sexta-feira, 12 de abril de 2019

[0060] Mário Pereira, a moral de um bago de feijão


Do escritor angolano Mário Pereira, Contos da Tinta Permanente trazem aos seus leitores um texto que, traduzido do umbundu, é como segue.


O BAGO DE FEIJÃO

1. Era meio-dia, na região da Kabala em Luanda; em Kaxombo e Kaswalala no Dondo; igualmente em Pungu a Ndongo em Malanje, e o solo erguia, naqueles lugares, uma haste encimada por um bago de feijão dividido em duas partes iguais. 

2. Mais um ser vivo, daqueles que dão vida à vida, acabava de mostrar que a natureza, ela mesma, tinha o dom de acordar, com uma simples gota de orvalho, qualquer ser que, vivo, ainda se queira manter. 

3. Exausto, o bago espera, esperançado, que ele mesmo vire rebento que faça vir na haste aprumada, a verde folha que enleva quem do prato à boca o leva. 

4. No manto verde onde se apruma, mil e um vermes o atacam, da raíz à folha, no vil intento de o terem à boca, mastigada, para saciar a interminável fome que os acompanha até à morte! 

5. Ao contrário, muita mente labora para ver o vil carrasco tombar a vida em veneno que o banha até finar, para gáudio de quem espera ter o bago impune; sem o furo onde se acoita o bicho que o molesta até à invalidez.

6. Só assim, o bago, unido a outros comparsas da mesma espécie, ganha o  vigor que alimenta um povo, uma nação! 

7. A fome, como fonte impulsionadora do trabalho, que ironia, leva à labuta quem longe a quer ter, para vencer o terror que causa, quando assenta em lugar onde a gente mora; no estômago dolente que ele adora! 

8. Matar a fome é matar o verme que leva à morte quem se levanta ao sugar a água que o alimenta, em combinação com a terra que é santa, quando levanta a haste que uma semente gera sem ser molestada por um bicho qualquer que a espreita! 

9. O baguito, não querendo entrar sozinho na boca de quem o espera com a ansiedade de um glutão, chama os amigos da mesma rua e, mergulhados em molhos vermelhos da polpa de dendém, unem gente que se senta à mesa ou numa esteira pousada no chão; gente que delira com eles na boca, enquanto o mufete se acalma no prato! 

10. E, quando o odor da morte enferma a alma da gente que vê fugir quem ama: um amigo de longa data; um conhecido ou vizinho da rua de trás, vêm a correr mergulhados na kanjika obrigatória no dia das cinzas, de modo que é imoral quem ouse imaginar deixá-los de fora, o que a acontecer, a sua ausência tem o significado de que a cinza não foi varrida, o óbito não foi terminado e, para ser mais explícito: o óbito ficou pendente! 

11. A imoralidade atinge o seu máximo limite quando o cidadão que é meu vizinho esconde a panela do feijão só para sentir, que egoísmo, para si, o odor que diz ser bênção que o Senhor mandou; quando supõe que o direito de o ter à sua frente é exclusivo à sua pessoa!

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