meia estão aí a passar e sempre com o olho em cima da gente e qualquer cheiro a geringonça é suficiente para os tipos actuarem! E já sabes como é que isso é, pá! 

– Ok, Man Jack, percebi tudo. Mas esses putos dão trabalho sério! Por mais que a gente fala, os gajos não querem saber e então, pela falta de respeito permanente, canguei-lhes a bola que caiu aqui mesmo no quintal, na hora em que eu ia a sair do cubico para ir fazer um biscate. 

– E, como se não bastasse, ó mano, o tipo que chutou a bola ainda saltou para dentro do quintal sem pedir autorização e, por isso, como qualquer um de nós faria, também lhe canguei. É esse indivíduo que está aí sentado no fundo quintal, mano. 

– Tá bem, pá. Não deixas de ter as tuas razões! 

– Porém, como as coisas estão por aqui, não devemos criar inimizade com esses putos, ó mano! 

– Devemos tê-los connosco, tás a entender? Se não fossem eles, ontem mesmo já me teriam cangado pois, foram vistos três indivíduos, dos tais, de calça preta e camisa branca, a circularem pela rua em sentido oposto! 

– E foi um grupo de putos que nos alertou do perigo, mano, a mim, ao Mangololo e ao Jinguma. E foi assim que nos escapamos e não conseguiram encontrar-nos. Man Zeca! – Diga, Man Jack. 

– É assim, mano: temos de estar em sintonia com esses miúdos pois, são eles que nos dão guarida, quando nos vêm avisar, na calada da noite, que está gente estranha a rondar o Bairro, tás a ver? 

– Para além disso, ó mano Zeca, essa é a única diversão que eles têm antes de as chuvas chegarem. 

– Quando há chuva, a diversão deles muda logo, porque essa água assentada transforma os campos da bola em grandes lagoas. 

– Aí, a brincadeira é mergulharem nessa imundície até se cansarem. Temos que ter mais calma! Somos mais velhos e devemos orientar essa malta miúda a estar dentro da normalidade, apesar das adversidades. 

– Para além disso, ó Man Zeca, que eu saiba a tua casa só tem uma janela que dá para a rua e ela, a casa, nem é de madeira, ó pá. É de barro. 

– E mesmo que a bola bata na parede, mano, o barulho que faz é nulo, não te incomoda. 

– Por outro lado, o teu quintal não é feito de vidro, é de aduelas esburacadas pelo salalé. 

– E se a bola bater nele quem sofre são esses mesmos bichitos que são atirados para o chão a cada remate que os miúdos fazem. 

– Até aqui só há benefícios para ti, mano. 

– Até me apetece dar uma gargalhada por te dizer isso, mano. 

– O barulho que eles fazem, meu mano, é do despique pela bola e, quando há golo, há aquela algazarra normal de quem já está a ganhar, em que os jogadores e adeptos correm, abraçam-se, atiram-se para o chão, assobiam, jogam areia para o ar e xingam quem não é do seu time. 

– É só isso mano! 

– Para ti e para muitos que aqui vivem, ó Man Zeka, estou-te eu a dizer, isto é um autêntico filme ao vivo, um benefício que traz alegria a quem, como tu, aqui no Rangel, não tem luz eléctrica, nem em casa nem na rua; não tem água canalizada e o chafariz fica longe; a casa não areja por só ter uma porta e uma janela em miniatura… 

– Esses jogos na rua, mano, são uma autêntica sala de estar onde as pessoas podem conviver vendo os putos a correr descalços à procura de enfiar a bola na baliza! Tás a ouvir o que te estou a dizer, ó mano! 

– Por isso, Man Zeca, o que tens de fazer é libertar a bola e o miúdo, mas, atenção, Man Zeca: tens de chamar alguns deles para presenciarem a entrega; testemunharem a tua amizade para com eles e para que estejam permanentemente a teu lado; para receberem de ti a proposta de que podem jogar sempre sem restrições, mas com árbitro presente para não haver batota que traz confusão no meio e fora do campo. 

– Atenção, muita atenção: não te esqueças de prometer aos miúdos que no final dos jogos haverá sempre um bombózito assado, uma gingubita e aquela quitaba da boa, daquela que já tem gindungo; uma tijela grande com farinha musseque, água e açúcar e com isso ofereces uma rodada de ngongwenha para essa malta. Para se refrescarem, dá a cada um uma caneca do bom kitoto. 

– Para os kotas, já sabes: preparas uns bons nacos de gengibre e uma boa caneca de kimbombo e pronto, já está…-

– Man Zeca! – Diz, Man Jack. 

– Estou a ver ali no fundo do quintal uma lata com cal já usada e que parece que já não tem mais serventia para a tua casa!

– Entrega isso aos putos para alinharem o rectângulo de jogo pois, nunca se viu que as linhas laterais de um campo de futebol sejam os limites das casas que o ladeiam! 

– Sinceramente, mano! 

– Vamos botar ordem nisso, o mais rápido possível e evita cangar os putos por causa da bola! 

terça-feira, 9 de julho de 2019

[0078] Estreante nos CTP, E. S. Tagino oferece-nos um conto inédito

E. S. Tagino, 1945, Grândola, Portugal
E. S. Tagino é pseudónimo de António José da Costa Neves, residente em Almada há mais de 40 anos. Licenciado em História pela FLL, durante anos publicou regularmente poesia em diversos jornais e revistas nacionais. Tem vasta bibliografia de romances (alguns de âmbito histórico, como "Sangue de Portugal", 2019) e foi galardoado com o Prémio Literário Cidade de Almada 2006 ("Mataram o Chefe de Posto"), Prémio Revelação Manuel Teixeira Gomes 2006/2007 ("Nem por Sonhos"), Prémio Literário Paul Harris 2007 ("Mea Culpa!"), Prémio Literário Poesia e Ficção de Almada - Prosa de Ficção 2008 ("O Amor nos Anos de Chumbo"), Prémio Literário Joaquim Mestre 2017 ("Um Certo Incerto Alentejo")...

JOÃO VIRADO

João Virado saiu de casa, como todos os dias. João Virado estava sempre pronto para sair. A maior parte das vezes não sabia para onde. Quase sempre dava uma volta e voltava ao ponto de partida, que é a remate natural de qualquer volta, seja grande ou pequena. Naquele dia, porém, tinha visto um anúncio na televisão em que ofereciam qualquer coisa para quem fosse capaz de fazer não se lembrava o quê. Aquele anúncio interessou-lhe. Então recordou-se de que tinha saído para perguntar no café se alguém o tinha visto. João Virado era um pouco virado da cabeça, daí a alcunha, que Virado não era nome de família. Nome de família era Corneta, por causa de um avô que tinha sido corneteiro em Infantaria 3. No caso do João, porém, apelido muito apropriado pelo que João Corneta era também chamado, muitas vezes, por João Virado da Corneta. 

João Virado não sabia fazer nada e, só por essa razão, não fazia nada. Às vezes apetecia-lhe fazer qualquer coisa, mas como não sabia o que fazer, rapidamente se esquecia desse anelo indefinido, felizmente apenas episodicamente aflorado. Naquele dia, porém, demorou um pouco mais a esquecer-se do anúncio. Quando entrou no Café, não estava ninguém. “Querem ver que a malta toda resolveu responder ao anúncio!?”, pensou João Virado, ligeiramente azoado. “Já me lixaram o emprego!”, concluiu. Chamou para dentro, apareceu-lhe a Ernestina. Vinha de olhos revirados, a palitar os dentes. “Qué da malta?”, perguntou. “Nã sei, nã tava aqui”. Ernestina era empregada do Café, mas era um pouco mais lerda do que o João Virado. “Vou dar uma volta”, disse e saiu. Ainda não tinha dado dois passos, lembrou-se do anúncio e voltou atrás.

A Ernestina, que ainda estava encostada ao balcão, a palitar os dentes, admirou-se. “Tã depressa!”, disse, sem tirar o palito da boca. A televisão estava acesa. Na pantalha, dois tipos de casaco e sapatilhas nos pés, virados um para o outro, discutiam futebol. “Agora também discutem bola de manhã!?” perguntou-se o João Virado, que não era muito virado para os desportos coletivos, em especial do futebol. Gostava mais dos desportos individuais, como a pesca, que eram muito menos cansativos. Foi nesse instante que se lembrou de qualquer coisa do conteúdo do anúncio: “…nã faça nada….”, sim, “…nã faça nada…”. Tinha sido esta fração do slogan que lhe tinha despertado a atenção. Não fazer nada era com ele, para não fazer nada estava sempre pronto. Podia estar ali um bom emprego, pensou. “Vistes o anúncio de nã fazer nada?”, perguntou, apontando a televisão. “Nã fazer nada!?, espantou-se a Ernestina, que entrava às seis e saía às vinte e duas e nunca tinha tempo para nada. “Nã fazer nada, nã sei o que é.”

“Esta gaja é parva”, pensou João Virado, voltando-se e saindo. O sol da manhã estava apetitoso e a esplanada convidativa. Ajeitou o toldo e sentou-se com as pernas esticadas. Com a pressa, por causa do anúncio, não se tinha calçado. Olhou os pés por breves instantes. Encolheu os ombros e gritou para dentro: “Tina, traz-me uma cerveja sem copo”, e continuou a olhar os pés. “Com esta já são cinco que estás a dever”, disse-lhe Ernestina, antes de pousar a garrafa. “Descansa, que no sábado, o mê pai paga-te”.

Bebericou a cerveja, a pequenos golos. “Que paz, que descanso…”, pensou enquanto descansava o olhar na colina distante pintalgada de papoilas. “Nã há como o Alentejo para um homem viver descansado”, e os olhos relancearam, agora mais perto, abarcando o coreto, onde há anos ninguém tocava, a porta dos Correios, inativados, e a farmácia, encerrada desde a morte do Dr. Valdemar.

“E a volta, nã vais dar a volta?”, interrompeu Ernestina, que tinha vindo ajeitar as mesas. “Que volta, criatura!?”, perguntou, genuinamente admirado. “Tu é que dissestes quias dar uma volta”. “Pois se disse, ainda bem que já me esqueci”.

A meio da manhã começaram a aparecer os tipos do Leste, os ucranianos e os moldavos e, ainda mais tarde, os bangladeches e os filipinos. Só depois apareceu o Xico Moleiro, que estava desempregado para aí há vinte anos. “A apanhar sol!?”, perguntou, enquanto puxava uma cadeira. “Estou a descansar”, disse Virado, estendendo a punho que o Xico socou com um pequeno toque. “Com este calor, é o melhor que um homem pode fazer”, disse e sentou-se. “Também vou descalçar as botas”, acrescentou depois de olhar para os pés do João Virado.

“Essa malta nã faz nada?”, perguntou o Xico Moleiro, passados dez minutos, apontado os tipos do Leste. “Vivem do subsídio”, respondeu o João Virado, encolhendo os ombros. “Por isso é que há cinco anos não sou aumentado”, rosnou o Xico, raivo da concorrência. “Também o mê pai. E só a trabalhêra que dá arranjar os carimbos…”. “Nem me fales disso, João, que já tou a ficar cansado!”.

Quando na igreja badalou o meio-dia, João Virado deu por concluído o descanso. Estava na hora do almoço. Quando entrou em casa a mãe perguntou-lhe. “Foste dar uma volta, João?”. “Nã senhora, fui procurar emprego”, disse, lembrando-se vagamente do anúncio. “E encontrastes?”. “Nã senhora. Nã tive tempo. O Xico Molêro apareceu e ficámos na conversa. E o pai?”, perguntou, olhando em volta. “Está ainda a dormir”, respondeu a mãe. “Mas esse calacêro dum cabrão nã faz nada!?”, exaltou-se, pela primeira vez, João Virado, que nessa manhã já tinha ido ao Café e voltado. “E o Vinagre tava lá? O teu pai este mês ainda precisa dum carimbo.” Nã senhora, só estava a Ernestina”. “Bela rapariga, sim senhor, trabalhadêra e jêtosa, bem que podias arrimar-te a ela”, incitou a mãe, pensando no subsídio que mal dava para dois e tinha de chegar para três. “É jêtosa, mas nã é do mê jêto. Palita muito os dentes”. “Mas tu precisas duma rapariga. Olha que na tua idade o tê pai já era casado”. “Ó mãe, nã teme, que ê nã tou praí virado. Ainda pra mais, logo agora que tenho em vista um emprego”. “E tem futuro esse emprego?”, perguntou a mãe, enquanto deitava a comida da panela diretamente para a malga. Não respondeu, a mãe não ia compreender. Se tinha futuro!? Ali no Alentejo, tinha futuro e tinha presente. Além disso, ele queria lá saber do futuro. No futuro haveria de ter o subsídio.
Sentou-se à mesa e comeu o caldo de couves com toucinho. A rodela de chouriço comeu-a no pão e, antes de ir dormir a sesta, ainda murmurou entredentes: “Nã fazer nada, belo emprego. Amanhã, se nã tiver tanto calor, vou continuar a procurá-lo”. 

sexta-feira, 5 de julho de 2019

[0077] Um conto de Tazuari Nkeit

TAZUARI  NKEIT
Mais um texto angolano chega a Contos da Tinta Permanente. De seu nome próprio José Caetano, é escritor e jornalista.


TAMBÉM QUERIA ESCREVER “CHORA, TERRA BEM AMADA”

Coulayá é o nome imaginário de uma das mais belas cidades do continente africano. Virada para o Oceano, tem na pesca, a extracção do sal, madeira, bauxite e a cultura do ananás umadas principais riquezas, nas mãos de uns. A maioria da população é pobre e vive resignada à condição de continuar a sê-lo, até matar o coração. 

Como na maioria das cidades africanas, os habitantes de Coulayá vivem do pequeno comércio. E espalham mercados de assados, fritos e descongelados por tudo quanto é canto. Onde houver um aglomerado de pessoas, lá estará um mercado. Os habitantes de Coulayá compram e vendem pelas ruas, ruelas e becos tudo o que lhes permita a mínima receita para comer hoje, porque, segundo a crença, o amanhã a Deus pertence. 

Também é assim, regra geral, a vida de um africano: «vida negra», para aqueles que melhor caracterizam estes povos condenados à condição de miseráveis: acordam sem saber o que comer; trabalham sem a certeza do salário; e, adormecem desconhecendo que nessa noite poderão ser vítimas de um enfarte... 

Em Coulayá os mais poderosos esforçam-se para serem vistos a rezar em templos sagrados e a oferendar esmolas como obra de caridade. É uma farsa que lhes permite o título de «Homens mais capazes da Cidade!»; ou, então, se preferirmos, um gesto de cidadania comparável ao turista americano que, de óculos escuros e calções de caqui, passeia descontraidamente pelas calçadas europeias, atirando migalhas de milho aos pombos e andorinhas que,sem tecto, esvoaçam pelo céu... 
Em cidades reais, dezenas de intocáveis querem ser vistos como heróis e homens de boa vontade. Entregam à caridade a parte do dinheiro que pouca diferença lhes faz; dinheiro roubado; migalhas dos milhões e milhões não investidos em infra-estruturas básicas; dinheiro desertor e foragido da melhor remuneração dos seus empregados; os mesmos milhões que obrigam meio mundo a correr, mentir, enganar e lutar para comer e enganar o estômago... porque, infelizmente, nesta vida semi-selvagem, a tal vida negra, mentir, enganar e lutar para comer é a regra do dia a dia: cada um por si, Deus por todos, salve-se quem puder! 

- Porque é que todas as cidades africanas vivem o mesmo dilema?- pergunto ao anfitrião, meu amigo, em Coulayá. 

- Não te rales. Não vais mudar nada! A África não tem solução.

- Como assim…?!

- Põe isto na cabeça – diz-me ele - Nós, os africanos, estamos condenados ao fracasso. Nenhum país governado por pretos se vai endireitar. Nenhum! Deus fez o homem com cinco dedos diferentes nas mãos, para representar o diferente destino dos cinco Continentes. Nós somos o dedo mindinho. Estamos condenados a pensar pequeno e a sermos os inferiores. O dedo maior, representa os brancos, mais poderosos, e os seus descendentes como o Jerry Rawlings ou o Obama. Eles são mais capazes do que nós! 

- Não acredito! Faço tudo para contrariar esta tese. Digo-te: se um dia eu concorresse a Presidente escolheria como slogan «Dez anos para Mudar África – Um Compromisso Internacional!» E, faria tudo para desmentir isso! 

O meu anfitrião respondeu-me com uma das gargalhadas mais bonitas e sonoras que já ouvi dele:

- Eh, eh, eh..., todos dizem o mesmo!!! É para enganar, meu amigo. Olha o outro, jurou a mesma coisa: «Vou mudar...! Vou mudar...! Vou mudar!». Foi tudo para ludibriar, roubar e enriquecer. Nada mudou... 

Inconformado, volto a atacar:

- Roubar?! Comigo, não! Podes ter a certeza que nunca. E quem roubar no meu Governo, ainda que sejas tu, vai para a cadeia. Serás o primeiro a ser preso e julgado... 

O anfitrião não se deixa intimidar. Volta a zombar de mim, às gargalhadas. Explica-me que perdeu toda e qualquer esperança na seriedade dos líderes políticos africanos deste tempo. E, num tom provocante, pressionou o botão do suicídio da Esperança Africana – o gatilho da derrota e da resignação! 

- Vais prender todos, então! O africano foi criado por Deus para ser assim. Ele quer comer hoje, e deixar tudo para depois. Quer o imediato, gosta do excêntrico e é extravagante. Não te rales, meu amigo. Cuida de ti e deixa o mundo andar...! 

Involuntariamente, estávamos a debater duas teses sobre a Esperança Africana: Para o meu anfitrião, a África não tem futuro; Eu e outros, dizíamos que dez anos de boa governação poderiam ser suficientes para alterar o rumo do Continente. Dez anos irreversíveis! Também tínhamos um sonho, a exemplo de Martin Luther King que nos anos 60 acreditou ser possível terminar com os preconceitos raciais, a favor da liberdade e da dignidade para todos. Porque não acreditar que a melhor governação é a solução para África? 

- Porque não segues a mesma crença e determinação de Nelson Mandela, que fez cair o apartheid sem vinganças? - faço o último esforço para convencer o meu amigo, como se fosse um caçador cansado e faminto rogando a Deus para não morrer de fome. Mas, ele é peremptório. Surdo e implacável, diz-me para ter cautelas e ser realista: 

- Olha que o tempo de Mandela, SekouTouré, Nyerere, Agostinho Neto ou Sankarajá passou. Foram-se todos como a moda d’Os Beatles! A África de hoje perdeu os seus revolucionários, e perdeu-se! Os políticos já não querem fazer revolução nenhuma, como outrora. Querem dinheiro. Querem fazer negócios e ser milionários! Cuidado, meu amigo. 

Senti um estranho calor na espinha...O meu anfitrião não era um homem qualquer: é perito e PCA de uma empresa bem-sucedida.Com mais de 40 anos de experiência profissional, é o tipo de peixe na água, homem sábio e senhor de muitas barbatanas. Sabe falar e sabe estar calado. Se é um ladrão, ou se faz tráfico de influências, não sei. Em casa, e na minha presença, vi-o receber gente graúda, a quem deu conselhos e pareceres. Pontual como a Lua e o Sol, diz que vem à minha busca 18:00 e as 17:55 bate-me à porta:

 «Conconcon...!». Diz-me ainda: - É impossível mudares a África com discursos! E nem precisas ser político para começares com mudanças. Falta nos uma grande burguesia para criar bons empregos, assim como uma classe média que lhe sirva de suporte, e, uma massa crescente, exponencial, de tecnocratas capazes de funcionar com autonomia – e um código de conduta obrigatória para todos. Sem isso, meu rapaz, vais dar o teu show, vais ser aplaudido várias vezes, mas, depois, arruma as botas e vai-te embora, como nos actuais jogos de videogame. E, faz o «logout», antes que cometas as mesmas asneiras que os outros ladrões e parasitas do videogame...! 

Mesmo assim, apesar da sua retórica e ironia, o meu bom amigo não me convenceu. O mal dele é pensar que viver e crescer mal e sem berço é sinónimo e é destino do verdadeiro africano. Em dez anos, tudo isso pode começar a mudar sem retrocessos. Eu acredito. 

terça-feira, 2 de julho de 2019

[0076] Lançamento de “O Pequeno Livro dos Grandes Heróis”

“O Pequeno Livro dos Grandes Heróis”, de Sofia Cochat-Osório, será lançado a 4 de Julho, às 18h00, na UCCLA. Com a chancela da Editora Guerra e Paz, a obra será apresentada por Maria do Céu Roldão. Com 208 páginas, reúne as histórias épicas de vinte e cinco personalidades que ajudaram a mudar o nosso mundo.