sábado, 23 de julho de 2022

[0133] "Mãos", de António Rosa

MÃOS

A mão não é uma pata. É uma mão.

A minha mão não é uma pata. É a minha mão.

Há as rudes, as finas, as delicadas e as grosseiras. Todas servem. Cada qual com a sua função, com as atribuições que o organismo lhe destinou ao longo da sua vida de trabalho.

Envelhecem com o tempo e perdem a sua destreza, as suas habilidades. Tornam-se secas, rugosas, deformadas, mal jeitosas. Saudosas do tempo em que eram hábeis.

Anatomicamente perfeitas, com vários graus de liberdade, movem-se como mais nenhum órgão do corpo humano se consegue mover. Esganam e acariciam. Torturam e afagam. Representam e concretizam. Apontam, acusam, apertam. Ajudam a comunicar. Têm uma versatilidade incrível. Contorcem-se, esticam-se. Abrem-se e fecham-se. Enfim, são elas as verdadeiras protagonistas do “fazer”.

Têm dedos. Muitos. Cinco em cada uma, se não houver malformação. Todos fazem falta, na sua função preênsil. Um polegar forte, oponível aos outros não os antagoniza, mas bastante os ajuda a agarrar. Que o diga o papagaio quando sobe pelos ramos, pois também os tem.

Têm dedos para agarrar. Com garras, unhas, que se podem cravar para maior firmeza ou para golpear no ataque. Na sua face mais suave, a inferior, os dedos são sensíveis, especialmente na polpa da sua extremidade, permitindo dar um arremesso de visão aos cegos, com a percepção das formas e da temperatura ou então uma suave carícia que reconforta quem a recebe.

Temos duas mãos, se não tivermos a infelicidade de sermos amputados. Elas são extremamente amigas e perfeitas colaboradoras no seu trabalho conjunto. Diz o povo e com razão que “uma mão lava a outra e ambas lavam o rosto”. No entanto, há sempre uma mais aperfeiçoada e hábil, que se encarrega dos trabalhos mais meticulosos e minuciosos, enquanto a outra a ajuda sem qualquer ressentimento por ter sido preterida nessas tarefas cuidadas. Esta também sabe que a sua acção é preciosa e que a sua irmã hábil nada conseguiria sozinha, sem o seu auxílio. São irmãs gémeas e fazem parte do todo individual, portanto, mesmo que não quisessem, não tinham outra alternativa senão colaborar.

Há a mão que dá e a mão que tira. Por vezes é a mesma, como no caso do Robin dos Bosques, que tirava aos ricos para dar aos pobres, ou como no caso inverso de alguns governantes políticos. A mão que dá vai fechada, virada para baixo, enconchada sobre a sua palma, segurando a dádiva aí escondida. A que recebe fica aberta, com a palma para cima, aguardando resignada a chegada da dádiva, como uma bênção. São posições diferentes, estas da partilha.

A mão, agora morta, que segurava com firmeza a rabiça do arado, tinha a mesma determinação que ainda tem aquela que, por entre os calos dos dedos, puxa as redes de nylon para dentro do barco, vendo brilhar o pescado. As mãos servem o trabalho e este serve a sobrevivência humana. Sempre assim foi e há-de ser.

Não compete às mãos avaliarem a dignidade do trabalho que executam. Todos os trabalhos são dignos se forem executados para o bem da sociedade. Não tem menos valia a mão do algoz que segura o machado com que irá degolar o condenado do que a mão do cirurgião que segura o bisturi com que irá extirpar o tumor ao paciente. A mão da antiga lavadeira no rio era perfumada pela frescura do sabão azul, enquanto a mão do cantoneiro de limpeza urbana, embora protegida por luva, ficará impregnada do odor nauseabundo do lixo putrefacto que tinha aquele contentor. No entanto esta não é menos digna que a outra. São mãos que executam trabalhos distintos, mas igualmente dignos, porque a sociedade necessita deles.

As mãos finas, delicadas, não têm calos daqueles que entumecem a pele dos dedos e os tornam rígidos e grossos. Quem toda a vida activa segurou numa enxada, dificilmente conseguirá reparar o interior de um relógio de pulso, por mais habilidade que tenha. Mas, pelo contrário, também será muito difícil ao relojoeiro passar uma tarde de sol abrasador cavando uma leira de batatas. O que é certo é que a sociedade necessita igualmente de batatas e de relógios, e principalmente de mãos que os saibam preparar. Portanto, todas as actividades lícitas se incluem em trabalho digno. Abençoadas as mãos que o executam.

Abençoadas as mãos do pintor, da cozinheira, do músico, do mecânico, do pastor, de todos.

Voltando a falar na liberdade dos movimentos das mãos, podemos considerar que elas são responsáveis pelo grau de desenvolvimento que a nossa espécie atingiu, quando comparada com os outros antropóides nossos primos. Vejamos alguns dados técnicos que não têm a pretensão de ser rigorosos.

Se apoiarmos a mão e o antebraço num plano horizontal (xOy) e imaginarmos um plano perpendicular a este (yOz) que passe pelo antebraço, podemos reparar que a mão pode flectir em torno do pulso, imóvel, de z: 0º a -80º e abduzir de z: 0º até z: +15º , o que dá a amplitude vertical considerável de 95º. 

Também mantendo o pulso imóvel, os movimentos laterais (movimento de fazer adeus), em torno do eixo y são consideráveis, desvio radial de x: 0º a -10º e desvio ulnar de x: 0º a +20º, o que dá uma amplitude de 30º.

Quanto aos movimentos de rotação da mão em torno do antebraço, que já não são movimentos da mão mas sim do antebraço, a amplitude é de quase 180º, com um momento torsor considerável. Pronação cerca de -5º e supinação cerca de +170º. Além de tudo isto há uma enorme panóplia de preensões pluridigitais das mais variadas espécies e de aduções e abduções do polegar, esse gordo maravilhoso que tanto nos facilita a vida.

É por esta razão que é tão difícil construir uma prótese mecânica que substitua a mão com toda a perfeição que ela tem. Apesar dos grandes avanços que a biónica tem feito nos últimos anos, o Homem nunca superará Deus, nem deverá ter essa arrogante pretensão.

Abençoadas mãos. Abençoadas as que nos puxaram para a vida e abençoadas as que, um dia, nos vierem a fechar os olhos e nos taparem o caixão.

Vila Viçosa, 16.7.2022