terça-feira, 29 de janeiro de 2019

[0042] Pepita Tristão, em fundo de espionagem

PEPITA TRISTÃO, Castelo de Vide, Portugal, 1951
Pepita Tristão Cardoso, mais uma narrativa onde a ficção acasala com as vivências por ela trazidas das bancas das redacções e onde o absurdo tinge factos recolhidos do dia-a-dia profissional. 
A ficção absorve o ambiente de um pequeno policial mergulhado nas memórias que Cascais conserva dos tempos da espionagem durante a II Guerra Mundial.



UM ESPIÃO NO ATLÂNTICO

Uma fotografia partilhada numa rede social por conhecido historiador cascalense, trouxe-me à memória uma das mais bizarras estórias por mim vivida.
A imagem, captada no Monte Estoril, mostrava o Hotel Atlântico, após a passagem do camartelo do promotor da nova urbanização que em breve haveria de surgir. Por entre as tristes vísceras da esventrada unidade hoteleira, o arqueólogo assinalava um estranho orifício – a entrada da tão falada passagem subterrânea que terá permitido ao proprietário do hotel, no tempo da segunda Grande Guerra, enviar mensagens codificadas aos navios alemães que passavam ao largo.
Não consigo sequer descrever a alegria que me invadiu por – finalmente – alguém ter provado a existência da dita passagem, da qual muita gente falava, e que eu conhecera em circunstâncias bem estranhas. Circunstâncias que eu, como jornalista reconhecida pelo rigor e assertividade, nunca me atreveria a narrar. Sempre me afirmei pelo pragmatismo. Ainda hoje sou uma céptica quanto a casos que a ciência não consegue explicar, como posso acreditar no que me aconteceu naquele dia? No entanto, também me é impossível esquecer a terrível experiência que vivi e, embora não queira falar sobre ela, seja com quem for, a sua recordação constitui um fardo demasiado difícil de suportar, sobretudo agora, que se comprovou aquilo que antes era apenas uma estória sem fundamento. Daí ter-me decidido recorrer à ficção para em jeito de catarse, relatar em forma de conto, os factos por mim vivenciados.
Desculpem os leitores se, por vezes, a linguagem jornalística prevalece, por pura deformação profissional.
Tudo aconteceu quando, há alguns anos, a revista onde escrevo me encomendou uma série de artigos sobre pessoas centenárias. Chegar aos cem anos não é ainda muito vulgar, e nessa época, em Portugal viveriam apenas uns seiscentos idosos nessas condições. Não parecia, pois, muito fácil, encontrar pessoas cujas memórias me permitissem, através das suas histórias de vida, ilustrar o modo como foi vivido em Portugal o Século XX.
“O Século de todas as mudanças” era o título genérico desta aventura jornalística, que depressa demonstrou ser mais difícil de concretizar do que se previa. Isto porque, apesar de contactada por familiares de muitos centenários, que me asseguravam as ótimas condições em que os seus idosos se encontravam, quando chegava o momento da entrevista, acabava por aperceber-me que não era bem assim.
Oito em cada dez dos meus interlocutores obrigaram-me a verdadeiros exercícios de imaginação e a apurada pesquisa, para conseguir relatar as suas histórias. A arreliante surdez que afectava a maior parte deles, falhas de memória, confusões, porfias com os familiares que constantemente os corrigiam ou recontavam os diversos episódios, deixavam-me sempre com imensas dúvidas sobre a sua autenticidade.
Quando já estava decidida a finalizar a série de entrevistas, recebi uma chamada de uma senhora do Estoril a perguntar se gostaria de falar com a sua mãe que, embora fosse de nacionalidade holandesa, tinha vivido a maior parte da vida naquela localidade do concelho de Cascais. Tentei recusar, mas o facto de a senhora em causa ter 103 anos e de a filha insistir que havia tido uma vida cheia de aventuras, pois inclusive, teria pilotado o seu próprio avião de recreio, foi aliciante suficiente para eu anuir, considerando que poderia ser uma oportunidade para encerrar com chave de ouro o meu trabalho.
Combinado o encontro para a tarde, pois no lar onde a centenária vivia, a manhã era dedicada a questões de higiene e saúde, à hora aprazada, lá estava. Fizeram-me entrar numa pequena e acolhedora saleta, onde me esperavam duas senhoras. A mais nova, que parecia ter cerca de 70 anos, ergueu-se para me receber, identificando-se como a pessoa que me contactara pelo telefone. Feitos os cumprimentos, apresentou-me depois à mãe, uma idosa encantadora, que me fitou com uns olhitos vivos e irrequietos.
Como já se tornara habitual, depressa me apercebi que também era profundamente surda, pelo que a presença da filha seria imprescindível para conseguir estabelecer diálogo. 
E foi frente a um chá fumegante e aromático, alguns scones e boiãozinhos de geleia, servidos pelo pessoal do lar, ele próprio muito british, pois a maior parte dos seus utentes eram ingleses, que me fui apercebendo de quem era a minha interlocutora.
- Então, já mora no Estoril, há muitos anos? Comecei por perguntar, mas a minha interlocutora permaneceu muda, limitando-se a seguir-nos com o olhar inteligente e inquiridor.  
 - A senhora está a perguntar há quantos anos vive aqui, no Estoril. - A filha repetiu bem alto as minhas palavras.
Sorriu e encolheu os ombros: - Para mim, é como se tivesse vivido sempre. Era muito jovem quando cheguei a Portugal com o meu marido... fiquei apaixonada por esta costa maravilhosa! O mar... o céu azul... a areia prateada... o sol, sempre presente... - fez uma curta pausa, como que perdida nas suas recordações, mas logo prosseguiu:  
- Nessa época, o Estoril tinha uma beleza agreste. Não lhe resistimos! Este era o local ideal para estabelecermos o nosso lar e constituir família. Até chegar ao Estoril nunca havia criado raízes em lugar nenhum... sempre a saltitar de um lado para o outro. Em pequena, ora estava com os meus pais, ora com os meus avós e depois de casar, corri o mundo todo atrás do meu marido. Não sentia nenhuma terra como minha. De início, ficámos hospedados num hotel, enquanto procurávamos casa. Quando vi aquele palacete sobre o rochedo, virado para o oceano, decidi que aquela casa tinha de ser minha! 
Calou-se, ficando a olhar pela janela, com um ar sonhador. A tarde de início de Outono, era amena. Lá fora o sol brilhava, num céu descoberto. Pensei que era um bom dia para preguiçar no Tamariz, frente a um refrescante sumo de fruta, em vez de estar naquela pequena saleta a tentar dialogar com uma idosa, por muito interessante que ela se pudesse vir a revelar.
- Recorda em que ano isso foi? Perguntei, bem alto, sem que ela desse sinal de me ter ouvido.
- Foi na década de 30... eu nasci anos depois. - respondeu a filha, acrescentando: - Não tenho sequer memória de ter habitado naquele palacete. Eles compraram a casa ao Fausto Figueiredo. Já tinha pertencido ao Visconde de Malanza, mas nesse tempo não era tão grande como é agora. 
Virou-se para a mãe, elevando a voz: - Mãezinha, como é que era a casa quando a comprou?.
A idosa pareceu emergir de um sonho e sorriu. 
- Era linda! Não muito sumptuosa, mas chamavam-lhe palacete ou palácio... palácio Barahona, que era o nome de um dos anteriores proprietários.
Eu e o teu pai gastamos quase todas as nossas economias ao comprá-lo e decidimos abrir um hotel... era uma forma de ajudar-nos a manter a nossa casa... vivemos lá dias muito felizes. 
Calou-se por instantes e prosseguiu com um suspiro:
- Infelizmente gastamos muito com as obras de ampliação e adaptação para as novas funções e, apesar do nosso esforço, fomos obrigados a vendê-la. Adquirimos, então, aquela onde a minha filha vive, que também estava muito bem situada, mas tive muita pena de deixar o hotel!
Por então já me tinha apercebido que estava frente a Vera Mouths, que com o marido, Ferdinand abrira o Hotel Atlântico em 1932. Rapidamente, comecei a tentar lembrar-me do que havia lido sobre o casal.
- Os senhores eram de origem alemã, creio... certamente vem daí a fama de durante a II Guerra Mundial o hotel ser muito procurado pelos alemães.  
Incomodada, a filha foi taxativa - Não. Não foi o meu pai que gerou essas histórias da guerra. O meu avô paterno é que era alemão e até pode ter contribuído para atrair clientes germânicos, mas isso foi antes da guerra. A minha mãe é de nacionalidade holandesa.  
Vera olhava-nos com ar inquiridor.
- A senhora está a perguntar se a mãe é alemã!
- Não. Eu nasci na Holanda. A minha família estava ligada à hotelaria, possivelmente foi por isso que tive a ideia de converter a nossa casa em hotel. Demos-lhe o nome de Hotel Atlântico, por se localizar ali, à beira do mar. O meu sogro ajudou-nos a promover o estabelecimento e angariou muitos clientes, na Alemanha. Chegamos a ter hóspedes muito distintos.
Fitou a filha, como que a pedir ajuda.  
- Lembras-te do nome daquela jornalista muito conhecida? 
- A mãe está a falar da Baronesa Carola von Oertzen de Ilhenburg, que representava alguns dos mais reputados jornais de Berlim... mas tiveram outros hóspedes bem conhecidos... até se contam muitas histórias sobre isso.
- Apesar de tudo, acabamos por ser obrigados a vender o hotel àquele rapaz alemão... o Wortus.
- Há quem defenda que o Hotel tinha uma passagem secreta para a praia, que o proprietário utilizava para controlar o tráfego naval e enviar mensagens aos navios alemães que navegavam ao largo.
- Os meus pais nunca ouviram falar disso, nem descobriram qualquer passagem... apesar de poder ter sido aberta aquando da segunda ampliação encomendada pelo Wortus, mas tanto os meus pais como os nossos amigos sempre estiveram convictos que isso é pura efabulação.
Vera Mouths parecia agora mais animada. 
- Nessa época, Portugal era um País muito bom para se viver, sobretudo quando começou a Guerra... foi  no ano em que tivemos de nos desfazer do hotel... em 1939, não foi, filha?
- Foi sim mãe, em Setembro de 39... eu era bem pequena...
- Logo a seguir ao início da guerra o presidente Carmona declarou a neutralidade dos portugueses... não foi o Carmona, foi o outro senhor que esteve muitos anos no poder...
- Era o Salazar, mãe...
- Sim, esse... foi uma medida muito inteligente, porque Portugal tornou-se o País mais procurado pelos estrangeiros que fugiam à Guerra. Muitos ficavam só de passagem, porque preferiam ir para a América. Hospedavam-se aqui, na Linha, ou em Lisboa, até arranjarem forma de embarcarem num dos paquetes.
- Foi uma época boa para a hotelaria, mas já havíamos vendido o Atlântico... eu convivi com muitos desses refugiados... tornámo-nos amigos de alguns. Íamos à praia com eles, quando a minha filha era pequena... recordas-te?  
- Perante a aquiescência da filha, Vera prosseguiu: A maior parte dos nossos amigos já morreu, mas a minha filha ainda se dá com os descendentes. Nessa altura, a nossa vida era muito complicada, pois podíamos ser chamados para alguma missão em qualquer momento...
A filha interrompeu de forma abrupta: - O meu pai era empresário e tinha negócios em todo o mundo, pelo que estava sempre a ser chamado para resolver problemas, em diversos países. Normalmente, a minha mãe acompanhava-o, não era?
Antes de a progenitora responder, prosseguiu, falando sobre a empolgante vida do casal, testemunhada pelas fotografias que selecionara para me mostrar.
Embora na ocasião não tenha dado demasiada atenção à interrupção, os acontecimentos posteriores, acabaram por me fazer ver sobre um prisma diferente essa forma precipitada de desviar a conversa.
As fotos, a preto e branco, mostravam um casal jovem e bonito. Sempre vestido de acordo com as ocasiões fixadas pela objectiva. Um safari em África... um passeio em trenó no Canadá... um circuito de avião em território americano...
Escolhi algumas daquelas fotos, propondo-me logo dar realce àquela em que se podia ver a jovem Vera a pilotar com ar intrépido uma avioneta negra (ou assim me pareceu). Estava devidamente equipada, vestida também de negro e tinha o marido como copiloto. 
Antes de nos despedirmos, registei algumas imagens de ambas, visto que me tinham pedido para não levar fotógrafo, de modo a não inibir a velha senhora. 
Saí do lar eufórica, não só porque teria oportunidade de encerrar a série de entrevistas com chave de ouro, mas por ter conhecido alguém que preenchia o meu imaginário. Era assim que eu sonhava que teriam sido vividos os “loucos anos 20”! Aquela Vera, em jovem, parecia encarnar todas as heroínas dos filmes de espiões da II Guerra Mundial. Conseguia situá-la na Riviera Francesa e também na Portuguesa, quando refugiados e reis depostos por aqui deambularam. Talvez ela tivesse sido uma espia alemã ou uma agente dupla que utilizasse o seu veículo alado, sabe Deus para que encargos...
Empolgada como estava, e sem vontade para rumar para a capital onde me aguardava o esfumaçado ambiente da redacção, optei por vaguear pelos jardins do Casino, construindo mentalmente a história que iria escrever. Acabei por jantar nas Arcadas do Estoril.
Decidi então ir até ao Atlântico, tentar imaginar como teria sido o Palacete que encantara, há mais de sete décadas, a minha entrevistada. Anoitecia quando estacionei no parque do hotel e depressa percebi que nada restava nele que recordasse um palacete do fim do século XIX, quando a arquitetura de Veraneio ainda imperava por ali. 
Ainda assim, não me apetecendo abandonar o local, rumei até à praia. Queria contemplar aquelas águas que um dia terão sido vigiadas por quem tinha informações a transmitir ou ordens a receber.
Sentei-me numa rocha, observando o vai-vem das ondas, que serenamente se transformavam em branca espuma, confundindo-se com a areia.
Não sei quantas horas ali fiquei, ou se adormeci, porque, quando dei por mim, estava tudo escuro e eu sentia-me enregelada pela aragem agreste que me envolvia. Preparava-me para me levantar quando reparei que algo estava diferente. Não consegui perceber bem o que era... se o hotel,  cujas janelas  iluminadas não bastavam para esconder que à minha volta e mesmo em frente, em Cascais, a luz era escassa. 
- Deve ter havido um apagão – pensei. Mas, apesar de tudo estar escuro, divisei, um pouco mais à frente, no areal, um sujeito que agitava uma lanterna, em direção ao mar. Estranhei, até que reparei que ao longe, na imensidão negra das águas, um pequeno clarão brilhava intermitentemente.  
Tentei vislumbrar algo na indefinida linha do horizonte. A lua, em quarto minguante, não ajudava, mas, mesmo assim, pareceu-me adivinhar o vulto de um navio, por vezes delineado sob o escasso luar.
-Sinais Morse, pensei – recordando as histórias de espiões que tantas vezes ouvi. Mas logo raciocinei e percebi que não poderia ser. Nesta época usam-se os telemóveis... o que não significava que a minha situação não fosse inquietante, pois o mais certo era estar a presenciar alguma atividade ilícita, possivelmente contrabando ou algo pior. Por isso, decidi manter-me quieta e semi- escondida.
Não sei de onde surgiu outro vulto, de gabardina escura, que se dirigiu ao sujeito da lanterna. Começaram a falar e eu achei que era a altura certa para sair dali.
Ergui-me para retroceder, quando os ouvi gritar numa voz gutural. Voltei-me e vi ambos a correr em minha direcção, com um ar muito pouco amigável. Em pânico, comecei também a correr, sem pensar, sequer de onde me vinha a sensação de perigo que me toldava o raciocínio. Sentindo-os cada vez mais perto, apercebi-me que os malditos saltos me dificultavam a corrida, pelo que fiz saltar os sapatos, conseguindo, por fim, distanciar-me.
Maldita ideia! Uma estúpida ponta de rocha meteu-se no meu caminho, fazendo-me tropeçar e estatelar-me na areia! Uma dor aguda fez-me temer ter partido um dedo do pé... mas não tive tempo para  me certificar, pois já dedos de aço me erguiam do solo e me abanavam com violência. “Quem és?”, perguntaram-me em alemão... não respondi. Os escassos três meses que estudei alemão, antes de desistir de germânicas e enveredar pelo jornalismo, não me permitiam falar. De qualquer modo, também preferia fingir que os não compreendia...
O outro já se aproximara e mostrava-se ainda mais furibundo. Dirigiu-se a mim com uma algaraviada indecifrável. Dessa vez, nem precisei de fingir! Quem diabo pensam estes gajos que são? 
Depois de muitas exclamações que me soaram a ameaças e impropérios, pareceram desistir.  
- Acho que estou safa! – pensei – aproveitando para erguer do chão a minha mochila.
Por azar, esta abrira-se e os meus haveres espalharam-se pelo areal. Peguei de imediato no telemóvel, que se iluminara com a queda. Os meus perseguidores olharam, primeiro admirados e logo enfurecidos.
- O que é isso? - perguntou um deles, arrancando-me o aparelho das mãos. Dessa vez entendi e até me esqueci de fingir.
- O meu telemóvel!
- O quê? - insistiram. Só nessa altura me apercebi que ambos trajavam fatiotas estranhas. Pareciam saídos do filme “Casablanca”. 
Ou viajei no tempo, ou estes gangsters são dos Apanhados – pensei. Deve mesmo ser isso... que raio de brincadeira! As minhas coisas continuavam espalhadas na areia e corria o risco de ficar sem elas, pois não se via quase nada. Dei uma gargalhada e gritei-lhes: Basta! Já vi que são dos Apanhados!
Uma estalada foi a resposta do energúmeno da gabardina. A força foi tanta que me deixou atordoada. Quis protestar, mas voltaram a agredir-me enquanto me arrastavam para um buraco escuro.
Pareceu-me depois ser empurrada por um túnel, cujos lados eram iluminados intermitentemente pela lanterna do primeiro indivíduo que vira na praia. Gritei, mas senti um cano duro a pressionar-me as costelas, enquanto me mandavam calar, empurrando-me depois por um corredor até um dos quartos numerados do hotel.
Sentaram-me numa cadeira e dispuseram-se a continuar o interrogatório. Depressa se convenceram que não havia hipótese de diálogo e conferenciaram em voz baixa, enquanto me apontavam uma arma.
O indivíduo da gabardina saiu, regressando passados uns minutos, com outro capanga.
- O que se passa, Wortus? - perguntou o terceiro indivíduo, que usava igualmente elegantes vestes de início do século passado.
Os três afastaram-se um pouco, falando em voz baixa, enquanto manuseavam com estranheza o meu telemóvel. O tal Wortus continuava a apontar-me a arma - começo a acreditar que viajei no tempo!!! - pensei, enquanto observava o quarto, cujo mobiliário antigo em nada destoava das vestes dos meus carrascos.  
A situação era tão estranha, tão inacreditável que continuei convicta tratar-se de uma montagem... No entanto não tive tempo para raciocinar.
O terceiro elemento acercou-se de mim, mostrando-me o telemóvel. 
- Me llamo Hernandez. Entiendes español?
- Um pouco
- Estás metida num grande lio. Mis amigos no mienten quando me dicen que te matan se no lhes disseres quien eres e lo que hacias en la praia.
O espanholês dele deu-me ânimo para me explicar.
- Sou jornalista. Fui ver o mar e devo ter adormecido. Agora, agradeço que me deixem sair, porque deixei cair a mochila e posso ter perdido coisas muito importantes, que necessito recuperar.
O tal Hernandez voltou-se para os outros, falando-lhes em alemão.
- A mis amigos no le gustan los periodistas... para quien trabajas?
- Para a revista “Maravilhas de Portugal”.
- No conosco. De quien es?
- É uma revista de viagens, mas também tem artigos sobre sociedade.
- Nunca ouvi hablar della. Y esto que és?
- Um telemóvel.
- Para que serve?
- Para telefonar, claro! Mas vocês estão a gozar comigo, ou quê?
- Para telefonar como? - perguntou com ar incrédulo.
- Experimente. Marque um número.
O espanhol olhou desconfiado para o pequeno aparelho e voltando-se para os outros, falou-lhes em alemão. Pareceram ficar furiosos, mas ele apontou para os números do telemóvel e acho que os convenceu.
Estendeu-me o telefone e ordenou – Marque usted!
- Para quem?
- Peça à telefonista el número del Hotel.
- Telefonista? Qual é o número? 
- O Hotel és el 25.
Não me parece que esse número exista... a não ser que eu esteja a viver um pesadelo. Certo é que as viagens no tempo também não existem, mas estes homens empenham-se em fazer-me crer que sim... ou pôr-me louca. O melhor é fazer o que me ordenam...
Digitei os números, esperançada em ouvir, do outro lado da linha, uma explicação para esta palhaçada que já ultrapassou todos os limites, mas apenas ouço uma mensagem de que o número não está activo. Mensagem repetida em português, inglês e francês!!!!!!!!!!!!!
- Que se passa? Con quien estas hablando?
Agitados, os outros aproximam-se... como é que eu não reparei que accionara o alta voz? 
Vociferam! O que é que eles querem?
Furiosos, pegam na mochila e despejam-na. Apenas um corta-unhas, as chaves e... as fotos!!!!!!!!!!!
Meu Deus! Onde ficou a minha carteira e a pequena máquina fotográfica? Preciso de recuperá-las antes que desapareçam, cobertas pela areia!
Esqueço-me de onde estou e tento levantar-me. Uma coronhada na cabeça devolve-me à realidade. 
Rosnam palavras ameaçadoras. Mostram-me as fotografias.
- Que piensas que vás a hacer com estas fotos?
-Estive a entrevistar a senhora Vera Mouths. Foi por isso que aqui vim!
- Mentes! O Ferdinand e a Vera não estão em Portugal!
- Acabei de falar com ela – insisti.
Sem dó nem piedade desataram a agredir-me, ordenando que confessasse quem era e o que fazia com aquele aparelho de espionagem.
Como não tinha nada a dizer e eles não aceitavam a verdade, calei-me. Arrastaram-me então para a casa de banho, onde me mergulharam a cabeça na sanita, puxando pelo fio do autoclismo.
Devo ter perdido os sentidos por instantes. Quando comecei a recuperar, os meus carrascos falavam entre si, em alemão. Pouco consegui perceber, mas pareceu-me que falavam do casal Mouths. «Temos de contactar a águia negra. Vê se ela pode regressar ainda esta noite. Provavelmente ela tem conhecimento das atividades desta mulher». Baixaram as vozes, discutindo quase em surdina. Segundo me pareceu não estavam de acordo com o que haviam de fazer comigo.
Começava a pensar que iria morrer ali, do modo mais estúpido que conhecia, quando bateram à porta, com força.
O tal Wortus foi abrir, enquanto os outros se aproximaram de mim, e vendo que estava a recuperar, me mandaram ficar calada.
Um rapazito espreitou com ar amedrontado.
- Senhor! Está lá em baixo a Polícia! Querem falar consigo, porque o Salazar exige que se arreie a bandeira alemã, aqui do hotel.
- O quê? Não percebo nada!
Hernandez foi falar com o miúdo, que pelo tom de voz parecia estar amedrontado. Pretendeu saber como é que o Salazar teria conhecimento da bandeira hasteada e mostrava-se irado pelas ordens do governante.
- Não sei de nada, dizia o miúdo, já a chorar... mas parece que passou por aqui, vindo de Cascais. Parou o carro e disse aos polícias que o seguiam para cá virem...
Maldito intrometido! - Rosnou Hernandez que se apressou a traduzir a conversa aos outros.
Só quando vi a fúria genuína do trio, comecei a compreender que estava mesmo a viver um episódio dos anos 40... como se  isso fosse possível!
Será isto um pesadelo? pensei, beliscando-me. Mas a dor intensa que senti, tal como a água que me encharcava os cabelos e o rosto, fizeram-me ver que estava bem acordada.
Os meus carcereiros mostraram-se atrapalhados. Meteram-me um trapo na boca, ataram-me as mãos à torneira e fecharam-me na casa-de-banho, ordenando-me silêncio.
Assim que os ouvi abandonar o quarto ao lado, tentei soltar os braços, puxando com tanta força que a torneira começou a ceder. Quando, por fim, a arranquei da parede, consegui libertar-me das cordas e retirar o trapo da boca. Procurei, então, abrir a porta com todos os truques que aprendi nas séries americanas. Não é tão fácil como parece mas, por fim, o fecho cedeu e eu saí para o quarto, onde peguei na mochila, no telemóvel e nas fotos espalhadas pelo chão e saí, porta fora. Desci pela escada, atenta a qualquer ruído para me poder esconder. Quando desemboquei no átrio e não vi ninguém na receção, suspirei de alívio, dirigindo-me à portaria.
- Boa noite! Procura alguém?
Estremeci. Aterrorizada, voltei-me, disposta a correr porta fora. Mas, para meu alívio, finalmente deparei com uma pessoa normal, vestindo roupa actual e falando em português! Reparo que o átrio está bem iluminado e acolhedor.
- Não! Estou apenas baralhada! Tenho de ir à praia, porque perdi lá algumas coisas...
- Mas sente-se bem? Está toda molhada e com muito mau aspecto! Foi assaltada?
- Acho que adormeci no areal e devo ter sido atingida por alguma onda... mas tenho de voltar para tentar encontrar as minhas coisas...
- Se precisar de ajuda...
Agradeci. Pelo olhar dele, percebi que pensava que eu tinha bebido demais... mas não havia modo de explicar o que me sucedera. Eu própria estava inclinada a duvidar de mim.
Felizmente, do areal iluminado pelas luzes da Marginal, consegui resgatar os meus pertences em bom estado. Apressei-me, então, a regressar ao estacionamento e, tentando não pensar em nada, acelerei até Lisboa.
Como já disse, nunca falei a ninguém deste episódio que, inutilmente, procurei varrer da minha memória, até ver a foto da entrada da passagem subterrânea no Facebook... 

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