sexta-feira, 16 de novembro de 2018

[0007] Pepita Tristão oferece-nos "Sombras e sonhos"

PEPITA TRISTÃO, Castelo de Vide, Portugal, 1951
Pepita de Alegria Sanchez Tristão Cardoso é uma veterana da imprensa regional portuguesa que, ao dia a dia das notícias, acrescenta o mister de contista permitindo-lhe o repassar para a novela muito do que perpassa diante dos seus olhos. E são contos poderosos…


SOMBRAS E SONHOS

O dia amanheceu cinzento, tal como o meu espírito.
Por entre um nevoeiro cerrado, impróprio de um Verão que se preza, diviso a tua sombra.
Chamo-te, mas não olhas para trás. Prossegues num passo apressado.
Por mais que estugue o meu, seguindo na tua peugada, quase te perco, de cinzento vestido, entre a névoa que teima em não abrir.
Corro, mas mesmo assim, a distância mantêm-se até que paras junto do quiosque onde diariamente comprávamos o jornal – o único que às 7. 30 da manhã já está aberto.
Aproximo-me, enquanto folheias um vespertino e tento puxar-te pelo braço para te chamar a atenção.
A minha mão encontra o vácuo. Tu não és senão a minha vontade de te trazer de novo à vida.
Envergonhada, pago o jornal que folheaste.
O meu coração sente-se ainda mais oprimido, enquanto, como uma autómata, me dirijo ao café onde tantas vezes tomámos o pequeno-almoço, juntos, ainda impregnados de vestígios da fusão dos nossos corpos, que nem o duche rápido conseguia apagar.
Sento-me numa mesa, solitária, frente à enorme vitrina que me separa da rua pardacenta.
Em vez da habitual bica, peço ao rapaz ensonado que me atende, meia de leite e uma merenda mista – o teu pequeno-almoço habitual – e, enquanto aguardo, folheio maquinalmente o periódico, sem atentar nas notícias.
Ainda mal recuperada, penso na visão que tive e que não posso deixar repetir-se. Parece que a dor da tua perda em vez de se atenuar com o tempo, acentua-se e se torna cada vez mais insuportável, a ponto de me enlouquecer.
Passo mais uma página, e chego às centrais.
Frente aos meus olhos, ainda viçoso, surge um pequeno botão de rosa, vermelho-sangue, preso a um cartão branco. “Parabéns. Amo-te muito!”
Fico sem reacção. Não tenho coragem para pegar no cartão, onde a tua letra inconfundível, me fascina, pois estou certa que se tentar, se esfumará, também por entre os meus dedos.      
- A senhora faz anos hoje?
Volto a mundo real e olho para o empregado que espera, de bandeja na mão, que eu desvie o jornal.
Ele apercebe-se do meu espanto e aponta para a rosa.
- Não é hoje o seu aniversário?
Impossível. Isto será mesmo real? Pego no cartão, a medo...
- Anos? Eu?
- Desculpe... não pude deixar de ler... parabéns...
Olho para o alto da página do jornal. Segunda-feira, 20 de Junho ... Não há engano.
É hoje o meu aniversário.

3 comentários:

  1. Um conto surreal? Julgo que sim, porque a autora constrói um imaginário, funde o sonho com a realidade e oferece-nos no fim uma realidade que é tão absoluta como o sentimento que guarda fervorosamente dentro de si. O mundo interior só cada um conhece a sua medida e suas profundezas, ou os seus abismos, mas também as asas com que dali se voa para destinos insondáveis.

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  2. Como sempre, comentário exemplar. Esperemos que os autores percebam que temos aqui um comentador de serviço com a classe deste e encetem conversa com ele e entre si - que é uma das coisas que este blogue pretende.

    Obrigado ao Adriano,
    Joaquim Saial

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  3. Uma pepita luzindo no meio de pedregulhos.

    Brilhante !

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