segunda-feira, 12 de novembro de 2018

[0006] "O sobretudo", por Deodato Santos

DEODATO SANTOS, Lagos, Portugal, 1939 
Escultor, radicado no Algarve, Deodato Santos é um “poeta arrependido”. 

Na Amadora, com Joaquim Benite, marcou a sua presença com uma poesia forte e o seu trabalho escultórico admirado por Artur Bual – memórias que deixaram sinais nos Cadernos Andaime. 

A sua vibração poética transparece em Barão de São João onde o artista rumina as suas andanças pela Europa em anos de antes de Abril de 74 (Paris e Genebra).


O SOBRETUDO

                              para Joaquim Benite

É sozinho que se veste?
No Inverno é mais difícil ao dobrar-me para atar os atacadores das botas.
O que eu perguntava era se é você próprio quem compra a roupa que veste?
Não compro roupa. Visto aquela que os outros deixaram de usar ou por ter passado de moda ou por terem morrido.
A roupa reflecte sempre o estado de espírito de quem a usa. Se você não usa roupa própria é porque não ousa assumir uma personalidade própria...se a tiver. 
A roupa como tudo o que se põe em cima do corpo transmite uma marca social e tem uma função de chamariz para acasalamento.
Não só isso. Há pessoas que aguentam a mesma roupa durante um espaço de tempo mais prolongado e outras que precisam de uma mudança constante, mesmo de várias vezes ao dia, conforme as alterações humorais,  conforme a renovação anímica de que estejam necessitadas.
Bem visto.
No seu caso, que anda sempre de sobretudo, o que representa? Se não é um chamariz será um repulsivo? É uma armadura? Para não deixar entrar o exterior e não deixar sair o interior?
É uma questão de eficiência. Já reparou o tempo da sua vida gasto a decidir a roupa que vai vestir? No fundo já não sabe qual é o seu estado de espírito
e é a roupa que o vai definir. Já não veste a roupa em função do seu estado de espírito mas é a roupa que vai determinar esse estado de espírito. Já calculou o tempo que perdeu a procurar a etiqueta da roupa interior? A atenção posta nessa tarefa mesquinha vai condicionar a sua atitude para o resto do dia. Deixou de ser um homem que sai do sono e do sonho para tornar-se um homem utilitário.
Não calculei não. Mas calculo, pelo que acaba de dizer, que não traga nada por debaixo desse sobretudo. E a sua mulher deixa-o sair assim?
O que tem?
O que tem? É ridículo o ar que tem?
Acredito que sim. Como não me posso ver a mim próprio, admito perfeitamente que para si possa ter um ar ridículo.
E não se importa de ter um ar ridículo?
Não, e como não tenho hipótese de formar opinião própria aceito sem contestar nem tomar partido, todas as outras. Repare que todos nós somos ridículos aos olhos de outros, à luz das estéticas, das racionalidades e das nacionalidades que cada um tenha.
Não se olha ao espelho?
Só quando faço a barba.
Na sua casa de banho não tem um espelho de corpo inteiro?
Só um espelho para ver a barba quando me barbeio.
Qual é a sua nacionalidade?
A minha nacionalidade? A minha nacionalidade é o meu quarto. A que propósito vem essa pergunta sobre a minha nacionalidade?
Porque me está a parecer um homem estranho.
E quando é estranho não é da nossa nacionalidade.
Pois.
E, está-se mesmo a ver, é-se de nacionalidade inferior.
Pois claro.
Pois claro.
E a sua mulher não lhe diz para se vestir de um modo mais estético?
Se calhar diz, diz, mas esqueço-me… e os olhos também.
Os olhos também, o quê?
No meu espelho só vejo barba quando me barbeio e os olhos. Os olhos para ver se me reconheço. Se não me reconhecer saio, se me reconhecer não saio.
Faz bem. Reconhece, ao reconhecer-se, que não tem ar digno para sair.
Nem mais.
Admiro-me muito que haja alguém que o convide?
Ainda bem. Convidar para quê?
Para tanta coisa, para conviver socialmente.
Entre pessoas da mesma nacionalidade.
Claro. E não sofre por ninguém o convidar?... terei percebido um instantâneo pestanejar irónico nos seus lábios impassíveis? 
Pestanejar é com as pestanas.
Eu sei. Mas como nomear a principal característica do pestanejar, o instantâneo, quando tal acontece na zona labial?
Não sei. Aí está um campo em que devia aplicar a mesma atitude estética que usa para o vestir.
Que está a dizer com isso?
Além da sua formação estética para com a maneira como se escolhe e combina a roupa com que se encobre e esconde o corpo, podia dedicar-se à estética literária e encontrar a palavra que defina o mexer dos lábios, correspondente ao pestanejar das pestanas.
E que ganhava com isso?
Ganhava o acesso a uma outra área social.
Quem lhe diz que não convivo já, de maneira até muito chegada, com artistas da palavra escrita e de outras expressões, daqueles ao mais alto nível do reconhecimento público? E que não opino com saber e elegância sobre obras e estilos?
Claro. Que ingenuidade a minha. Como poderia um homem como você, não andar nas vernissages, nos autógrafos, nos beijinhos.
Entre pessoas da nossa nacionalidade não se anda de sobretudo dessa maneira. 
Olhe que este sobretudo pertenceu a uma pessoa muito considerada que foi aceite, melhor dizendo tolerada, pela vossa nacionalidade.
Não me escapou a qualidade do tecido e o corte desse sobretudo. É sobretudo por isso que lhe fica mal, pelo contraste que faz consigo. As mangas tapam-lhe as mãos e a bainha pouco lhe falta para ficar debaixo dos tacões dessas botas rústicas. Para além do mais não é uma peça de roupa que se use agora em pleno verão.
Tenho frio. O frio interior não se explica.
Sou capaz de até aceitar isso. Sim concordo, plenamente. Imagino a existência de uma espécie de frio inextinguível, pronto a tolher-nos em qualquer altura menos esperada. 
Pessoas há que o sentem a cada momento.
No seu quarto? Pessoas daqui? Da sua nação?
Pessoas de todas as nações destes quartos.

1 comentário:

  1. O sobretudo serve aqui de pretexto para desnudar o homem das indumentárias com que cobre a sua condição de ser complexo. Ou seja, o homem e a teia das suas ambiguidades existenciais. Um conto bem conseguido e que gostei de ler.

    ResponderEliminar