terça-feira, 1 de janeiro de 2019

[0033] Para início deste ano de 2019, um belo conto de António Rosa, em estreia absoluta

ANTÓNIO ROSA, Vila Viçosa, Portugal, 1951
Engenheiro e professor apaixonado pelo Alentejo natal, onde desfruta da sua reforma, dedica algum tempo à macro-fotografia, coleccionando fotos de insectos, e também à escultura em madeira. 

Não tem quaisquer obras literárias publicadas e apenas colabora esporadicamente na revista de cultura Callipole (do Município de Vila Viçosa), a cujo conselho de redacção pertence.

Este é um dos seus "contos de gaveta." Outros sairão nos Contos da Tinta Permanente, logo que oportuno.


MÃOS DE ARANHA

João era o seu nome. Pastor a sua profissão, apesar de não ter ainda idade para ser profissional de nada. Ficar na escola, como qualquer rapaz com a sua idade, não beneficiava a família, segundo o pai. Assim, embora poucos, sempre seriam mais alguns escudos que entravam para o parco orçamento familiar, que a época já era de crise, e muita.

João, pelo seu temperamento aquiescente e também pela pouca afeição que tinha à escola, que lhe cerceava a liberdade, pouco se importou com a decisão.

Enquanto as ovelhas pastavam corria atrás dos lagartos, desentaliscava grilos melhor que qualquer um e na pontaria com a fisga ninguém lhe levava a palma. Tocava a flauta, que ele próprio talhara a canivete numa cana e fruía calmamente a natureza até às entranhas, regressando ao casebre já pela noite, acompanhado da Pombinha e do Piloto, os seus melhores amigos.

Um dia, na contagem dos borregos novos faltaram dois. João, embora nada dissesse, já há tempos andava preocupado com a chegada desse dia, pois sabia que a raposa tinha levado um, mas a falta do outro foi surpresa para ele.

A reprimenda do patrão e o desconto na jorna, já de si pequena, foi motivo para uma sova em casa, além das injúrias e imprecações de toda a ordem com que o pai o mimou no seu desleixo.

A sós com a mãe, esta, com a sua natural benevolência e carinho, aconselhou-o a, na próxima época de criação, ir oferecer um borrego ao São João do Monte, aquele santinho que está naquela ermida lá do alto, que ele tão bem conhece e que até sabe onde a chave da porta está escondida. Levaria umas rezas para lhe pedir protecção e sorte no seu trabalho e oferecer-lhe-ia um borrego, por cujo desaparecimento a raposa viria a ser, desta vez, injustamente responsabilizada.

Melhor pensado, melhor feito. Na ocasião própria, já com muitas crias a balir junto das mães, João levou o rebanho pela serra acima e, a meia encosta, deixou-o aos cuidados dos dentes da Pombinha e do Piloto. Agarrou o borrego escolhido e partiu, pelo meio das estevas, para a missão de oferenda ao seu santo homónimo e protector.

Já no interior da ermida, à época ainda não vandalizada, ajoelhou aos pés da pequena imagem rústica de madeira, de aspecto ingénuo, rezou as orações que lhe ensinara a mãe e começou a dialogar com o santo. «– Olha o que te trouxe. Um belo borrego para ti. Só tens que me proteger e ficas com ele. Gostas?» O santo não respondeu. «– Então não gostas?» E nada. Nem resposta. O diálogo era um monólogo.«– És mal agradecido mas mesmo assim aqui o deixo.»

João persignou-se mais uma vez e saiu. O borrego, vendo-se sozinho, começou a seguir o dono. João voltou e disse ao santo: «– Não o queres? Mas hás-de ficar com ele que foi para isso que eu cá vim.» Então atou - com um cordel que trazia no bolso - o borrego à imagem do santo, voltando a sair.

Novamente o borrego o seguiu, puxando cordel e santo, em corrida pela serra abaixo. Diz o João: «– Ai não te aguentas com ele? Agarra-te a uma esteva, mãos de aranha!»

2 comentários:

  1. Bonito e muito criativo este conto, fazendo-me lembrar Aquilino.

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  2. Um conto bem imaginado e transposto para prosa. O humor do inesperado desfecho faz render o leitor.

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