terça-feira, 21 de junho de 2022

[132] Três textos/contos/memórias de José Manuel Oliveira

DUAS HISTÓRIAS (verídicas) COM BÊBADOS E JORNALISTAS E AINDA UMA OUTRA SURREALISTA (igualmente verídica) MAS JÁ MAIS PRÓXIMA DOS NOSSOS TEMPOS

A primeira foi-me em tempos relatada por um antigo colega de emprego, que tinha anteriormente trabalhado num jornal - durante o antigo regime -, chamado «Diário da Manhã».

À entrada da porta das instalações do dito jornal e no exterior, ou seja, na rua, encontrava-se sempre um porteiro fardado, o qual controlava mais ou menos as entradas, prestando também algumas informações úteis a todos aqueles que por qualquer motivo desejavam ter acesso ao interior do edifício. Não me recordo o seu nome, embora na altura em que me foi relatado o episódio em causa, esse meu colega até o tenha mencionado.

Descrevia-o porém, como um indivíduo alto, encarniçado e corpulento que tinha por hábito empertigar-se sempre bem encostado –o termo preciso é “colado” - à parede e puxando ligeiramente o boné para os olhos, dando várias vezes a sensação de estar com eles meio fechados.

Ora, acontece que numa porta mesmo ao lado da entrada do dito jornal , funcionava uma tasca daquelas bem típicas lisboetas, que entraram em vias de extinção há largos anos, e a respeito das quais já se realizaram até algumas reportagens e tentativas de recuperação de muitas delas - Vide aquela célebre foto de Fernando Pessoa apanhado em "flagrante de litro", pois a tasca em questão nesta história fazia ainda parte dessa família de saudosos estabelecimentos lisboetas.

Consta então que o nosso amigo porteiro, de tantos em tantos minutos, e quando a afluência humana era praticamente nula – sendo ele um óptimo conhecedor dos hábitos de entrada e saída dos funcionários, – esgueirava-se entrando na porta ao lado, em segundos , e segurando (isto segundo a descrição do meu colega) com agilidade em ambas as mãos num “de três”, uma delas amparando carinhosamente a base bem sólida e pesadona em vidro daqueles antigos copos, inclinava-se para trás e deitava abaixo mais um, regressando de um só fôlego ao seu posto, colando-se de novo à parede.

Ao que parece, tais peripécias chegaram aos ouvidos do director do jornal, tendo este um belo dia, resolvido perpetrar um plano de forma a testar os conhecimentos e a lucidez do seu fiel funcionário. Resolveu assim chegar pelo meio da manhã, o que era muito raro, e encaminhando-se em passo descontraído em direcção à porta de entrada, lá estava como sempre o nosso amigo. Aproximou-se então e atirou à queima roupa : «Bom dia! Sabe-me dizer se o senhor director já entrou?»

«- Foi pessoa que ainda hoje não vi.» - respondeu o outro numa voz arrastada do alto do seu posto de trabalho...


A outra história teve lugar na Rua do Carmo, nas antigas instalações do «Primeiro de Janeiro», e foi-me relatada pelo meu pai que era técnico de comunicações especializado em teleimpressoras (as máquinas que antecederam o FAX ) ao serviço daquele jornal na altura, embora fosse funcionário efectivo dos CTT .

Era ali logo no início da Rua do Carmo, quem sobe e do lado direito, que se abria um amplo e escuro vão de escada quase sempre aberto dia e noite, o qual dava acesso a um primeiro andar elevado, onde se situava a redacção do «Primeiro de Janeiro». Havia também uma pequena janela na empena norte, a qual se debruçava sobre a Rua Primeiro de Dezembro e sob a qual figurava ainda há poucos anos o dístico “Primeiro de Janeiro”, sendo aí mesmo, na sala correspondente, que estavam instaladas as teleimpressoras, onde o meu pai (o Oliveira) e o Peixoto, velho colega e amigo, exerciam a sua profissão, alternando-se nos turnos da noite, de uma maneira geral até perto da uma hora da madrugada.

Recordo-me bem das diversas salas com as suas pesadas secretárias em madeira, apetrechadas ainda com tinteiros e mata-borrões, do cheiro a tabaco impregnado nos tetos e paredes, e até de alguns dos colegas desses tempos. A minha mãe a conduzir-me pela mão a caminho de alguma passagem de ano, sempre que o meu pai se encontrava de serviço em alguma dessas ocasiões, os outros colegas e respectivos familiares pelas mesmas razões, abria-se uma garrafa de espumante, cada um levava um bolo- rei, outros as passas, outros o vinho do Porto, outros ainda diversos acepipes, e dessa forma lá se passava a meia-noite com quem inevitavelmente estava escalado para essa data.

Ora, foi precisamente naquele vão de escada que dava acesso ao jornal, que o indivíduo se infiltrou, sabe-se lá vindo de onde ou o que já tinha bebido pelo caminho. Muito provavelmente teve necessidade de aliviar a bexiga, e aquele era o sítio perfeito . Recordo-me que a escada era antiga e escura formando um recanto ainda mais sombrio, sendo os degraus em madeira. Ao chegarmos ao patamar do jornal, deparávamos com duas portas-batentes de vidro branco e fosco a meia altura que se empurravam exactamente como nos saloons dos westerns. Ambas tinham gravadas em letras vermelhas «Primeiro de Janeiro», seguindo-se um pequeno vestíbulo e uma primeira porta de entrada que dava acesso à primeira sala onde se encontrava sentado à secretária o Cortes, de óculos, bigodinho, indivíduo de constituição magra e nevrótica, porém sempre afável e bem disposto. Seguiam-se o gabinete do Assunção, um tipo corpulento a dar para o gordo, também ele sempre simpático e brincalhão, e mais para o interior, uns outros tantos incluindo o do director do jornal – na altura o Pinto Quartim (pai da actriz Glicínia Quartim) – até chegarmos à tal sala das comunicações onde estava o meu pai, e que tinha vista para a rua Primeiro de Dezembro.

Uma bela noite, estando tudo a decorrer dentro do previsto, o indivíduo em questão subiu as escadas, empurrou as portas em vidro, atravessou o vestíbulo, e enfiando a cabeça à entrada da primeira porta (sem ser visto) onde se encontrava o Cortes , fez, "- Piiiiiiiu...!" e virando costas fugiu escadas abaixo. O Cortes, encontrando-se absorvido na sua escrita e no seu trabalho, sobressaltou –se, atirou um pulo começando a chamar pelo Assunção: "- Ó Assunção! Ó Assunção! chega aqui que está aqui um gajo que é maluco!".

O bom do Assunção lá veio em socorro do outro, mas quando lá chegou, nem sombras...

Passado o sobressalto e após o relato que o Cortes fez da situação, todos regressaram ao seu trabalho, não se pensando mais no assunto.

Nem se tinha passado ainda meia hora, quando, sob o mesmo cenário, todos se encontravam concentrados no seu trabalho e já esquecidos do incidente. Ouviu-se um ligeiro ranger de portas, um leve arrastar de pés, e eis que surge uma cabeça (sem nunca se deixar ver) onde continuava o Cortes à sua secretária, ouvindo-se : "- Piiiiiiiiiuuu!"

"- Ó Assunção Ó Assunção cá está o gajo!" – gritou o Cortes. E uma vez mais, quando o Assunção lá chegou, já o indivíduo ia escadas abaixo... 

Como devem calcular, ainda hoje estamos para saber quem seria a figura em questão.

O Cortes era a antítese (física) do Assunção. Um, corpulento pesado e bonacheirão, o outro magro, macilento e um bocado nevrótico. Ora, no dito vestíbulo, recordo-me de facto da existência de um bengaleiro onde todos deixavam os seus casacos. Contava o meu pai que durante um Inverno frio e chuvoso, o Cortes saiu de serviço, enfiou o primeiro casaco que encontrou à mão e foi-se embora. Não era pessoa que reparasse muito detalhadamente naquilo que vestia. Porém quando já ia bastante afastado do emprego, reparou de facto que as mangas do dito casaco lhe tapavam as mãos, mas como já estava perto de casa, não se desmanchou, pensando – e bem – que no dia seguinte logo tudo se resolveria e os casacos voltariam aos respectivos donos. Em situação mais embaraçosa, porém, ficou o Assunção que, como devem calcular não lhe servia o casaco do Cortes, por mais que tentasse mesmo com muita boa vontade, contando o meu pai que no dia seguinte aquele não se calava e não parava de invectivar este último: «- Arranjaste-me a bonita. Fizeste-me atravessar o Rossio em mangas de camisa com este tempo.!» (estamos a falar de uma época diametralmente oposta à que vivemos, pois naqueles tempos em tudo se reparava, até porque havia muito menos gente, existindo ainda uma coisa chamada vergonha.) Imaginem!


A VACA QUE RI

Vi-te almoçar mioleira com os amigos, em directo para a televisão, banqueteados ao redor de uma longa mesa, que se estendia através de um corredor bem iluminado por belos lustres, e todos estavam muito bem, usando gravata, microfones acolchoados e botões de punho de marca. Estavam contentes e contundendes, entoando cantos nórdicos, monocórdicos, sintomáticos de quem toma duche diariamente em hotéis de cinco estrelas, guardado por gorilas acéfalos, e transportado em limusinas liminarmente pretas, conduzidas por motoristas brancos barrigudos, que fumam marijuana às escondidas dos adversários, enquanto lá fora, um milhão de loucos maníaco-depressivos atravessam as ruas da cidade com as vacas à arreata, enchendo tudo de bostas para grande espanto nosso...

- Que garantias nos dão? Que garantias nos dão? Quais os miolos que funcionam melhor, os das vacas brancas ou os das vacas pretas? Sondagem! Faça-se uma sondagem, já! – gritavam desesperados. Aproxima-se a polícia, mocada p´ra cima, um auto-tanque com as respectivas agulhetas vai dando banho aos bichos, aos donos dos bichos e à estrada merdosa, enquanto frente às câmaras da TV, no interior, os corajosos que pretendem dar o exemplo, continuam a banquetear-se com mioleira (sim, a mioleira é saudável, vão afirmando), bem regada com cerveja a copo de forma a transmitir um ar mais popularucho...

Um grupo de anarquistas vegetarianos com as bandeiras negras desfraldadas, surge agora, gritando palavras de ordem contra os hamburgers e contra quem os consome: mocada p´ra cima, dispersam largando tudo e escorregando entretanto nas bostas. A alguns transeuntes curiosos que ousam abrandar o passo, mesmo mantendo uma respeitável distância, água p´ra cima, e aí vão eles de roldão pela rua abaixo. «Ena caramba!» exclama um deles enquanto foge a sete pés, «a última vez que assisti a isto foi em Vila Franca de Xira numa largada, mas isto é muito ,mais divertido ». Alguns já apanham pedras da calçada ou restos de bostas, arremessando tudo contra a barreira da polícia que continua a carregar, ouvindo-se vidros estalar , havendo gente de mãos na cabeça. Uma vaca entra numa pastelaria, mas lá dentro ninguém quer saber, pois todos os olhares estão colados ao écran da TV, num canal que transmite um importantíssimo jogo da Primeira Liga de futebol.

Cai a noite e faz-se silêncio. O jogo correu mal, as vacas tresmalharam-se, a polícia regressou à esquadra humilhada, vilipendiada e a cheirar mal. Os donos dos animais regressaram às suas herdades cheios de desalento e amargura, mortificados e espezinhados, após terem apanhado uma enorme bebedeira de jeropiga.

Já tarde, observo-te na TV : anuncias as normas, procedes a uma declaração formal, estás com olheiras. – “- É proibida a partir de agora, a venda para consumo, de vísceras de bovinos, etc., etc., etc.”

Meu Deus! Sinto-me verdadeiramente desmiolado. Ainda por cima detesto mioleira. Acabo por beber um grande gole de bagaço e decido ir dormir, pois devo estar louco. Enfin c´est la vie.

Nota: a presente história teve lugar em ano incerto, durante a polémica com as vacas loucas, o ministro da tutela – que já não me recordo o seu nome – os produtores, os infiltrados de sempre, e , é claro, nós os transeuntes...

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