terça-feira, 18 de dezembro de 2018

[0025] Sibila Aguiar oferece-nos a história de Malokenko, o menino que queria ver o mar

SIBILA AGUIAR, Lourenço Marques (actual Maputo), Moçambique, década de 40 do século XX

Moçambicana de nascimento, Sibila Aguiar é pseudónimo de Maria Helena Duarte. Escritora com livros publicados e pintora, a residir em Portugal desde os anos 50, nunca esqueceu as suas origens. Desde os tempos dos antigos “Juvenis”, fizeram-se uma presença sempre constante 




MALOKENKO

Desde o romper do Sol, muito, muito cedinho ainda, os garotos de todas as cores, filhos dos guardas-fiscais, mainatos e serventes, juntavam-se em grande alarido nos assaltos aos cajueiros, às mangueiras e nas correrias tipo polícia e ladrão…
Uns, bem vestidos, outros esfarrapados deixando à vista os ventres cabeçudos de umbigos salientes…
Estavam ligados por um sentimento belo que ao longe os meninos da cidade não conheciam: a fraternidade.
Porém, quem observasse o grupo chilreante, notaria com certeza o olhar distante de Malokenko… 
Malokenko não entrava na brincadeira…
Era um menino estranho que se sentava à porta da palhota e fazia desenhos na areia… Sabia muito, e contava histórias de feitiços e bruxas que se penteavam no rio nas noites sem Lua…
Malokenko era preto mas tinha alma branca… Malokenko o menino preto diferente nunca tinha visto o mar…
E quando dormia, sonhava que o mar era um rio muito grande onde o Sol se via ao espelho e que a Lua amava…
E os meninos cresceram…
Os filhos dos guardas-fiscais foram à escola… E os filhos dos mainatos e dos serventes como Malokenko, precisaram de ganhar a vida…
Apanhavam espargo para vender na cidade… Muitas vezes ninguém comprava…- E os meninos não tinham veias porque a pele era preta…
Não tinham mãe… e pediam pão porque a fome era como a cor que lhes cobria a carne… E paravam nas montras das pastelarias, lambendo os beiços, como se os olhos engolissem aquilo que o ventre pedia…
Só Malokenko não trabalhava… Chamavam Malokenko preguiçoso…
Mas ele não ouvia… Ao longe o mar bramia na cabeça do menino estranho e a espuma desfazia-se na carapinha preta do menino preto…
Um dia, os garotos de espargo falaram-lhe do mar e levaram Malokenko a vê-lo… Então… viram-no correr, correr de braços abertos e olhos brilhantes como se quisesse abraçá-lo… Malokenko correu muito, ficou cansado… Contou ao mar sua saudade, seu cansaço…E deitou-se nas águas que o beijavam quentes…
Anoiteceu …
E no dia seguinte entre as espumas brancas que o mar fazia de encontro à areia, o menino preto jazia sorrindo porque o mar tinha finalmente ouvido o seu chamamento.

1 comentário:

  1. Este conto é lindo até mais não. Ninguém lhe pode ficar indiferente. Conheci Malokenkos em Cabo Verde, em Angola e em Moçambique. Bastava olhar-lhes a menina dos olhos. Ah, de certeza que havia um Malokenko entre os meninos do aldeamento indígena que se abeiravam do meu quartel no interior do Niassa (Moçambique). Lembro-me bem dele; estava escrito nos seus olhinhos parados que era um sonhador.

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