terça-feira, 9 de abril de 2019

[0058] J. M. Carvalho-Oliveira, reincidente nos CTP

J. M. CARVALHO-OLIVEIRA
Carvalho-Oliveira reincide nos CTP com um conto castrense em que participam personagens reais, pois a história também o é... Quanto a SN, é a sigla alterada de uma figura importante da cultura portuguesa. E mais não dizemos...


CRIME LEVE, CASTIGO LEVE...

Só hoje entendi, através do que o S. N. me contou, uma história que se passou comigo enquanto estive na tropa nas Caldas da Rainha, há uns sete anos.

Um domingo, estava eu de oficial de dia ao regimento, recebi a informação de que um civil estava ao portão e queria falar comigo. Deparei com um indivíduo dos seus quarenta anos, vivaço, que trazia consigo dois soldados. Tinha-os apanhado na sua fazenda a roubar fruta. Nunca liguei muito a burocracias de tropa - fazer continência, usar bivaque, etc. - mas sempre reagi ao roubo. E aqui neste caso não tinha sido o simples apanhar de um cacho de uvas à mão de semear: os soldados tinham galgado o muro da propriedade e estavam a banquetear-se de maçãs quando foram surpreendidos pelo proprietário.

"Obrigado por tê-los trazido. Vão ser devidamente punidos. Peço-lhe desculpa pelo que eles fizeram." Devo ter dito isto de uma forma muito séria. O homem imaginou de repente que eu iria estragar para sempre a vida aos rapazes e arranjar-lhes cadastro criminal. O caso não é para tanto, terá ele pensado. E quis falar comigo em particular. "A participação oral está feita. Roubar é mau, seja na tropa, seja fora dela. O serviço militar também faz parte da educação", retorqui-lhe eu. Entretanto, o homem terá feito subrepticiamente um sinal aos soldados, que desapareceram.

Admito que fiquei fulo. Logo que me despedi do civil, mandei tocar a reunir. Com uns cem soldados em formatura - não havia mais por ser domingo - passei-lhes revista para tentar descobrir os "fugitivos". Só me lembrava das sobrancelhas enormes de um deles: outros soldados brincalhões costumavam até dizer-lhe "Deixam-te andar aqui na tropa com o cabelo tão crescido?" Divisei-o facilmente, lancei-lhe a mão ao ombro e berrei-lhe ao ouvido: "Onde é que está o outro?" Indicou-mo de pronto. Mandei destroçar o grupo e, juntamente com os dois soldados, fui para o meu gabinete redigir o auto. Entregá-lo-ia pessoalmente ao comandante no dia seguinte.

O comandante, Álvaro Salgado, era um imponente coronel, de costas bem direitas e rosto anguloso, marcado por um trejeito especial que lhe dava um ar particularmente severo.

Severo deverá ser o castigo que ele lhes vai dar, pensei eu. Mas pensei mal. Os dois soldados mais não receberam como punição do que duas guardas cada um. Era o castigo mais leve que se podia imaginar. Confesso que não entendi. Perguntei a mim próprio a razão daquela não-austeridade de uma pessoa de tão poucas palavras e aparentemente rigorosa em extremo.

Hoje o S. N. contou-me a história que eu desconhecia do Álvaro Salgado. Quando tinha ainda a patente de capitão, ele estivera em Macau em comissão de serviço. Aí, amante da vela, tinha-se aventurado um pouco mais num snipe e, inadvertidamente, entrou em águas da China. Foi preso pelas autoridades chinesas, alegadamente por espionagem. O pobre do Salgado viu-se atirado para uma cela, onde foi interrogado várias vezes, sem obviamente confessar nada porque nada tinha a confessar. No princípio do seu cativeiro, guardas irrompiam de noite pela sua cela dentro e sujeitavam-no a novos interrogatórios. Obrigavam-no depois a mudar de cama para lhe criarem maior instabilidade.

Aos poucos, porém, os chineses convenceram-se de que Álvaro Salgado não era espião. Dados os seus bons conhecimentos de línguas que recebera na Escola Alemã do Porto, acabou por ser convidado a colaborar com a China em emissões de rádio para o estrangeiro em língua alemã e inglesa. Do mal o menos. Ele aceitou.

Entretanto, em Portugal a sua família desdobrava-se em esforços para conseguir tirá-lo da China. Mas não era fácil. Um amigo, o Professor Ruy Luís Gomes, intercedeu junto do governo francês para que, através dos serviços consulares na China, os franceses dessem uma mão a Álvaro Salgado. Só ao fim de sete anos é que esta longuíssima cunha - do extremo ocidental da Europa ao Extremo Oriente - funcionou. Razão imediata: o estado periclitante de saúde da mãe de Álvaro Salgado.

Saiu da China o capitão Salgado, via Hong-Kong. Aqui foi questionado por um agente da CIA sobre o que tinha visto durante a sua longa estadia. A China era então um país muito fechado aos ocidentais e toda a informação podia ser importante. Salgado contou-lhe a sua história e as suas vivências com um certo detalhe. Quando, a certa altura, lhe narrou que, numa das suas forçadas mudanças de cama na prisão, tinha encontrado uma tarimba com os dizeres Bill slept here, o agente pediu-lhe que repetisse. Nem queria acreditar. Aquele Bill só podia ser o piloto de um avião U-2 americano que tinha em tempos sido abatido quando sobrevoava a China e que as autoridades chinesas tinham oficialmente declarado morto. Agora os americanos poderiam reencetar acção diplomática para o recuperar. O agente agradeceu muito ao oficial português a sua colaboração e disse-lhe que não hesitasse em recorrer a ele se por acaso tivesse algum problema.

Reentrou o nosso homem em Macau. Foi recebido como herói. Manifestações sobre manifestações e bebedeiras de oficiais sucederam-se umas às outras. Mas ele tinha que regressar a Portugal, o que fez de seguida. Aqui, ainda lhe deram a oportunidade de ir ver a sua mãe ao Porto e depois… prenderam-no! Ficou na Trafaria, onde se encontrou com o S. N., que assim soube da sua história. A polícia prendeu-o sob a alegação de que era comunista: vinha da China e tinha ligações com o Professor Ruy Luís Gomes. Além disso, colaborara com os chineses.

A situação não era brilhante. Álvaro Salgado lembrou-se do seu amigo da CIA e tentou por seu lado uma longuíssima cunha, mas em sentido inverso. Por intermédio de amigos conseguiu o contacto com o agente americano. De Hong-Kong veio a certa altura uma carta para o adido militar da Embaixada Americana em Lisboa. Que contactou Salazar. Este, talvez algo relutantemente, mandou soltar Álvaro Salgado, que entretanto passara mais de dez meses na Trafaria. O exército português fê-lo promover ao posto de coronel e colocou-o como comandante do Regimento das Caldas da Rainha. Onde eu o fui encontrar.

Compreendo agora perfeitamente a razão por que ele não deu mais que duas guardas de castigo aos soldados por terem roubado de uma propriedade privada um punhado de maçãs numa tarde de domingo.

Lisboa, 12 de Novembro de 1967

Sem comentários:

Enviar um comentário