terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

[0046] Nuno Rebocho: mais uma das suas fábulas cínicas

De Nuno Rebocho, mais uma das suas fábulas cínicas: desta vez, é o peru que se prepara para as quenturas do forno, em dia de festa.


O PERU BÊBADO

Pelo Natal, tempo de festa. O peru aproximou-se da cerca, esticou o pescoço, enrubesceu e enfunou as rémiges. “Peru velho”, disse-lhe o dono. A ave envaidecida, avermelhada de gozo, agitou-se:
- Glu, glu, glu-glu-glu.

Foi isto na segunda-feira. O dono desenrolhou garrafa de medronho, encheu um copo e despejou-lhe o líquido, áspero e violento, goela abaixo. Encharcou-lhe o papo, as vísceras. O peru estremeceu, mais quente. O capoeiro esfumou-se em névoas, paisagens de sonho. Sentiu-se liberto como se as redes caíssem, o mundo agigantado à volta. Uma sede de bons sentimentos, um desejo de fraternidade pesou-lhe no bucho. Em arrepios, terno e lânguido, soluçou:
- Glu, glu, glu-glu-glu, glu, glu-glu.

Terça-feira. O peru despertou em tonturas, dor de cabeça horrível. Da festa, certamente. No imo, apesar de bico empastado, o bicho sentia-se feliz com o dono que destino lhe dera em sorte. Gratidão imensa, vinda do fundo, dos intestinos, do papo, do baço, do fígado, inundou-o. O dono fazia-o fruir das delícias, ele comparticipava da festa.
Nesse meio da tarde, aproximou-se o homem da capoeira e o peru não se conteve. Veio à rede. Meneou-se. Abriu-se em leque. Rubro de paixão, recitou-lhe um aplauso:
- Glu, glu, glu-glu-glu.
Com método, gestos repousados e calculados, o homem tomou a garrafa, novo copo de medronho para a goela do galináceo. O bicho inchou, transportado às florestas americanas. Cambaleou o passo até ao centro do galinheiro, aberto a todo o pano. Glorioso, imenso. Sublimemente grato, desbarrundou euforia e vaidade em alexandrinos:
- Glu, glu-glu, glu, glu, glu, glu-glu-glu-glu-glu-glu.

Terceiro dia, quarta-feira. O animal acordou mal disposto, cabeça pesada, pálido, com cólicas. Feliz. O universo já não se confinava à acanhada miséria das quatro redes da capoeira.
Arrastou-se, aproximou-se da vedação, asas alisando a terra, barbas em baixo. O dono sorria-lhe, ele alegrou-se. Na mão do senhor, lá estava a garrafa.
O homem de novo despejou a aguardente num copo e entornou-a pela goela do peru. O bicho dilatou as penas. O bicho cantou:
- Glu, glu, glu.
O dono pegou-lhe pelo pescoço e, de um golpe, decepou-o. Depois de depenado, passou pelo forno e foi servido no jantar da festa. Com castanhas. 

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