segunda-feira, 5 de novembro de 2018

[0003] Nuno Rebocho estreia-se no "Contos da tinta permanente" com a "Fábula do touro sem cornos"

Como se indicou no post anterior, "Contos da tinta permanente (Ctp)" sairão às terças e sextas. Porém, neste início de actividade contista, dado o interesse suscitado pelo blogue, vamos comer a esta primeira semana um dia em ambos os casos, retomando-se o calendário de terças e sextas a partir da próxima.

NUNO REBOCHO, Queluz, Portugal, 1945
Jornalista, escritor e poeta, foi criança para Moçambique onde cresceu e estudou, continuando os estudos em Lisboa. Preso pela PIDE em 1967, esteve nas masmorras salazaristas durante cinco anos. Foi dirigente político, monitor de história sindical e assessor de sindicatos. Chefiou a redacção da RDP-Antena 2, foi adjunto do Ministro da Habitação, Obras Públicas e Transportes do VI, VII e VIII Governo Constitucionais. Em conflito com a administração da RDP, demitiu-se e partiu para Cabo Verde onde foi assessor da Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santiago. Actualmente a viver em Portugal. Tem um romance e dois livros de crónicas publicados e um terceiro no prelo.


FÁBULA DO TOURO SEM CORNOS

Era o orgulho da lezíria. Foi bezerro e depois cresceu.

Bonitote, roliço, pescoço lançado e negro, bons quadris, o bicho fazia a vaidade da vacada turina. Maioral e campinos tinham-no como menina dos olhos. O agricultor - o reservatário, como então se dizia - falava dele nas conversas de café. Na vila. 

E a manada babava-se no gozo do espécimen. Reverenciado, iam para ele os melhores bocados e já lhe previam um bom cruzamento com fêmeas de registo no Livro Genealógico.

Mas, como se foi desenvolvendo, notou-se-lhe atroz anomalia: era mocho. Os chifres não medravam, tal se fossem comidos pelos ratos ou ficado esquecidos no útero materno.

O bonitote tornou-se vexame, vergonha da casta, desespero do cercado. Os outros, seus irmãos de raça, quando o bicho se fez adulto, miravam-no do alto, marravam-lhe a escorraçá-lo para lugares recônditos, menos expostos às vistas dos passantes.

Já adulto, o animal definhava no pudor de si mesmo, do defeito ridículo que para sempre o minimizava. Um após outro, os manos cornuptos eram levados ao redondel onde cumpriam, orgulhosos, o dever de touros de corrida. E não voltavam à lezíria: seguiam diretos para o matadouro.

Até que um dia, um dos que heroicamente marchara para a arena regressou - ferido, com febres, cansado, vergado ao peso de faena de gala. Contou na prado as agruras.

No cérebro dos bravos perpassou a imagem do seu destino, do castigo que homem lhes fabricara. E dele ficava isento - via-se - o touro sem cornos, o único que, pelo defeito, não dava para marradas, para deslizes sob o capote, para alvo de bandarilhas, para pegas de caras. E de desprezado o anómalo se converteu de novo em animal do dia. Entre os seus.
Foi a revolta. À uma, os animais atiravam-se, de cornos em riste, contra o tronco das árvores no afã de quebrar os pedúnculos ósseos que lhes ressaíam da cabeça. Partiram-se hastes, desarmaram-se frontes. A vacada ficou desenfeitada.

No dia seguinte, ao meter ao campo, o maioral coçou a nuca. Nunca visto o espetáculo insólito o do lado de lá do aramado. E grande o prejuízo que tudo perdido de um cuidado estrénuo agora inútil. A solução, única: falou com talhantes e fechou negócio.

De madrugada, toda a manada seguiu para o matadouro.

4 comentários:

  1. Faz pensar... Uma boa fábula e como tal leva-nos a reflectir. Afinal, história do "bonitote...mas mocho" em contraposição com aqueles que davam cornadas, provou uma fina e eficaz lição de vida. Gostei. A fábula teve e tem sempre lugar distinto, nos contos exemplares, nunca perdendo oportunidade e actualidade.
    As felicitações ao autor.
    Abraços
    Ondina

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    1. Um abraço à escritora Ondina Ferreira, pela simpatia do comentário. Vindo ele de quem vem, ainda é mais gratificante.

      Nuno Rebocho

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  2. O conto é fabuloso e o comentário da Ondina Ferreira idem aspas. Gostei imenso.

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    1. Um obrigado ao Adriano Lima, pela simpatia.

      Abraço,
      Nuno Rebocho

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