terça-feira, 15 de janeiro de 2019

[0038] Mais um conto de Pepita Tristão

PEPITA TRISTÃO, Castelo de Vide, Portugal, 1951
Na banca dos jornais, Pepita Tristão Cardoso recolhe situações que, mais tarde, povoam os contos que nos oferta. São nacos de vida transcritos para a ficção. São evocações onde a humanidade pulsa, anima, sofre e nos tange com o seu suor.


BODA MOLHADA...

Camila estava sentada no chão, sentindo nas costas a aspereza do tronco rugoso da velha oliveira em que se recostara. O olhar perdido no azul infinito e luminoso, revelava que se perdera em pensamentos longínquos.
O casamento de Isabel deixava-a apreensiva. A primeira a dar o nó fora Conceição que juntamente com Isabel eram as suas melhores amigas.
A São já tinha duas filhas gémeas e parecia não querer ficar-se por aí. Isabel certamente, em breve iria querer também ser mãe, algo que não sucedia com ela.
O seu relógio biológico andaria mais devagar?
A verdade era que nem sequer sentia vontade de criar família. Pugnava muito pela sua independência, gostava da vida que tinha, da liberdade de poder estar ali, no meio do nada, sentada na terra seca do olival da avó, sem ter de dar explicações a ninguém da forma como e onde passava o seu tempo. Gostava de chegar a casa, instalar-se comodamente no sofá a ler um livro e a ouvir as suas músicas preferidas, sem ter ninguém para cuidar excepto a sua Pantufa, uma siamesa cor de mel.
A recordação da Pantufa arrancou-lhe um sorriso indolente, que se foi esvaecendo, à medida que o calor e a quietude a mergulhavam em agradável sonolência.
Sonhou que corria, alegremente, num interminável prado verde, pontilhado de papoulas, sob um sol radioso. Sentia-se incrivelmente leve e feliz, até que as papoulas começaram a crescer, aproximando-se dela, cercando-a, ameaçadoras. Queria fugir, mas não via nenhuma abertura naquele circulo sangrento que parecia querer suga-la. Transpirava, apavorada, quando, ao longe ouviu a voz da avó: - Camila, anda para casa. As tuas amigas já chegaram.


*

O casamento marcado para finais de Outubro preocupava todos, excepto os noivos, ansiosos pelo dia em que a sua união seria - finalmente – oficializada. O vestido de noiva há muito que havia sido idealizado e, fosse Verão ou Inverno, Isabel não trocaria o modelo. Quanto ao fato do noivo, nunca fora preocupação, pois André sempre dissera que o compraria nas vésperas da boda.
Já Conceição, a madrinha e mãe das pequenas gémeas indigitadas como “meninas das alianças”, mostrara-se bastante apreensiva:
- Não sei o que escolher. Tanto pode estar calor como frio, nessa altura. E se chove?
- Se chove? Tem de chover - responde Camila - Nunca ouviram dizer 'Boda molhada, boda abençoada?
Isabel ri:
- Isso é para masoquistas. Não esqueço o dia do casamento da São. Apanhamos uma molha que não deu para esquecer. O meu blazer nunca mais pode ser aproveitado!

*

As pétalas vermelhas da rosa atrevida que lhe ornava os cabelos, começaram a cair, espalhando-se, quais rubis, na areia branca do recinto.
O grupo de músicos abandonava já o palanque, dirigindo-se, também eles, para a mesa lateral onde fora colocado o gigantesco bolo de noiva, enquanto Conceição arrancava a rosa dos cabelos negros, provocando com o movimento brusco a debandada das restantes pétalas que esvoaçaram pelo chão
Talvez por mimetismo, ou por excesso de calor os botões de rosas que ornavam a cúpula da estrutura e durante o dia haviam desabrochado, mostrando as suas pétalas brancas ou vermelhas em toda a sua plenitude e, agora, deixavam-nas agora cair, vencidas pela sede.
Conceição que procurava com o olhar um recipiente onde deixar o pedúnculo da flor, sorriu, encantada, com o tapete, ainda viçoso, que matizava o recinto.
Devagar, encaminhou-se para a zona onde as pessoas aguardavam, de novo sentadas, o champanhe e o bolo que iriam ser servidos, enquanto o animador experimentava os seus mil e um truques para entreter os convivas expectantes e, novamente, despertos para a gula.
Já o serviço de catering retirava os pratinhos com os acepipes entretanto servidos, quando Isabel e André voltaram, trajando mais casualmente, preparados para partilhar o bolo e abandonar, de seguida o recinto, rumo ao aeroporto.
Foi no momento em que André cortava a primeira fatia que o ruído ecoou sobre as vozes dos convivas, e uma enorme bátega de água se abateu sobre a cúpula.
Perante a forte chuvada, depressa se fizeram pequenas poças que, escorrendo, penetraram a zona coberta e arrastaram as pétalas aveludadas, em direcção ao jardim, onde em breve seriam húmus, fecundando a terra que, sequiosa, se abria, à húmida dádiva dos céus.
Divertida, Camila olhou para Conceição exclamando: - Eu bem te disse: tinha de chover! Todos sabem que boda molhada é boda abençoada!

1 comentário:

  1. Um conto de linhas clássicas mas retratando os tempos da actualidade. Quando comecei a ler pensei que os protagonistas eram gente do campo, gente trabalhadora, gente pobre. Mas não é.

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