terça-feira, 4 de dezembro de 2018

[0017] Pepita Tristão e um rafeiro quase familiar...

PEPITA TRISTÃO, Castelo de Vide, Portugal, 1951

Pepita Tristão Cardoso traz dos episódios, por vezes absurdos, do quotidiano comum a matéria com que a narrativa se enche. 

Capta na bancada da Imprensa Regional a substância utilizada pelo seu outro lado - o de ficcionista.





O TIO RODOLFO 

Convidaste-me para jantar e, embora sem vontade aceitei.
No fim e ao cabo, somos casados há tantos anos, mas a rotina não entrou em nossas vidas.
Talvez por minha culpa... talvez por tua... ou porque somos ambos demasiado criativos para repetir os mesmos passos, dia após dia.
No entanto, ontem, apesar de não me apetecer, resolvi ir jantar contigo. 
Disse adeus ao único dos nossos filhos que resolveu ficar em casa numa tarde de domingo e rumamos porta fora.
Como de costume, sem destino. 
- Queres ir até às Festas do Mar, comer umas febras ou à Feira do Artesanato? perguntas sem obter resposta, pois eu queria mesmo era enterrar-me no sofá a ver televisão.
- Já vi que não te apetece, que tal a Alcabideche?
Encolho os ombros. Neste momento tanto me faz. 
Uma travagem súbita projectou-me quase atingindo o vidro dianteiro. Abençoado cinto de segurança!
Era um cão enorme e façanhudo que se tentara suicidar, atravessando a auto-estrada.
Apesar de mal lhe ter tocado, ficou parado a olhar para o carro, com um olhar infeliz.
- Só me faltava esta! – exclamas, enquanto eu tento recobrar o uso da palavra. Acho que nem lhe toquei e não sai dali!
- Deixa que eu vou ver. 
- Mas não posso parar no meio da auto-estrada! – quase gemeste.
- Tenta encostar mais à direita
A fila atrás de nós começava a formar-se, enquanto alguns apressados manobravam pela esquerda, quase roçando o animal. 
Abro a porta do carro e ele aproxima-se, parecendo querer entrar. Saio e deixo-o entrar, abrindo a porta de trás. 
Acomoda-se, como se apenas estivesse à espera disso. 
- Que é que fazemos? – perguntas
- Temos de procurar um veterinário e depois ver se tem dono.
- Num domingo, às 21 h? Onde vou eu descobrir um veterinário?
Recordei-lhe que a clínica veterinária onde levámos os nossos cães trabalha 24 horas por dia e ele dirigiu-se para lá.
Ao sair do carro, já com a iluminação da clínica atentamos melhor no animal, que nos seguia docilmente. 
- É façanhudo e velho. Parece-se com o teu tio Rodolfo – comentas com humor... afinal já te recompuseste da contrariedade...
Depois de observá-lo, o veterinário concluiu que apesar de mal tratado e possivelmente mal alimentado – deve ter andado ao abandono! – o animal não tinha qualquer ferimento.
- Onde é que vão metê-lo? Pergunta preparando-se para preencher a ficha. 
- De momento vai para nossa casa. Amanhã procuramos o dono nas imediações do local onde o encontrámos. 
- O mais certo é ter sido abandonado há muito tempo – desencoraja-nos o veterinário. Querem mesmo levá-lo?
Assentimos ambos, pensando na reacção da Bibi e do Lobo, ao receberem outro hóspede. 
Se calhar teríamos de separá-los, pois o Lobo, um pastor alemão de grande porte não devia querer concorrência. Quanto à Bibi, a minha cocker, não levantaria problemas, pois era muito brincalhona e amistosa para os outros cães. 
Só não gostava do Tio Rodolfo, que as poucas vezes que nos visitava, tinha prazer em irritá-la, pelo que logo que o via se escondia, rosnando.
Já o Lobo adorava-o, entregando-se às mais divertidas brincadeiras, quando ele o provocava.
Ensimesmada como estava nem ouvi o veterinário perguntar em que nome devia preencher a ficha do bicho, “mistura de rafeiro alentejano e pastor alemão”, só dando atenção à resposta do meu marido. “Rodolfo!”.
Sustive um impropério, até porque fixando melhor o animal, até acabei por achar umas semelhanças com o legendário irmão de minha mãe, pelo que disfarcei um sorriso, enquanto ele pagava a conta.
Gorado o nosso jantar, regressámos a casa, o que não me desagradava nada, embora a instalação do Rodolfo me roubasse qualquer veleidade de passar um serão sossegado.
Mal parámos o carro, Rodolfo saiu, dirigindo-se alegremente para a porta do jardim. 
- Até parece que conhece a casa! – comentei.
- E conhece... pelo olfacto percebe que é aqui.
Para nosso espanto, não mostrou qualquer receio do Lobo, que contra seu costume, o recebeu de rabo a abanar, com latidos alegres.
- Parece que não há crise! – exclamas.
- Ainda bem. Assim, pode ficar cá fora, na casota da Bibi.
Tínhamos comprado duas casotas, na esperança de que a Bibi se habituasse a dormir debaixo do alpendre, como o Lobo, mas ela recusara-se terminantemente. 
Assim, antes de entrar em casa fui à arrecadação procurar um dos velhos cobertores que guardara para os cães, e um prato que enchi com ração.
O Rodolfo não se fez rogado, devorando tudo, avidamente, perante o olhar sereno do Lobo. 
Quando acabou, estendi o cobertor na casota vazia, que lhe mostrei, dando-lhe a perceber que lhe pertencia. 
Farejou, entrou e ficou a olhar para mim, como quem espera alguma ordem. – Deita-te! 
Mal tinha pronunciado a sentença, eis que surge, furiosa, a minha pequena e doce Bibi. 
Latindo e rosnando, fez recuar Rodolfo, entrando para a casota, onde se instalou sempre de dentes arreganhados.
Por mais que tentasse levá-la para casa, não consegui. Resignada, e como a noite estava óptima, decidi ir procurar outra manta que estendi no chão, para que o nosso visitante se deitasse, mas... ao virar-me, não o vislumbrei por perto. 
Onde é que ele se meteu? No nosso jardim. do Rodolfo nem rasto. 
Entrei em casa, quando o meu filho mais novo espreitava à porta, com ar contrariado, por ter sido arrancado da frente do computador.
- Sempre gostava de saber o que vocês estão a fazer às voltas aí fora, enquanto a casa é invadida por cães pulguentos.
Praguejei, entre dentes. Enquanto estava a arranjar-lhe a cama na rua, Rodolfo entrara, sem cerimónias para a sala e fora-se deitar com o maior à-vontade, num cadeirão antigo que ninguém usava. 
O cadeirão do “tio Rodolfo”, como lhe chamávamos, por ser o preferido do meu tio, nas suas raras e inesperadas visitas. 
- Não me digas que não se parece mesmo com o teu tio – ri-se o meu marido.
- Brincas, mas eu começo a não achar piada. O cão tem algo estranho nas suas atitudes.  Parece compreender-nos... sempre ouvi dizer que os rafeiros são mais espertos que os outros cães.
Dada a pouca vontade que ele manifestava em abandonar o velho cadeirão e como eu já estava demasiado cansada, desisti e resolvi deitar-me, mesmo sem jantar, depois de recomendar ao meu marido para esperar que os outros filhos chegassem, não fosse o animal assustá-los, ou, como não os conhecia magoá-los.
Deitei-me a pensar em meu tio, que era pouco mais velho do que eu e sempre fora considerado a “ovelha negra” da família.
Oferecera-se para a tropa como voluntário sem ninguém saber e quando fora destacado para África, pouco antes do 25 de Abril, nunca mais dera notícias, para desgosto da minha avó materna e de minha mãe que pensava ter perdido o seu irmão mais novo.
Passados uns dez anos, sem qualquer aviso prévio, ligou para casa, dizendo que tinha acabado de chegar, e pedindo para o irem buscar ao aeroporto.
Como a avô e a mãe ficaram completamente atarantadas, vieram ter comigo, que estava com baixa de parto e  rogaram-me que fosse lá. 
Assim que me viu, abraçou-me, perguntando por todos, como se tivesse acabado de passar uma semana de férias fora.
Trazia um saco cheio de prendas para toda a família, excepto para os meus três filhos, cuja existência desconhecia. 
Com uma disposição exuberante distribuiu artefactos africanos por todos nós.
Decidiu ficar em minha casa. “Gosto de estar entre jovens”. A avó é que choramingou um pouco, incapaz de conter a felicidade de ver reaparecer o filho. 
Durante duas semanas esteve em casa, partilhando o quarto com o meu filho mais velho, deitando-se no chão, dentro do seu saco cama, pois recusou o quarto de hóspedes.
Contou mil e uma aventuras que viveu em África, aflorando ao de leve que deixara ainda alguns negócios pendentes. 
Num domingo, telefonou para a família, convidou-nos todos para jantar fora e anunciou, com a maior das naturalidades que no dia seguinte embarcava para a América do Sul.
“Negócios”, foi a única explicação.
Desde então, aparecia na minha casa uma ou duas vezes por ano, em visitas que podiam durar dois dias ou duas semanas, chegando carregado com os mais incríveis presentes, oriundos dos mais recônditos lugares da terra, e partindo, sem deixar endereço nem contacto.
Em casa, mesmo ficando no quarto de hóspedes, nunca utilizava a cama. “Mau hábito para quem passa a vida em expedições”, explicava.
Gostava de sentar-se no velho cadeirão do avô, que eu colocara em minha sala, quando a avó decidira livrar-se dos “monos” que lhe recordavam demasiado 40 anos de vida a dois e, rodeado pelos meus filhos contava histórias de indígenas, das Áfricas e Américas.
Há algum tempo que o tio Rodolfo não aparecia em casa. 
Viera pouco antes do Natal passado e desde então, até hoje - já o Outono ia adiantado - não dera notícias.
Que pensaria ele se chegasse a casa e encontrasse um cão com o seu nome? Se calhar, achava piada e soltaria uma das suas sonoras gargalhadas.
Sem irmãos, Rodolfo é para mim o irmão que não tive e, apesar do pouco contacto que temos mantido, gosto mesmo muito dele!
Pensando nisto, acabei por adormecer.
No dia seguinte andámos, com o Rodolfo atrás, pelos bairros localizados perto do local da auto-estrada onde o encontrámos. Ninguém o conhecia.
Devia ser de uns ciganos que por aí acamparam com uma data de cães, foi a opinião generalizada.
Passaram-se mais alguns dias e Rodolfo começou a fazer parte da nossa rotina. Seguia-me para todo o lado. Durante o dia brincava em alegres correrias com o Lobo e ao serão, instalava-se no sofá da sala, para desespero da Bibi, que morria de ciúmes.
- Tenho de habituar este cão a ficar lá fora – repetia eu, todas as noites, mas acabava por o deixar ficar na sala e deitar-se ao lado da cama do meu filho mais velho, que o adorava.
Cerca de uma semana depois, recebemos uma chamada da Índia.
- Deve ser o tio Rodolfo, comento, enquanto aguardo a ligação.
Era o próprio embaixador de Portugal naquele país que queria falar com um familiar de Rodolfo Meireles.
- É o meu tio – respondo, preocupada.
Incrédula, ouço a voz que do outro lado do mundo me comunica que o tio teve um acidente grave e, não resistindo aos ferimentos, acabara por falecer, horas depois.
- Quando? – perguntei, com a voz embargada.
- No passado domingo.
Rodolfo, que estava deitado aos meus pés, parece ter compreendido o meu desgosto. Levantou-se e, erguendo a pata direita, pousou-a sobre os meus joelhos. Fitando-me com o seu doce olhar, parecia querer dizer-me: - Não te preocupes. Eu estou aqui contigo e desta vez, vim para ficar.

1 comentário:

  1. Bolas, confesso que senti um arrepiozinho na pele. Não sou crente de coisa nenhuma, nem mesmo da racionalidade que prezo de perseguir. Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.
    Bem, não deve ser coisa de bruxa, mas será que não haverá uma qualquer afinidade cósmica entre os seres da natureza? E logo tinha de ser um cão, a quem, como se costuma dizer, só falta falar. Há tempos cruzei-me na rua com um cão que parou e olhou-me com um olhar tão profundo, tão perscrutante, que me perguntei: o que quererá ele de mim ou o que estará a pensar?
    Gostei muito deste conto.

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