sábado, 23 de julho de 2022

[0133] "Mãos", de António Rosa

MÃOS

A mão não é uma pata. É uma mão.

A minha mão não é uma pata. É a minha mão.

Há as rudes, as finas, as delicadas e as grosseiras. Todas servem. Cada qual com a sua função, com as atribuições que o organismo lhe destinou ao longo da sua vida de trabalho.

Envelhecem com o tempo e perdem a sua destreza, as suas habilidades. Tornam-se secas, rugosas, deformadas, mal jeitosas. Saudosas do tempo em que eram hábeis.

Anatomicamente perfeitas, com vários graus de liberdade, movem-se como mais nenhum órgão do corpo humano se consegue mover. Esganam e acariciam. Torturam e afagam. Representam e concretizam. Apontam, acusam, apertam. Ajudam a comunicar. Têm uma versatilidade incrível. Contorcem-se, esticam-se. Abrem-se e fecham-se. Enfim, são elas as verdadeiras protagonistas do “fazer”.

Têm dedos. Muitos. Cinco em cada uma, se não houver malformação. Todos fazem falta, na sua função preênsil. Um polegar forte, oponível aos outros não os antagoniza, mas bastante os ajuda a agarrar. Que o diga o papagaio quando sobe pelos ramos, pois também os tem.

Têm dedos para agarrar. Com garras, unhas, que se podem cravar para maior firmeza ou para golpear no ataque. Na sua face mais suave, a inferior, os dedos são sensíveis, especialmente na polpa da sua extremidade, permitindo dar um arremesso de visão aos cegos, com a percepção das formas e da temperatura ou então uma suave carícia que reconforta quem a recebe.

Temos duas mãos, se não tivermos a infelicidade de sermos amputados. Elas são extremamente amigas e perfeitas colaboradoras no seu trabalho conjunto. Diz o povo e com razão que “uma mão lava a outra e ambas lavam o rosto”. No entanto, há sempre uma mais aperfeiçoada e hábil, que se encarrega dos trabalhos mais meticulosos e minuciosos, enquanto a outra a ajuda sem qualquer ressentimento por ter sido preterida nessas tarefas cuidadas. Esta também sabe que a sua acção é preciosa e que a sua irmã hábil nada conseguiria sozinha, sem o seu auxílio. São irmãs gémeas e fazem parte do todo individual, portanto, mesmo que não quisessem, não tinham outra alternativa senão colaborar.

Há a mão que dá e a mão que tira. Por vezes é a mesma, como no caso do Robin dos Bosques, que tirava aos ricos para dar aos pobres, ou como no caso inverso de alguns governantes políticos. A mão que dá vai fechada, virada para baixo, enconchada sobre a sua palma, segurando a dádiva aí escondida. A que recebe fica aberta, com a palma para cima, aguardando resignada a chegada da dádiva, como uma bênção. São posições diferentes, estas da partilha.

A mão, agora morta, que segurava com firmeza a rabiça do arado, tinha a mesma determinação que ainda tem aquela que, por entre os calos dos dedos, puxa as redes de nylon para dentro do barco, vendo brilhar o pescado. As mãos servem o trabalho e este serve a sobrevivência humana. Sempre assim foi e há-de ser.

Não compete às mãos avaliarem a dignidade do trabalho que executam. Todos os trabalhos são dignos se forem executados para o bem da sociedade. Não tem menos valia a mão do algoz que segura o machado com que irá degolar o condenado do que a mão do cirurgião que segura o bisturi com que irá extirpar o tumor ao paciente. A mão da antiga lavadeira no rio era perfumada pela frescura do sabão azul, enquanto a mão do cantoneiro de limpeza urbana, embora protegida por luva, ficará impregnada do odor nauseabundo do lixo putrefacto que tinha aquele contentor. No entanto esta não é menos digna que a outra. São mãos que executam trabalhos distintos, mas igualmente dignos, porque a sociedade necessita deles.

As mãos finas, delicadas, não têm calos daqueles que entumecem a pele dos dedos e os tornam rígidos e grossos. Quem toda a vida activa segurou numa enxada, dificilmente conseguirá reparar o interior de um relógio de pulso, por mais habilidade que tenha. Mas, pelo contrário, também será muito difícil ao relojoeiro passar uma tarde de sol abrasador cavando uma leira de batatas. O que é certo é que a sociedade necessita igualmente de batatas e de relógios, e principalmente de mãos que os saibam preparar. Portanto, todas as actividades lícitas se incluem em trabalho digno. Abençoadas as mãos que o executam.

Abençoadas as mãos do pintor, da cozinheira, do músico, do mecânico, do pastor, de todos.

Voltando a falar na liberdade dos movimentos das mãos, podemos considerar que elas são responsáveis pelo grau de desenvolvimento que a nossa espécie atingiu, quando comparada com os outros antropóides nossos primos. Vejamos alguns dados técnicos que não têm a pretensão de ser rigorosos.

Se apoiarmos a mão e o antebraço num plano horizontal (xOy) e imaginarmos um plano perpendicular a este (yOz) que passe pelo antebraço, podemos reparar que a mão pode flectir em torno do pulso, imóvel, de z: 0º a -80º e abduzir de z: 0º até z: +15º , o que dá a amplitude vertical considerável de 95º. 

Também mantendo o pulso imóvel, os movimentos laterais (movimento de fazer adeus), em torno do eixo y são consideráveis, desvio radial de x: 0º a -10º e desvio ulnar de x: 0º a +20º, o que dá uma amplitude de 30º.

Quanto aos movimentos de rotação da mão em torno do antebraço, que já não são movimentos da mão mas sim do antebraço, a amplitude é de quase 180º, com um momento torsor considerável. Pronação cerca de -5º e supinação cerca de +170º. Além de tudo isto há uma enorme panóplia de preensões pluridigitais das mais variadas espécies e de aduções e abduções do polegar, esse gordo maravilhoso que tanto nos facilita a vida.

É por esta razão que é tão difícil construir uma prótese mecânica que substitua a mão com toda a perfeição que ela tem. Apesar dos grandes avanços que a biónica tem feito nos últimos anos, o Homem nunca superará Deus, nem deverá ter essa arrogante pretensão.

Abençoadas mãos. Abençoadas as que nos puxaram para a vida e abençoadas as que, um dia, nos vierem a fechar os olhos e nos taparem o caixão.

Vila Viçosa, 16.7.2022

terça-feira, 21 de junho de 2022

[132] Três textos/contos/memórias de José Manuel Oliveira

DUAS HISTÓRIAS (verídicas) COM BÊBADOS E JORNALISTAS E AINDA UMA OUTRA SURREALISTA (igualmente verídica) MAS JÁ MAIS PRÓXIMA DOS NOSSOS TEMPOS

A primeira foi-me em tempos relatada por um antigo colega de emprego, que tinha anteriormente trabalhado num jornal - durante o antigo regime -, chamado «Diário da Manhã».

À entrada da porta das instalações do dito jornal e no exterior, ou seja, na rua, encontrava-se sempre um porteiro fardado, o qual controlava mais ou menos as entradas, prestando também algumas informações úteis a todos aqueles que por qualquer motivo desejavam ter acesso ao interior do edifício. Não me recordo o seu nome, embora na altura em que me foi relatado o episódio em causa, esse meu colega até o tenha mencionado.

Descrevia-o porém, como um indivíduo alto, encarniçado e corpulento que tinha por hábito empertigar-se sempre bem encostado –o termo preciso é “colado” - à parede e puxando ligeiramente o boné para os olhos, dando várias vezes a sensação de estar com eles meio fechados.

Ora, acontece que numa porta mesmo ao lado da entrada do dito jornal , funcionava uma tasca daquelas bem típicas lisboetas, que entraram em vias de extinção há largos anos, e a respeito das quais já se realizaram até algumas reportagens e tentativas de recuperação de muitas delas - Vide aquela célebre foto de Fernando Pessoa apanhado em "flagrante de litro", pois a tasca em questão nesta história fazia ainda parte dessa família de saudosos estabelecimentos lisboetas.

Consta então que o nosso amigo porteiro, de tantos em tantos minutos, e quando a afluência humana era praticamente nula – sendo ele um óptimo conhecedor dos hábitos de entrada e saída dos funcionários, – esgueirava-se entrando na porta ao lado, em segundos , e segurando (isto segundo a descrição do meu colega) com agilidade em ambas as mãos num “de três”, uma delas amparando carinhosamente a base bem sólida e pesadona em vidro daqueles antigos copos, inclinava-se para trás e deitava abaixo mais um, regressando de um só fôlego ao seu posto, colando-se de novo à parede.

Ao que parece, tais peripécias chegaram aos ouvidos do director do jornal, tendo este um belo dia, resolvido perpetrar um plano de forma a testar os conhecimentos e a lucidez do seu fiel funcionário. Resolveu assim chegar pelo meio da manhã, o que era muito raro, e encaminhando-se em passo descontraído em direcção à porta de entrada, lá estava como sempre o nosso amigo. Aproximou-se então e atirou à queima roupa : «Bom dia! Sabe-me dizer se o senhor director já entrou?»

«- Foi pessoa que ainda hoje não vi.» - respondeu o outro numa voz arrastada do alto do seu posto de trabalho...


A outra história teve lugar na Rua do Carmo, nas antigas instalações do «Primeiro de Janeiro», e foi-me relatada pelo meu pai que era técnico de comunicações especializado em teleimpressoras (as máquinas que antecederam o FAX ) ao serviço daquele jornal na altura, embora fosse funcionário efectivo dos CTT .

Era ali logo no início da Rua do Carmo, quem sobe e do lado direito, que se abria um amplo e escuro vão de escada quase sempre aberto dia e noite, o qual dava acesso a um primeiro andar elevado, onde se situava a redacção do «Primeiro de Janeiro». Havia também uma pequena janela na empena norte, a qual se debruçava sobre a Rua Primeiro de Dezembro e sob a qual figurava ainda há poucos anos o dístico “Primeiro de Janeiro”, sendo aí mesmo, na sala correspondente, que estavam instaladas as teleimpressoras, onde o meu pai (o Oliveira) e o Peixoto, velho colega e amigo, exerciam a sua profissão, alternando-se nos turnos da noite, de uma maneira geral até perto da uma hora da madrugada.

Recordo-me bem das diversas salas com as suas pesadas secretárias em madeira, apetrechadas ainda com tinteiros e mata-borrões, do cheiro a tabaco impregnado nos tetos e paredes, e até de alguns dos colegas desses tempos. A minha mãe a conduzir-me pela mão a caminho de alguma passagem de ano, sempre que o meu pai se encontrava de serviço em alguma dessas ocasiões, os outros colegas e respectivos familiares pelas mesmas razões, abria-se uma garrafa de espumante, cada um levava um bolo- rei, outros as passas, outros o vinho do Porto, outros ainda diversos acepipes, e dessa forma lá se passava a meia-noite com quem inevitavelmente estava escalado para essa data.

Ora, foi precisamente naquele vão de escada que dava acesso ao jornal, que o indivíduo se infiltrou, sabe-se lá vindo de onde ou o que já tinha bebido pelo caminho. Muito provavelmente teve necessidade de aliviar a bexiga, e aquele era o sítio perfeito . Recordo-me que a escada era antiga e escura formando um recanto ainda mais sombrio, sendo os degraus em madeira. Ao chegarmos ao patamar do jornal, deparávamos com duas portas-batentes de vidro branco e fosco a meia altura que se empurravam exactamente como nos saloons dos westerns. Ambas tinham gravadas em letras vermelhas «Primeiro de Janeiro», seguindo-se um pequeno vestíbulo e uma primeira porta de entrada que dava acesso à primeira sala onde se encontrava sentado à secretária o Cortes, de óculos, bigodinho, indivíduo de constituição magra e nevrótica, porém sempre afável e bem disposto. Seguiam-se o gabinete do Assunção, um tipo corpulento a dar para o gordo, também ele sempre simpático e brincalhão, e mais para o interior, uns outros tantos incluindo o do director do jornal – na altura o Pinto Quartim (pai da actriz Glicínia Quartim) – até chegarmos à tal sala das comunicações onde estava o meu pai, e que tinha vista para a rua Primeiro de Dezembro.

Uma bela noite, estando tudo a decorrer dentro do previsto, o indivíduo em questão subiu as escadas, empurrou as portas em vidro, atravessou o vestíbulo, e enfiando a cabeça à entrada da primeira porta (sem ser visto) onde se encontrava o Cortes , fez, "- Piiiiiiiu...!" e virando costas fugiu escadas abaixo. O Cortes, encontrando-se absorvido na sua escrita e no seu trabalho, sobressaltou –se, atirou um pulo começando a chamar pelo Assunção: "- Ó Assunção! Ó Assunção! chega aqui que está aqui um gajo que é maluco!".

O bom do Assunção lá veio em socorro do outro, mas quando lá chegou, nem sombras...

Passado o sobressalto e após o relato que o Cortes fez da situação, todos regressaram ao seu trabalho, não se pensando mais no assunto.

Nem se tinha passado ainda meia hora, quando, sob o mesmo cenário, todos se encontravam concentrados no seu trabalho e já esquecidos do incidente. Ouviu-se um ligeiro ranger de portas, um leve arrastar de pés, e eis que surge uma cabeça (sem nunca se deixar ver) onde continuava o Cortes à sua secretária, ouvindo-se : "- Piiiiiiiiiuuu!"

"- Ó Assunção Ó Assunção cá está o gajo!" – gritou o Cortes. E uma vez mais, quando o Assunção lá chegou, já o indivíduo ia escadas abaixo... 

Como devem calcular, ainda hoje estamos para saber quem seria a figura em questão.

O Cortes era a antítese (física) do Assunção. Um, corpulento pesado e bonacheirão, o outro magro, macilento e um bocado nevrótico. Ora, no dito vestíbulo, recordo-me de facto da existência de um bengaleiro onde todos deixavam os seus casacos. Contava o meu pai que durante um Inverno frio e chuvoso, o Cortes saiu de serviço, enfiou o primeiro casaco que encontrou à mão e foi-se embora. Não era pessoa que reparasse muito detalhadamente naquilo que vestia. Porém quando já ia bastante afastado do emprego, reparou de facto que as mangas do dito casaco lhe tapavam as mãos, mas como já estava perto de casa, não se desmanchou, pensando – e bem – que no dia seguinte logo tudo se resolveria e os casacos voltariam aos respectivos donos. Em situação mais embaraçosa, porém, ficou o Assunção que, como devem calcular não lhe servia o casaco do Cortes, por mais que tentasse mesmo com muita boa vontade, contando o meu pai que no dia seguinte aquele não se calava e não parava de invectivar este último: «- Arranjaste-me a bonita. Fizeste-me atravessar o Rossio em mangas de camisa com este tempo.!» (estamos a falar de uma época diametralmente oposta à que vivemos, pois naqueles tempos em tudo se reparava, até porque havia muito menos gente, existindo ainda uma coisa chamada vergonha.) Imaginem!


A VACA QUE RI

Vi-te almoçar mioleira com os amigos, em directo para a televisão, banqueteados ao redor de uma longa mesa, que se estendia através de um corredor bem iluminado por belos lustres, e todos estavam muito bem, usando gravata, microfones acolchoados e botões de punho de marca. Estavam contentes e contundendes, entoando cantos nórdicos, monocórdicos, sintomáticos de quem toma duche diariamente em hotéis de cinco estrelas, guardado por gorilas acéfalos, e transportado em limusinas liminarmente pretas, conduzidas por motoristas brancos barrigudos, que fumam marijuana às escondidas dos adversários, enquanto lá fora, um milhão de loucos maníaco-depressivos atravessam as ruas da cidade com as vacas à arreata, enchendo tudo de bostas para grande espanto nosso...

- Que garantias nos dão? Que garantias nos dão? Quais os miolos que funcionam melhor, os das vacas brancas ou os das vacas pretas? Sondagem! Faça-se uma sondagem, já! – gritavam desesperados. Aproxima-se a polícia, mocada p´ra cima, um auto-tanque com as respectivas agulhetas vai dando banho aos bichos, aos donos dos bichos e à estrada merdosa, enquanto frente às câmaras da TV, no interior, os corajosos que pretendem dar o exemplo, continuam a banquetear-se com mioleira (sim, a mioleira é saudável, vão afirmando), bem regada com cerveja a copo de forma a transmitir um ar mais popularucho...

Um grupo de anarquistas vegetarianos com as bandeiras negras desfraldadas, surge agora, gritando palavras de ordem contra os hamburgers e contra quem os consome: mocada p´ra cima, dispersam largando tudo e escorregando entretanto nas bostas. A alguns transeuntes curiosos que ousam abrandar o passo, mesmo mantendo uma respeitável distância, água p´ra cima, e aí vão eles de roldão pela rua abaixo. «Ena caramba!» exclama um deles enquanto foge a sete pés, «a última vez que assisti a isto foi em Vila Franca de Xira numa largada, mas isto é muito ,mais divertido ». Alguns já apanham pedras da calçada ou restos de bostas, arremessando tudo contra a barreira da polícia que continua a carregar, ouvindo-se vidros estalar , havendo gente de mãos na cabeça. Uma vaca entra numa pastelaria, mas lá dentro ninguém quer saber, pois todos os olhares estão colados ao écran da TV, num canal que transmite um importantíssimo jogo da Primeira Liga de futebol.

Cai a noite e faz-se silêncio. O jogo correu mal, as vacas tresmalharam-se, a polícia regressou à esquadra humilhada, vilipendiada e a cheirar mal. Os donos dos animais regressaram às suas herdades cheios de desalento e amargura, mortificados e espezinhados, após terem apanhado uma enorme bebedeira de jeropiga.

Já tarde, observo-te na TV : anuncias as normas, procedes a uma declaração formal, estás com olheiras. – “- É proibida a partir de agora, a venda para consumo, de vísceras de bovinos, etc., etc., etc.”

Meu Deus! Sinto-me verdadeiramente desmiolado. Ainda por cima detesto mioleira. Acabo por beber um grande gole de bagaço e decido ir dormir, pois devo estar louco. Enfin c´est la vie.

Nota: a presente história teve lugar em ano incerto, durante a polémica com as vacas loucas, o ministro da tutela – que já não me recordo o seu nome – os produtores, os infiltrados de sempre, e , é claro, nós os transeuntes...

sábado, 21 de maio de 2022

[0130] Dois textos de José Manuel Oliveira (2)

DEPRESSÕES...

Durante uma revisitação aos chamados filósofos “neo-platónicos” de Alexandria, fiquei a saber que o fundador daquela corrente, Plotino, nascido de pais romanos no Egipto cerca de 203/4 d.C., tinha como discípulo principal e seu devoto seguidor Porfírio, o qual escreveu uma biografia do grande filósofo assim como igualmente transmitiu os seus escritos, ficando a dever-se-lhe em parte o pouco que se conhece a seu respeito. Ora, em 268, segundo se consta, Porfírio caiu numa enorme depressão, chegando mesmo a desejar suicidar-se, ao que teria sido dissuadido por Plotino, que o mandou ir “dar uma volta”, conselho que seguiu, resolvendo tirar umas férias na Sicília...Nada melhor, hem? Só que foi num retiro... nem pensem que havia casinos!

Precisamente por a mesma altura em que investigava estes registos, e durante uma ida à rua em direcção ao café, fui abordado por duas simpáticas senhoras junto ao edifício da C.G.D., que me perguntaram se eu tinha problemas de depressão, se conhecia alguém que tivesse, até mesmo se tinha conhecimento de algum caso próximo ou familiar, ao que eu respondi que não senhora, tendo elas de seguida estendido na minha direcção um ou dois pequenos panfletos, ao mesmo tempo que perguntavam: "Já conhece esta revista?" Voltei a responder pela negativa. "Não quer ficar com uma?" Muito obrigado, agradeci educadamente, e lá segui caminho. 

Ao que parece, o problema é muitíssimo antigo, pensei, embora já o soubesse. O que acontece porém, é que durante os últimos tempos, independentemente do tipo de civilização (errada) que se criou, a coisa agravou-se muitíssimo devido à desregulação psicossocial instaurada durante e após a pandemia, tal como a perda do horizonte referencial da chamada realidade e também da história, a qual como se sabe acabou. É que agora encontramo-nos no absoluto da simulação, e quem não estiver preparado para isso está em constante estado de choque  se assim me posso exprimir, pois já não há o Mito a que se possa recorrer como catarse (ficou do outro lado da história), e por conseguinte as massas caíram nas redes.

No entanto, penso que já anteriormente e por razões que desconheço, a “febre” das viagens atingiu níveis inconcebíveis. Basta atentarmos um pouco (escassos minutos) num programa televisivo muito popular como o «Jocker», para desde logo verificarmos o fenómeno, logo que o divertido apresentador do mesmo se atreve a perguntar a algum(a) dos concorrentes o que fariam com determinada quantia em dinheiro, caso ganhassem. A resposta –  invariavelmente e com raríssimas excepções – é imediata: "Uma viagem". 

Se há coisas com as quais não gosto de brincar, evidentemente, é com as depressões dos outros, ou de todas as pessoas que eventualmente as possam vir a ter...

Contudo, isto levou-me a pensar que efectivamente, ou anda tudo deprimido, ou há aqui uma enorme coincidência de desejos...

Agustina Bessa Luís disse um dia, já não sei bem em que contexto, que “As agências de viagens foram feitas para pessoas infelizes” , e eu, embora possa parecer suspeito devido ao facto de não atribuir qualquer espécie de importância a viagens, estou absolutamente de acordo com a ilustre escritora. Acontece que tenho um conceito de viagem, no meu caso, é claro, talvez mais próximo do sec. XIX, onde as verdadeiras viagens eram difíceis e atribuladas, os próprios meios de locomoção bastante mais raros e lentos, a própria preparação muito mais empolgante, as expectativas maiores, e os trajectos muito mais imprevisíveis : eis a ideia de viagem que eu tenho. Um jipe, uma expedição, enfim uma verdadeira aventura. 

Hoje em dia torna-se para mim um verdadeiro suplício dirigir-me a um aeroporto, onde tenho de aguardar horas numa fila, até que uma determinada barraquinha de terminal resolva abrir um janelo, - os funcionários escasseiam -  para de seguida ser encaminhado através de ínvios corredores com bichas em caracol, para no final de tudo isto ser apalpado, despido, passado a pente fino, sendo despojado de tudo o que brilhe ou que tilinte, para de seguida correr como um louco atrás dos meus haveres com medo de os perder de vista, como se tudo aquilo fosse uma espécie de “jogos sem fronteiras” para atrasadinhos mentais. Uma humilhação, eis as viagens de hoje, que eu sinceramente abomino. Passo em branco a hipótese de uma greve, pois aí tudo o que atrás mencionei será agravado e dilatado até aos limites da estupidez...

Mas entretanto afastámo-nos do tema principal, ou seja, das depressões, desde a época do Porfírio até à nossa pelas mais diversas causas, ou talvez não. Vistas bem as coisas estão relacionadas desde a antiguidade mais remota com as viagens. 

Depois, é claro que existem diversos graus onde todas estas coisas se encadeiam, e iremos sempre encontrar pessoas que até mesmo pela sua condição profissional têm necessariamente de viajar em serviço, ou ainda outras que poderão ter escolhido um destino cuja finalidade não é propriamente a viagem em si mas a estadia durante um determinado período num lugar qualquer dos seus sonhos ou da sua preferência para descansar, o que é sem dúvida um direito inalienável.

Talvez o que mais aflige, seja realmente o caso daqueles que andam constantemente a fugir de si  próprios, com enormes dificuldades em se confrontarem, pois aí reside o problema e as causas das depressões. É que se não se confrontam com o problema sentados no sofá lá de casa, ou diante de um simples copo, não será na Tailândia nas Maldivas ou na Austrália que se verão livres dele, por mais diversificada que seja a paisagem em seu redor, por mais rajadas de selfies que disparem ou pastilhas anti-depressivas que tomem. 

Repentinamente, não sei bem porquê, veio-me à  memória uma cena do filme “Blow Up”, durante a qual um grupo de jovens no interior de um ringue ao ar livre está a jogar uma partida de ténis imaginária, seguindo os movimentos da bola (inexistente) com a cabeça. Às tantas dirigem o seu olhar para o exterior, tal como se a dita e hipotética bola tivesse saltado a cerca de rede em volta indo cair aos pés do actor principal, um fotógrafo que na altura por ali passava, ficando todos na expectativa para que este lhes fizesse o favor de lhes devolver a bola que não existiu nunca. Ou será que para aquela gente existiu? O que estava do lado de fora, percebendo, entrou no jogo, simulou o gesto de quem apanha um objecto do chão, e esticando o braço arremessou a bola para o interior do ringue, tendo o jogo continuado. Isto tudo, sempre em silêncio. 

Neste momento, nós somos o tal fotógrafo  que ia  passar. Ou entramos no jogo e percebemos o que se está a passar ou corremos o risco de entrar em depressão...porque se a “realidade” era assim naqueles anos, a realidade para muita gente nos tempos que correm , quer tomem quer não tomem pastilhas, pode ser ainda mais complicada, mais ainda quando cada um de nós tem a nossa... 



[0129] Dois textos de José Manuel Oliveira (1)

ACERCA DAS GUERRAS E DOS SALTOS NO TEMPO

Segundo está testemunhado, Frínico parece ter realizado “directos” no decurso das chamadas “Guerras Pérsicas”. Era amigo de Timóteo (446-357 a.C.) que como se devem recordar é considerado o primeiro poeta trágico, assim como de Eurípides, um verdadeiro intelectual de esquerda da mesma altura. Recordo-me vagamente de ter assistido a uma grande reportagem daquele no decurso das mesmas guerras, durante a qual o sol ficou literalmente encoberto devido ao número impressionante de flechas arremessadas de um lado e de outro, embora não me lembre de o ter visto nas televisões envergando a tarjeta «PRESS». Durante esse período, se bem me recordo, andava eu envolvido involuntariamente numa outra guerra nas imediações de Oríon, para ser mais preciso em Betelgeuse (cerca de 300 anos-luz da Terra) devido a um mal-entendido entre rigues e starmen, não me sendo de todo agradável ter de dialogar com uma espécie de santola, a qual de pé atinge o tamanho de uma porta, e com a qual apenas me posso entender através dos múltiplos movimentos dos seus tentáculos.

Mas agora era altura de vocês dizerem : “Que diabo, mas não és tu que dizes que não vês televisão??!...

Afirmativo, afirmativo, o que se passa é apenas isto: É que se estão a esquecer que quando vou almoçar fora, normalmente ao “À volta cá te espero”, mesmo que não queira, tenho perante mim todas aquelas degradantes imagens de uma “guerra”, ou melhor dizendo, de destruição, ruínas, explosões e chamas, e mais ainda toda aquela panóplia de entrevistas aos desgraçados que ainda por ali vão deambulando ao papel e às apalpadelas, imagens essas tão edificantes como devem calcular, para quem está a comer uns carapauzinhos fritos com açorda à mesa lá do canto...

Bem me esforço, porém não consigo vislumbrar Frínico de microfone em punho, com a tal tarjeta «PRESS» pregada no peito. Será que foi noutra guerra e eu já estou confundido? Mas como assim se ainda só vou no primeiro jarro de tinto?

Por vezes chego a pensar se desta vez não teria “saltado” para o século XIX do oeste americano, e se não estaria Frínico escondido por detrás de um poste, aguardando ansiosamente aquele célebre embate entre o Kirk Douglas e o Anthony Queen em “Gun Hill” ("O Último Comboio"). Sim, esse mesmo, no qual quando o comboio chega à estação imobilizando-se entre enorme suspense, o duelo torna-se inevitável (neste caso parece ter vencido a justiça, outros tempos...), já não me recordo lá muito bem, é que entretanto vou no segundo jarro e perdi a memória que certamente deve ter ido à casa de banho...

Prática: Penetrar num dólmen que pode ser “portal” para outro universo. Nem todos o são. Depois apenas temos de “apanhar” o estado mental adequado.