sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

[0037] Nuno Rebocho e mais uma das suas fábulas

À mistura com poesia (muita), crónicas que via desfiando (já dois livros publicados - “Estórias de Gente” e “Estravagários” – e mais dois anunciados – “Quebra-Canela, aventuras & desventuras de um portuga nas ilhas do Cabo Verde” e “Estrada da Beira”), romances e novelas, estudos diversos, o autor concentrou-se num conjunto de contos “para quantos continuaram a ser meninos” a que deu o nome de “fábulas cínicas”. Esta é uma delas.



O CÃO E O SAPO

Mal o sol rompeu, ergueu-se o cão. Aspirou profundamente o ar fresco, abanou a cauda, acocorou-se nas patas de trás e ladrou. Depois, corresposta ao apelo da brisa, vadeou a quinta em rompantes. Assustou a pardalada. Agitou o galinheiro. Despertou os coelhos. O lobo de alsácia era - ficava evidente - dono e senhor. O ladrar afugentava, o vulto amedrontava, o correr aterrorizava.

Diariamente, o sol nascia e tudo o que voava aprontava-se para bater a asa às arremetidas do bicho. Tudo o que tinha pernas aprestava-se a fugir às ofensivas do canino. O animal, apreciado o sabor amplo do poder, saltava, trotava, latia às nuvens. E resfolegava.

O lobo de alsácia impunha-se. Apenas a quem lhe dava a comida e o acorrentava, ele obedecia. Então agachava-se, lambia-lhe as mãos. Aos outros, aos desconhecidos ou no porte inferiores, era demo.

Ora, naquela madrugada, o cão - na praxe de rei no quintal - uma vez mais arremeteu. E correu. Outra vez saltou. E assustou. Triunfante do garbo e da presença, reladrou. Silêncio amachucado, arrepiado, se fez na herdade. Nem vivalma se revelava, acoitada onde pudesse.

De súbito, insólito de impossível, um coaxar irrompeu detrás de um montículo. O bicho estancou, incréu. Espetou orelhas a certificar-se do que ouvia. O coaxar repetiu-se. Entesou o rabo, farejou. Atento, pata adiante, pata atrás, ginasticado, avançou. A espreitar. Para lá do monte, um charco. E ali, descuidado, entretinha-se um sapo em brincadeiras na água estagnada. Indiferente a terrores, mirou o canzarrão. Este aproximou-se. Fez-se o batráquio mais pequeno, mas permaneceu atascado, quieto e tímido.

- Xó, não me ouviste? Atreves-te a ficar, a desafiar-me?, falou com voz de baixo. Mas o sapo, amedrontado, não achou resposta que não sumido coaxo: croac.

O cão recebeu-o no focinho, como ofensa. Se irritado estava, mais ficou. Abriu a bocarra de dentes pontiagudos para o tomar entre as maxilas. O desgraçado não soube o que fazer. No pânico, prestes a despedir-se da vida, coitado, urinou-se.

Foi um esguicho salino e breve o que se entornou pelos olhos do inimigo. Suportando com dor o acre da urina, o cão deu de cego. De rabo entre as pernas, ganindo, ganindo, o lobo de alsácia pôs-se em corrida, de encontrões às árvores.

Inesperadamente salvo, o sapo respirou fundo e comentou para os seus botões:
- Chiça. Olha se eu não tivesse medo...

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