sexta-feira, 23 de novembro de 2018

[0009] Nuno Rebocho, um contador de fábulas, com a "Fábula do carneiro filósofo"


NUNO REBOCHO, Queluz, Portugal, 1945
Jornalista e poeta, com um romance e dois livros de crónicas já publicados, Nuno Rebocho é igualmente contista. Nos trabalhos ainda “na gaveta”, há um conjunto de “fábulas cínicas”, crítica de costumes e de comportamentos. Como esta historieta de um rebanho alentejano… 
Continuamos, assim, a repetição dos contistas já publicados em "Contos da tinta permanente". Na próxima terça-feira, teremos de novo Nicolau Saião.

FÁBULA DO CARNEIRO FILÓSOFO

Eram todos merinos e seguidores do chefe. Dava gosto vê-los, de lindos, lindos: o chefe balia num méhé feito de tremuras enquanto o chocalho tilintava o compasso do trote. O resto do rebanho lá vinha atrás, passinho à semelhança do do guia, no coro monótono - méhé. Vigiado por modorrento serra d’aires, o rebanho era feliz.
Quase. Porque não faltava - era fatal - quem destoasse, a ovelha ranhosa como por cá se diz. Tinha chifres espirais, retorcidos, mal-educados à definição e conveniência dos costumes: era o desalinhado carneiro filósofo, espírito anarca. Era o punk. Tinha vício tremendo: protestar. E hábito contumaz, pernicioso: contestar.
Entre dentes, o sujeito desalinhava no meio do coro tranquilizante dos balidos simétricos: “Cambada! O que o chefe faz, todos fazem. Sem imaginação, sem inspiração. Merecem o nome que têm. Carneiros, carneiros todos!”
Deste jeito se passavam dias. O chefe adiante, o rebanho atrás, passo certo, balido de mando, balidos de obediência, concêntricos, monocórdicos, satisfeitos. E o pastor, encostado ao cajado, pernas enfiadas nas safonas, dormitava. O carneiro filósofo protestava.
Lógico que, nas circunstâncias, fosse olhado de lado. Os pares ficavam à distância, não coisasse o mal espalhar-se e manchar honras feitas desde o berço, segundo sábia tradição passada de pais para filhos, de avós para netos. A irritação do filósofo crescia na razão direta do isolamento. Passou a ser o da cauda, o último, passo trocado, rebelde ao praxismo.
À hora do sol-pôr, depois de tangidas trindades em igreja próxima, o rebanho a trote a caminho do ovil. Vinha o guia, como sempre, na dianteira, assistia-se à ordem: logo atrás, em fila, o rebanho no passinho sempre igual, sempre certinho, balido uníssono nas respostas ao chefe. Obviamente: o último de todos, o carneiro filósofo, esse, resmungava.
Eis senão quando o chefe tropeçou na vereda, despenhou-se em cambalhotas na vala direita que a bordejava. Outro, outro e outro, carneiro após carneiro, o rebanho atirou-se, disciplinado, aos tombos, em mortais, em piruetas, para o fosso. O carneiro filósofo tasquinhou. Regougou. Guinchou:
- Cambada, cambada! Para onde vai o chefe, vão todos. Vejam só. Tem isto algum jeito?
E zás, contestatário, atirou-se em força para a vala do lado esquerdo.

1 comentário:

  1. Fábula muito bem construída e magistralmente escrita. É preciso ser um artista da palavra para meter em espaço relativamente curto esta preciosa lição de vida.
    O carneirismo é, infelizmente, uma das nossas características psicossomáticas. Nem com a democracia conseguimos ultrapassar o fenómeno, como se fosse uma fatalidade. O carneirismo manifesta-se entre nós nas mais diferentes circunstâncias e não distingue estrato social ou cultural. Há uma inovação a nível do discurso, de um estilo ou de um modelo de comunicação, e toda a gente procura imitar, sem qualquer critério ou atitude crítica. Vê-se na imprensa, vê-se nos debates entre os políticos, vê-se na linguagem corrente, vê-se nos comportamentos sociais.
    Mas o mais gravoso no carneirismo é quando faixas importantes da população são facilmente convencidas ou capturadas por demagogos ou oportunitas, indo na onda muitas vezes à revelia dos seus próprios interesses.
    Salazar tirou bom partido do nosso espírito carneirista e ainda hoje são visíveis os seus sintomas.

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