terça-feira, 16 de abril de 2019

[0062] Nuno Rebocho, um contador de histórias

Menos conhecido é que Rebocho é um contador de histórias. De exemplo, serve esta sua “Novela da Cidade Velha”, escrita em Cabo Verde.


EL PREDADOR


I

Encosta riba, lá onde a extensa achada começa a definir-se num primeiro patamar, já se podem encontrar as galinholas mais atrevidas. Galinhas do mato lhe chamam. São aves de penas acinzentadas e camufladoras, maiores que as galinhas de terra, mais pernilongas, pescoço alongado, cabeça dir-se-ia negra. O corpo fusiforme e as asas anchas, a conferir maior sustentação ao voo, distinguem-nas das primas galináceas pica-no-chão tanto no porte como na capacidade de se elevarem aos céus e planar sustentadamente por longas distâncias. Raramente se descobrem isoladas. Preferem a proteção do bando, por vezes de seis, oito exemplares, debicando parcas sementes e bichezas. Ao rés dos trilhos que atravessam as matas de acácia que cobrem cutelos e achadas facilmente se depara algum casal acompanhado de franganotes, já desenvolvidos em tempos de maio e de perdição: em mês de festas que atiram por junho adentro, depois da procriação que faz as galinholas mais esquivas, tornam-se cobiçada iguaria para palatos exigentes. Então a caça redobra.

Galinhas do mato, pois, assim as designam. Também galinhas de angola ou galinhas da guiné, galinholas são nomes useiros, com razão da origem. Porque não são autóctones. Salvo a halcion (vulgo, passarinha), nada em Cabo Verde é autóctone: tudo veio com o povoamento que, a partir do décimo quinto século, animou estas ilhas até então desertas de animais, homem incluso. Ao contrário de moscas e mosquitos, gafanhotos, tchotas, corvos, cagarras, fragatas e alcatrazes, as galinholas não terão arribado por motu próprio ou arrastadas pela fatalidade dos ventos. Seriam mãos humanas que alguma vez as trouxeram. Depois multiplicaram-se.

No caminho para Salineiro, mal a achada, numa primeira dobra, alteia a uns quinhentos metros sobre o mar, lobrigam-se as galinhas do mato no refúgio de acácias e babosas. E, à medida que o viajante investe para lá de Salineiro, no rumo de Santana, a cada passo se avistam mais e mais, aqui disfarçadas na morabeza das purgueiras, além de Lapa Catchor e já no ramal para João Varela não menos. Se se marcha pelo canyon de São João Batista com destino a Belém, mais do mesmo. Ou pelo de Alfarroba. Ou subindo para Mosquito Horta. Por toda parte, elas se conjugam com o estoiro de caçadoras de chumbo e bacamartes e fazem abundância no território da Ribeira Grande de Santiago.

Adaptaram-se ao sequeiro, à atmosfera sufocante de poeiras suspensas que cansa por estas extensões, a chamada bruma seca. Quais perdizes, adotaram covas por ninhos onde largam os ovos e os incumbam, aproveitando os segredos das achadas para industriar os filhotes enquanto a penugem os cobre e lhes proíbe o voo. Aprendem então a escarafunchar. E crescem.


II

Alfonso Tércio y Tércio era o mais famoso caçador de galinhas do mato de Praia e Cidade Velha. De Praia porque, embora nascido em Santiago de Cuba, Alfonso todos os fins-de-semana pegava na espingarda, sua segunda pele arrumada na capital de Cabo Verde, e metia-se aos caminhos, regressando sempre com numerosas peças que ofertava aos amigos ou ele mesmo cozinhava para pantagruélicas petiscadas comunais que honravam as manhãs de domingos e, por norma, se afundavam de barriga cheia ao fim da tarde. Que era homem de convívios este fiel admirador dos barbudos da sua ilha: castrista indefetível, o cubano juntava o respeito pelos heróis da Sierra Maestra ao visceral repúdio das políticas ianques que tinham o poder instalado em La Habana como inimigo a abater. Abominava os exilados em Miami e, ainda que ele fosse também mais um que partiu de Cuba, detestava que o confundissem com os “reacionários”.

Era de facto diferente o seu caso. Alfonso viera para Cabo Verde nos bons tempos da cooperação, quando Cuba era tida por luz dos países de África apodados de progressistas, fosse tal qualificativo o que verdadeiramente pudesse ser: quando foi quando chegaram a África médicos e técnicos militares cubanos. Tércio y Tércio, engenheiro, viera nessa leva, apaixonou-se por crioula, com ela casou e teve filhos. Em Cabo Verde ficou, cubano sempre, castrista sempre, mas preso por amor à mulher encontrada no arquipélago. Criou empresa e, por agora, era vê-lo a melhorar estradas e acessos na Ribeira Grande de Santiago.

Portanto, Tércio y Tércio era caso à parte, não identificável com as “muñecas” que se serviram de estudantes cabo-verdianos de passagem na cooperação cozinhada por Cuba em tempos velhos, armadilhando-os nos seus braços em troca de um casamento que as tirasse da ilha de José Marti. Arribadas a Cabo Verde, passados uns anos, abandonavam os maridos, buscavam novo curso à sua vida. Nem identificável com aqueles que, nas ilhas do Cabo Verde, achavam pretexto para se distanciarem de uma revolução que lhes prometera paraísos, mas de que afinal desgostavam: vinham, metiam-se em negócios nada limpos, despiam a farda revolucionária e revelavam quanto ocultaram nas origens.

Hábil caçador, este cubano refutava que a mortandade causada entre os galináceos pudesse pôr em causa a sobrevivência da espécie.

- Reproduzem-se com facilidade. Deixá-los por aí, eras prejudicial na agricultura: não escapava semente. Até deviam darme gracias.

Para provar a tese de que a multiplicação desregrada trazia prejuízo para o arquipélago, recordava o havido na vizinha ilha do Maio: as galinhas do mato sobrepovoaram de tal modo o interior daquela ilha quase plana, a coberto do arvoredo que fornecia madeira para fazer carvão, que assolaram Porto Inglês – invadiram casas, lojas, tornaram-se praga, acabando por ser abatidas em massa. 

Num aparte, explicou ele:

- Trouxeram da Guiné a galinha-do-mato e não pensaram que em Cabo Verde não há predadores. Foi por isso que, mais tarde, tiveram de importar um, vindo de Cuba – yo!


III

O terreno de caça escolhido pelo cubano sempre foi a vasta achada para lá de Salineiro, onde a plantação de acácias se deita a perder de vista: uma barbaridade. Quem não identifique a árvore maligna, ao ver o estendal pensará que se trata de algum pomar, tal as acácias se alinham a distâncias regulares. Tratou-se de terrível maldade cometida contra o país nos anos seguintes à declaração de independência, quando se sonhava com os “morangos do nordeste”: é que acácia (a chamada “acácia americana”) é infestante daninho, chupa do solo toda a água nele existente. Contribui para reforçar o sequeiro. Ainda se as plantassem em zonas de tarrafo… Mas não. Disseminaram milhares de acácias ao longo de quilómetros, num desperdício de dinheiro que mais empobreceu Cabo Verde.

- O autor deste crime devia ser enforcado numa acácia!, costumava barafustar Emerenciano que, por vezes, acompanhava Alfonso nas deambulações venatórias.

- Cala-te, respondia o cubano. E justificava: o plantio foi feito com boas intenções. Tinham a ideia de que, pondo árvores, adoçavam o clima e combatiam a desertificação.

- Com acácias? Deixa-me rir. A acácia é pior que o eucalipto. Mas o eucalipto, apesar disso, ainda serve para a indústria de celulose e para a carpintaria. A acácia para nada serve: quanto muito, dá carvão. Não é por acaso que em grande parte do mundo as arrancam e as consideram uma praga.

De facto, a estupidez do plantio de acácias reforçou a seca e ainda mais erodiu os solos. Dói o coração ver o massacre perpetrado contra a natureza, um massacre que teve antecedentes no século XIX, quando o Governador Martins decidiu colocar as primeiras daquelas árvores. Se Martins deu mau exemplo, no século XX abusaram. E merecerá homenagens quem tiver a ousadia de as mandar arrancar e substitui-las por marmeleiros e figueiras ou, porque não?, alfarrobeiras que por aqui se terão adaptado bem, fazendo fé na toponímia do município: lá está Alfarroba, na falha que se avista em Chã Gonçalves.

É no mato de acácias que as galinholas se escondem, voando em bandos por cima das árvores quando o sol se encaminha para poente – saúdam o aliviar dos calores que abrasam a achada, do mesmo modo que as cabras, as vacas, os burros e os porcos se animam com a promessa de sombras.

O sol a pino, vertical sobre a achada, não assustava Tércio y Tércio. Fazia-se ao empedrado ou aos trilhos tumultuosos do leito seco das ribeiras, conduzindo a sua pick-up pintada de camuflado como se fosse militar – era um assumir da sua antiga identidade de oficial do exército de Cuba. A camuflagem, contudo, tinha aqui um efeito contrário: não a disfarçava, dissolvendo-a na paisagem, antes a anunciava ao longe. “Lá vem o cubano!”, gritava-se mal se avistava à distância a estranha carripana. E Alfonso deliciava-se em dar nas vistas.

Ninguém estranhava suas andanças, mesmo no forno das tardes. Preparava-se o cubano para zarpar da Cidade Velha, já sentado ao volante da carrinha, quando avistou Emerenciano atravessando a rua do Calhau. Reclamou-o:

- Ei, quieres vir para Belém? Emerenciano aceitou o convite: “Não tenho nada para fazer esta tarde. Porque não? Vamos nisso. Vou contigo”.

Emerenciano acomodou-se no lugar do pendura. Alfonso avançou para Caniço e meteu para S. João, buzinou à passagem pela loja de Djon-Djon e trepou o monte até à bifurcação para Chã Gonçalves. Depois, foi o árduo caminho para os altos que encerram, nas suas dobras, a pacatez de Belém.

De súbito, correndo no trilho, duas galinholas atarantadas procuraram refúgio entre as acácias. O cubano travou. Com agilidade insuspeitada em sexagenário, Alfonso estendeu o braço para trás do banco onde a caçadeira dormia. Levou a arma à cara e, ainda dentro da viatura, apontou pela janela aberta. Desfechou. Um estrondo abafou o susto de Emerenciano, que quase saltou no assento, enquanto uma galinha-do-mato tombava sobre a terra seca e dura e a sua companheira levantava voo, assustada.

- Porra, cubano! Fiquei surdo. Estou surdo. Disparar dentro da carrinha não lembra ao diabo, xiça!
Alfonso riu-se e foi buscar o troféu tombado na secura. Emerenciano saiu da pick-up, agitando a cabeça, a polpa das mãos a espremerem-se sobre os ouvidos.

- Raio de macaco, este cubano. É mesmo maluco.

- Non puedes ser soldado, muchacho. Te susta un simples disparo! Si combatieras en la guerra…

Alfonso Tércio y Tércio tinha agora pretexto para desenrolar memórias da sua guerra de Angola, onde integrara, como oficial de engenharia, o corpo expedicionário ido de La Habana em socorro do MPLA. Estivera no Cuito Canavale, na ofensiva sobre o Huambo.

- Isto foi só uma cartucheira. Si audiras disparo dos canhões como era? Te emierdavas...

- Eu não sou soldado, não estou numa guerra. Convidaste-me para vir contigo a Belém, não foi para andares por aí aos tiros.

Emerenciano estava irritado. Mas tinha de fazer das tripas coração e aguentar. A alternativa era regressar a pé à Cidade Velha, quilómetros à torreira, que automóveis a passar por ali eram coisa mais que rara. Rosnando pragas, foi-se acalmando. Para isso servem os raios e coriscos.


IV

Do boteco de Xinda Veiga, em S. Domingos, à cândida esplanada de Mosquito Horta, o churrasco de galinha-do-mato é pitéu cobiçado. Aquela carne, rija e fibrosa, agarrada ao osso, faz as delícias de muita gente e justifica deambulações por estradas difíceis – estradas é uma maneira de dizer. Como se diz que o cubano é fornecedor das churrascarias. É boato. Ninguém alguma vez o topou em tal tráfico que, de resto, nem sequer é crime. A galinhola não está em extinção, não há quem reclame por licenças de caça nem há taxas para esta atividade. Nenhuma regulamentação existe.

Não faltam especialistas nesta caça que não precisa de ser furtiva. Certo é que Alfonso gostava de patuscadas, de convívios com amigos, cerveja e grogue a correr. E assados, até porque os cubanos são exímios no churrasco. Fama têm-na. 

Alfonso Tércio y Tércio, certa feita, congregou roda de amigos para pachorrenta tarde de domingo em Achada de S. Filipe, à saída da cidade da Praia, por Monte Vaca. Vieram uns vinte à requisição. E o cubano esmerou. Queria fazer prova da habilidade islenha, nisto rival de filipinos no tratamento de um bom porco assado.

Suíno bem calibrado comprado dias antes, ainda teve tempo para rondar as ruelas rurais da Achada. Foi morto, com facada certeira, na véspera da comezaina. Guinchou e sangrou, patas amarradas e espadeirantes, antes que se fizesse a sorte de queimar as cerdas, precedente do desmonte das miudezas. Tudo a cargo do cubano, que só ele teve alforria para matador, talhante e assador.

Ficou a carne a esfriar de um dia para o outro, no pela-manhã lá estava Alfonso a cavar um buraco de mais de dois metros de comprido para, no fundo, espalhar carvão e lenha que alimentassem quanto bastasse o demorado braseiro que se anunciava. Para espeto, escolheu vara aparentemente apropriada: lenho grosso e extenso que, enfiado do traseiro à focinheira do bicho, iria permitir rolar o cerdo sobre o baile das chamas. Tudo de acordo com os preceitos, explicou ele:

- É assim que se hace en Cuba.

Sentou-se à beira da fossa ardente. Com impressionante calma avisou:

- Vai levar cinco horas a assar. Necessito que, de meia em meia hora, alguém venha aqui rodar o espeto para que o porco fique bem tostado. E isto cansa.

Voluntários não faltaram - entre eles, Emerenciano que, nessa tarde, acabara de conhecer o cubano, início de alongada amizade. 

Alfonso estava deliciado: ensinava arte a cabo-verdianos. De certeza que nenhum catequista se sentiria mais feliz a ensinar doutrina a efebos. O cubano estava no oitavo céu. A mão direita, descaída ao nível do joelho, segurava o espeto e, num alarde de força, rodava o pau e a sua carga.Com languidão. Com perícia. E a atmosfera emprenhava-se de um odor salivante: cheirava a crestagem de carne gordurosa. O rosto de Alfonso falava por si – do seu deleite, do seu quase orgasmo.

Em dado momento, um estoiro: o varapau que servia de espeto, cansado do suíno que aloirava ao lume, ardido de chamas e de fumo, rompeu-se e despejou o porco sobre o braseiro. Atiçadas pelo derrame e pela gordura pingante, as labaredas cresceram, afugentando tentativas de salvamento. A carcaça condenou-se a torrar até ficar carvão.

O cubano olhou o desastre. Triste e sem palavras. Levantou-se com pesar, mirou a cova aberta por suas mãos. E despediu-se do manjar. Só Emerenciano se pronunciou:

- Pronto! Ficámos a saber como se assam porcos em Cuba!

Alfonso mirou-o de alto abaixo, com o espesso sobrolho alteado. Depois, aproximou-se do rioleiro e deu-lhe um abraço. Ficaram amigos.


V

Entre o desastre da Achada de S. Filipe, na Praia, e a arcabuzada de Belém onze anos transcorreram e cimentaram amizade entre dois homens que, oriundos de pátrias diferentes, Cidade Velha reuniu: cinco séculos após alfa, a histórica urbe mantinha-se globalizante. Perdera muito do seu umbigo oceânico que a prendera e soltara do ventre do tempo. Já não era porto, nem visitada pelas armadas, os veleiros do antigamente já não se arriscavam para fundear perto da eminência dos escolhos e recifes atemorizadores como quando o mar era o acesso único à cidade encaixada no vale que muralhas de rocha vulcânica defendiam e isolavam. Os séculos talharam estradas pelas encostas e corroeram-lhe a memória da origem – fixaram a Ribeira Grande ao chão da ilha, deceparam-na dos seus braços marítimos, mas não destruíram o cadilho: continuou a ser o laboratório onde se amalgamavam fluxos diferentes que convergiam para uma mesma massa de diferenças, para uma comunidade onde o elo comum era o diverso. Esse continuava a ser o milagre, o mistério e o encanto da Cidade Velha: a sua origem e o seu destino.

Alfonso viera de Cuba. Emerenciano de Portugal. Cidade Velha os juntara. Cada qual com o seu percurso e a sua identidade, consideravam-se hoje ambos tão cabo-verdianos como os cabo-verdianos. E ambos assumiam Cidade Velha como bandeira. Estranho vazadouro aquele… Talvez lugar nenhum do mundo tivesse igual condão para reunir o antes disperso e com ele construir os elos de uma corrente.

Emerenciano e Alfonso tinham o crioulo como o esperanto do seu diálogo. Deformavam-no, reconstruíam-no, reformulavam-no, tropeçavam na sua gramática e inventavam um crioulês no qual se entendiam. A língua da terra, tal como no início dos tempos, continuava a refazer-se, mercê dos contributos que ali desembarcavam e desprezavam cristalizações. Por isso mesmo era crioulo e recusa do definitivo, matéria-prima e plástica, húmus sempre renovado e renovável.

Contrastavam. Alfonso era guerreiro, reivindicava o seu passado militar e a espingarda era parte de si mesmo como os braços, as pernas, a boca ou o sexo. Emerenciano proclamava-se pacífico e pacifista, mas a companhia do cubano era-lhe tão prestimosa como o bode o é para a carraça. Completavam-se. Tornavam-se indispensáveis.

Homem de armas, o cubano disparava por alimento. A bala não lhe fazia sentido se não trouxesse provisão. Em Angola tomara o vício da caça. Em Santiago de Cabo Verde, a galinhola valia-lhe agora de antílope ou de pacaça. E, sempre que podia, metia-se pelos matagais de acácias e espinheiros em busca de alvos. Torcia o nariz quando Emerenciano o admoestava: que as galinhas do mato eram bem comunitário e, como tal, a comunidade deveria ser ressarcida do abate; que à caça só tinha acesso quem pudesse comprar arma e munições, pelo que a melhor fortuna deveria ajudar os desfavorecidos – defendia o licenciamento dos caçadores, tanto pela necessidade de preservar as espécies, tanto pela justeza da redistribuição das sortes. Mas, dizendo-se embora socialista, Alfonso Tércio y Tércio chegando aí, estancava: era socialismo a mais, dizia.

Não abdicava do seu exercício. Todas as semanas empunhava a caçadeira e internava-se por achadas e cutelos. Dois ou três disparos, recolhia os despojos e regressava feliz, repartindo depois a carnuça pelos amigos. Mas nem sempre os azimutes certificavam o seu mapa. Exemplo foi uma vez que a caçadeira desfechou sobre cabrito, o que deu protesto dos aldeãos. Desculpou-se: pensava que o caprino não tinha dono, que também houvesse por ali “cabrito do mato”. Haver, havia, mas não era o caso. 

Na verdade, tudo se perdoava a El Predador. Popular, acamaradava pelos lugares, gostava de ajudar no que podia – um conselho, um alvitre, a reparação de um artefacto. E não recusava farra para que fosse convidado. Era o “cubano”, personalidade famosa desde a Malagueta até Monte Tchota.

Porém, certo dia, o caldo quase entornou devido a erro de montaria. Foi pelas bandas de Santana. Alfonso abandonara a carrinha e galgou uma barreira. Tinham-lhe dito que no vão de uma ribeira seca vadiavam cabritos do mato, dos verdadeiros.

- Cabritos do mato, de verdad?, inteirou-se.

Que sim. E ele que ansiava estrear-se na modalidade! À distância, divisou enganadora mancha, atrapalhada pelas ramarias na hora de lusco-fusco. Não era mais alta que uma cabra, de pelagem parda escura. Levou a arma à cara, apontou. Disparou. O vulto tombou. Era um jumentinho, pequenote como são os asininos de Cabo Verde. Os olhos dóceis e sofridos no estertor ainda viram o cubano aproximar-se e estarrecer.

Desde então, Emerenciano, para o arreliar, atazanava-o quando ele regressava das caçadas:

- Ei, Predador, encontraste hoje burros do mato?

Tércio y Tércio respondia com sorrisos. Era bravo apenas nas caçadas.

1 comentário:

  1. Uma história magnífica, cuja narrativa nos transporta à ilha e nos permite vivenciar o ambiente. Formas voluptuosas, seca, fauna e flora local são-nos dadas a conhecer de forma viva, como um filme.

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