sexta-feira, 17 de maio de 2019

[0073] Mais um belo conto de J. M. Carvalho-Oliveira

J. M. CARVALHO-OLIVEIRA
Deste nosso recorrente colaborador, mais um conto em que a morte é encarada de modo natural, pois também faz parte da vida.

ESCRITO COM PENA DE GAIVOTA


Passear ao longo de praias quase desertas é um verdadeiro prazer. Passeia-se higienicamente, em tronco nu ou coberto, para contrabalançar os dias de trabalho seguidos e as multidões que nos acompanham nas ruas, nos transportes públicos, nas lojas. Espraia-se o ego, renatura-se o ser, reflecte-se a vida.

Um passeio em Maio, pode ser imensamente belo. Já há temperatura convidativa, os areais continuam praticamente desertos - embora se anotem alguns surfistas, casais jovens que se adunam, tisnando o corpo e gozando a dois o prazer da natureza.

Quando passeio, vou por vezes acompanhado. Hoje, fui sozinho. A manhã amena, com um sol algo tímido mas agradável e com ausência de vento, convidava a um esticar de pernas no longo areal com cerca de três quilómetros de extensão. O abrir e fechar de braços, em estilo de ginástica convencional, faz estalar uns ossitos, ao mesmo tempo que, com a sequência, causa umas primeiras gotas de suor no rosto; produz a saudável sensação de que nos estamos a desintoxicar e a voltar à forma.

Os pensamentos, se é que os há, são sobre a vida. São generalidade e não especialidade. À minha frente, um bando de duas dúzias de gaivotas, que usufruíam na areia algo do meu prazer, levantam voo quando me aproximo. Sinto-me desconfortado: por nada queria incomodar as aves. Olhei para as belas gaivotas, levantando voo sem precipitações, voltejando no ar mas afastando-se sempre. Algumas voltariam para local próximo do que tinham abandonado, já eu estava longe.

Observar gaivotas no ar é testemunhar a graça do voo e a habilidade de pairar; é também ver o companheirismo dos grupos, unidos no voo e no lugar onde pousam.

Vai um homem a pensar nestas coisas bonitas quando nota, à sua direita, que as ondas que se desfazem na praia enrolam um volume. Era uma gaivota morta. Trazida para terra e depositada na areia por uma pequena onda, foi re-levada para o mar por uma segunda. O mar surgiu-me como a sepultura natural das gaivotas.

Seixal - Foto Joaquim Saial
Trezentos metros à frente, esperavam-me no areal duas asas bem abertas ladeando o corpo de outra gaivota inerte. Jazia ao sol. Um cão branco que me viu e veio na minha direcção acompanhando-me alguns metros, farejou o corpo e desinteressou-se ao fim de dois segundos.

Dei uma pequena corrida, fiz mais uns exercícios físicos. Passei por uma rochas que quebram o areal e nas quais em tempos inscrevi três Xs, com uma pedra rija que na sua forma lembrava um coup de poing.

Do lado de lá dos rochedos, dando início a uma pEquena extensão de areal, uma nova gaivota surgiu-me na praia. A morrer. Junto ao mar, mas sem que este lhe tocasse; acocorada na areia húmida, já não conseguia mexer-se. Os olhos prescrutavam o ar desesperadamente, o bico abria e fechava lentamente. Ia morrer, percebia-se. Parei, continuei, voltei atrás. Senti que nada podia fazer naquela altura. O bico da ave abria-se e fechava-se quase sem força. Passou por mim um casal, precedido por um belo setter. Mal olharam. Passou também um homem correndo. De cabelos grisalhos, consultava o relógio que trazia no pulso: iria um segundo atrasado, ou já teria ganho um minuto ao seu tempo anterior? A tanga azul puxava por um corpo que se queria manter em forma, que não consentia que os anos lhe roubassem qualidades.

Prossegui, o meu pensamento ora na gaivota aflita, ora no mundo de interesses diversos em que nos movimentamos. Mais uns exercícios, mais transpiração, o sol a brilhar agora mais forte. Iniciei o regresso. Ao reaproximar-me das rochas, procurei descortinar a gaivota moribunda. O mar tinha-se afastado um pouco, a maré vazava. A gaivota jazia na areia branca da praia, as asas junto ao corpo, peito para cima, a cabeça de lado, os olhos abertos. Corri a trazer na concha das mãos um pouco de água que a pudesse refrescar. Já não a sentiu. Os olhos estavam abertos porque a morte não os deixara fechar.

Morrer em Maio. Assim, naquela beleza toda. Passaram-me depois pela mente todos os nossos maios; à minha frente continuava a vastidão imensa do oceano, à direita a arriba milenária. Entendi que não era para ficar triste. Afinal, estava ali dando um passeio da vida, no meio de uma natureza que um dia, mais tarde ou mais cedo, nos proporcionará o seu encontro com Maio, num desMaio derradeiro. 

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