quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

[0029] Tchalé Figueira, mais um conto

TCHALÉ FIGUEIRA, Mindelo, São Vicente de Cabo Verde, 1953
De Cabo Verde, Tchalé Figueira envia-nos mais um conto tecido nas horas em que se liberta do seu cavalete e da sua pintura 


OS MORTOS NÃO CHORAM

Já não tinha alfinetes para cravar na mente, foi à drogaria mais perto da sua casa e sem prescrição comprou duas garrafas de Bourbon falso feito de restos de pilhas de uma lixeira do bairro chineses. Tudo nele era descrédito e desolação, podia até beber urânio empobrecido, longe de alcançar aquilo que desejava. Tinha falhado em cinco matrimónios, tinha gasto milhares de dólares com psiquiatras e bruxos... bebeu incontáveis mixórdias e até esteve em Santo Antão, em Cabo Verde, umas ilhotas no meio do Atlântico, a 500 Km do continente africano, onde um famoso bruxo curava com pénis de tartaruga e grogue de arruda benzido pelo cardeal católico, a impotência.

Foto NG
Tentou tudo, mas nada funcionou. Desolado, regressou a Baltimore onde morava na sua enorme mansão. Com o tempo, sem solução para a sua miserável vida, vendeu tudo e foi para Calcutá e dali viajou atravessando a Índia. Miserável e feito um pária igual aos intocáveis, depois de longos anos chegou exausto a Benare onde viu piras com cadáveres queimando. Arrastando os pés, chegou às escadas banhadas pelo Ganges e num degrau da escada deitou-se… 

Com todo o peso do mundo em seu corpo, dormiu, pensando que estava sonhando viu o seu corpo numa pira ardendo. Não era sonho não! Aliviado soube que tinha morrido. Quis chorar, mas os mortos não choram.

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