sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

[0045] Pedro Silva e os velhos escritos

Há demasiado tempo afastado da escrita ficcionista, o historiador Pedro Silva retirou do baú um dos seus contos escrito há anos e contempla-nos com uma interessante memória. 


O PRIMEIRO DIA DE AULAS

O início de algo muito esquisito estava prestes a ter lugar e o jovem não sabia bem como havia de reagir. Após tantos anos a fazer exactamente o que queria, às horas que muito bem entendia, apenas controlado pela mãe, ia agora para um local que, segundo os seus dois irmãos, era pior que o inferno. E, de acordo com o que ele tinha visto em filmes, o inferno era verdadeiramente mau. Tudo a arder e sempre alguém a controlar tudo e todos. Se aquele local era ainda pior… Eram sete da manhã quando a mãe o foi acordar, mas o jovem há muito não dormia. Pensava, imaginava e desesperava. «Mas», dizia de si para si, «se é assim tão mau, porque é que os meus pais vão enviar-me para lá? Eu sou seu filho e eles gostam de mim, por isso não deve ser como os manos dizem. Aliás, eles até sobreviveram muito bem ao longo de todo este tempo.» A mãe não sabia o que ia dentro do filho, em termos de amálgama de sentimentos, e, para ela, tudo eram maravilhas. «Vais conhecer meninos da tua idade», contava, sempre a sorrir, «e vais aprender tanto que hás-de ser o melhor da tua classe.» 

Mas ele não queria ser o melhor, nem o pior, apenas queria ficar em casa, sem ter que ir para aquele lugar malfadado, tanto mais que em casa já tinha aprendido muito. A avó ensinara-o a vestir, o avô a regar o jardim, o pai a jogar futebol e a mãe, bem, essa sempre lhe dera muito amor e isso era, para ele, mais importante que todos os outros ensinamentos. Em casa, também, podia sempre assistir à televisão, ou então brincar com os seus super-heróis preferidos. Naquele sítio não podia fazer nada disto, segundo aquilo que os irmãos lhe tinham dito.

Após algumas horas de dilema profundo, a fatídica hora chegou. Oito e trinta em ponto e a sua mãe a mandá-lo sair do carro, já em frente da escola. De todos os lados vinham crianças a correr, de diferentes alturas e larguras. Muitas, todas diferentes. E como o pequeno estava assustado! Não queria acreditar que não conhecesse ali uma única pessoa e que a sua mãe o enviasse para aquele local, completamente sozinho. Não valia a pena estar agora a abraçá-lo que ele nada queria saber de sentimentos. Tinha de ser um homem e aguentar tudo sem responder ou, sequer, dar a mostrar a enorme vontade de soltar a lágrima fragilmente colada ao canto do olho. 

«Como sou infeliz», pensava. «Agora, aqui, não sou ninguém. Sou apenas mais um.» E tinha alguma razão, já que iniciara ali um ciclo que iria até à maturidade, mas sem conseguir ultrapassar o anonimato, a menos que, por mérito próprio, se destacasse. A professora parecia-lhe um monstro horrendo, sobretudo porque aquele enorme pêlo, que sobressaía de um sinal perto do nariz, era terrível. Como ele gostaria de voltar a casa e sentar-se no sofá preferido a assistir a um filme de desenhos animados. Agora tudo isso parecia uma miragem, uma recordação do passado. Ali estava ele, numa casa de madeira, mas com uma textura semelhante a ferro, tal a dureza que sentia. Os colegas eram, aos seus olhos, um monte de bonecos de corda, completamente desorientados. Uns saltavam, outros rodavam e alguns gemiam. Continuava a não querer acreditar que estes eram os companheiros que lhe haviam sido destinados. Bem, concluía, a juntar a este panorama, só faltava um colega de mesa. E ali estava ele, um rapazito da mesma idade, mas de um cabelo marcadamente ruivo e com a face coberta de sardas. Nada mais a fazer. Ia ser um rico dia!

O primeiro intervalo escolar da sua vida foi até bastante emocionante. Dois miúdos haviam partido dentes um ou outro. Mesmo à sua frente uma rapariga de oito anos tinha sido atingida por uma bola projectada do outro lado do campo com tal força que, mesmo antes de tombar, teve apenas tempo de gritar «ai!». Como era triste aquela visão: conjuntos, muitos conjuntos, de crianças a fazer alguma coisa, mas sempre num ritmo desordeiro, tanto mais que era essa a única coisa que lhes dava gosto.

De volta à sala, a lição começou a ter lugar. A «professora barbuda», como de início fora alcunhada, falava, mas ninguém parecia prestar muita atenção, a não ser aquele jovem lá ao fundo que, sentindo nada mais ter a fazer, olhava para ela, mesmo não entendendo nada. A certa altura, um enorme estrondo fez-se sentir. Vinte e sete cabeças moveram-se, ao mesmo tempo, para o sítio donde provinha o ruído. E lá, naquele canto, o menino Jeremias tinha deixado cair a caixa com o lanche que, por acaso, estava a ser comido ali mesmo. 

A professora, com um ar mais aterrorizante que nunca, dirigiu-se ao miúdo obeso que, com a boca repleta de restos de bolo de chocolate, se sentia muito atrapalhado. Ninguém sabia como a professora iria reagir, mas já haviam sentido na pele, muitas vezes, as reacções das mães, pelo que todos esperavam o pior. Foi então que, do alto dos seus quase dois metros, e com uma face de tal forma transfigurada que poderia afirmar-se que se preparava para engolir o mundo, a professora obriga-o prontamente a «ficar de castigo». E, na realidade, o que isso era? Simplesmente, ficar virado de costas para os colegas, junto ao quadro negro, com umas «orelhas de burro feitas em cartão». Tantas risadas de chacota se seguiram, tantas palavras sem nexo foram proferidas e apenas um miúdo se mantinha calado, chorando por dentro, desejando, do fundo do coração, que as horas passassem o mais depressa possível e que a tormenta tivesse um término.

Porém, o relógio parecia não querer colaborar e cada minuto demorava uma hora. Mas aquele menino, com os seus seis anos acabados de fazer, rapidamente aprendeu a lutar contra a maré e, ao invés de contar afincadamente os segundos que passavam, preferiu prestar atenção ao que aquela figura, que tanto o atemorizava, lhe tentava, da melhor forma que sabia, ensinar. Porque era a missão de ambos e porque a literacia é fundamental. O menino, ainda que imberbe, interiorizara aquilo que muitos adultos não compreendem: que a educação é tão importante para o espírito como o alimento para o corpo. E mesmo que os seus pais, de fracos recursos financeiros, passassem uma vida de muitas privações para o manter e aos irmãos na escola, o certo é que eles, iletrados, não esperavam o mesmo destino para os filhos. Mesmo que para isso tivessem de cumprir o dobro da carga horária estipulada no emprego.

Aquela criança aprendera as noções básicas da vida de forma tão rápida e jurara, ali mesmo, sentado naqueles horríveis bancos de madeira, que iria lutar afincadamente para que, um dia, todos pudessem ter direito à educação e, ao mesmo tempo, proporcionar aos seus pais uma merecida reforma descansada. Se bem pensou melhor o fez – quarenta anos mais tarde tornar-se-ia reitor de uma importante universidade, introduzindo melhorias significativas no sistema de ensino nacional.

Apesar de tudo, o certo é que, no fim do primeiro dia de aulas e, independentemente de ter entendido a sua situação como um autêntico adulto, não deixou de correr a toda a velocidade para o colo da mãe, onde, sentindo-se acarinhado e protegido como sempre, pensou: «Graças a Deus que já terminou!». Mal sabia ele que nunca mais na vida iria deixar um só dia de estar numa instituição de ensino. Mas isso, convenhamos, terá de ser ele próprio a descobrir, não é verdade? Deixemo-lo descansar esta noite.”

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