sábado, 29 de dezembro de 2018

[0031] Nuno Rebocho, contador de histórias. Desta feita com focas, para os amigos e leitores em geral, como prenda de final de ano

Nuno Rebocho caracteriza-se com contador de histórias ao ponto de, por isso mesmo, surgir como personagem em romances de Vasco Resende (“Antónia, nome de guerra”). Os animais que, em muitos aspectos, personalizam os humanos, são matéria que ajudam a criticar comportamentos.

Ver mais três contos de Nuno Rebocho, AQUI, AQUI e AQUI

AS FOCAS MILITANTES

Estavam as felizes em sossego, dispostas no areal. O caçador veio. Laçou-as. Foca a foca, cada delas foi capturada, metida em gaiolas com destino ao circo. E sempre acontece em tais desgraças: os anfíbios torceram-se, contorceram-se, guincharam, viraram-se de borco, gritaram, espadanaram na areia. Era a resistência inútil dos já vencidos, apostados em que o vizinho tope que sucumbiram com honra.

Das costas de África as trouxeram para cá. De humilhadas, cruzaram o oceano no bojo de cargueiro. Sofreram dos balanços, enjoaram do percurso.

Em Lisboa despejadas: tiradas dos porões, içadas por guindaste, depositadas no cais onde comprador atento as enxergou à cata de defeito que justificasse desconto na encomenda. E atiradas para um camião, lá foram à descoberta de mundo novo, vida nova.

Assim passaram ao cenário como vedetas. Na tenda, foram libertadas - como quem diz: dilatou-se o espaço do calaboiço. O tratador recebeu-as de bastão em punho, a prepará-las para a educação das boas maneiras. As focas lá tiraram curso. À bastonada e com nacos de peixe.

Vinha todos os dias o tratador à tenda. Ali aprenderam as focas a soerguer-se sobre a cauda, a agitar os bigodes, a equilibrar bolas na ponta do focinho, a jogá-las em números de habilidade. E com algum custo, muita dificuldade, muita zanga do tratador se fez o amoldamento ideológico dos focídeos.

Durou meses o exercício. Semanas intensas de trabalho. No receio da dor, as focas aprenderam os gestos, os jeitos, as partes, os movimentos de conjunto. De cor e salteado. Não foi de um dia para o outro, não senhor. Mas aos poucos. Lentamente.

Por fim, o espetáculo. As focas figuravam nos cartazes - eram atração. Fizeram-se coqueluche. Foram aplaudidas. Os bichos descobriram o segredo da sobrevivência: empinadas, abriam as bocarras ao peixe que o tratador lhes atirava. E batiam palmas. 

2 comentários:

  1. Este conto é uma denúncia discreta do mau trato que o homem dito racional dá aos animais. Sim, tinham a segurança da tenda e o alimento garantido, mas não o importante: a liberdade. A maior maldade que se pode cometer contra um animal selvagem é capturá-lo para o submeter a tratos circenses. O circo é um espectáculo que já não se justifica nos dias de hoje. Ainda bem que se fala no seu desaparecimento, que oxalá não tarde.

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  2. A Liberdade, sempre a Liberdade, presente na pena do meu bom amigo. Até ao fim, como era no início. Excelente!

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