terça-feira, 11 de dezembro de 2018

[0019] Nuno Rebocho e um grilo de boa voz

NUNO REBOCHO, Queluz, Portugal, 1945
Jornalista e poeta, o autor nunca menosprezou a ficção, como o demonstra o seu romance “A Segunda Vida de Djon de Nha Bia”(além de outros arremedos ainda na carteira). Durante dez anos esteve recolhendo histórias, minimilizando-as, reduzindo-as ao mais simples. Esta é um dessas historietas apodadas de “fábulas cínicas” e dedicadas “a quantos mantêm capacidade de ser meninos”. 


O GRILO CANTADOR

Enfiado na lura, o grilo cricrilava todo o santo-dia extenso cantar. Do emaranhado de estevas e salgueirinhas ressaltava um quase chilreio a entrelaçar-se nos odores da paisagem. Minúsculo e preto, o invertebrado cantava de natural alegria pela abundância do pasto e no chamamento da fêmea - taciturna e muda, gélida como as fêmeas que se prezam de boa educação e muitos preconceitos.

Quem passava nas redondezas sustinha-se. Ficava por uns momentos embevecido, de ouvido à escuta, na admiração daquele som agudo e intermitente, recheado de felicidade. Mas o grilo, à cautela, mal pressentia anormalidades no sussurro conhecido dos arbustos, remetia-se ao silêncio. E as cores das plantas, mesmo o vermelho queimado do chão, como que emurcheciam.

Era, pois, previdente o grilo. Por vezes, escapava-se para fora da toca a mirar o sol. Todavia, pelo sim pelo não, não fosse o diabo tecê-las, regressava ao casulo e retomava a cantoria. Nesta placidez, o bicharoco vivia, comia, refastelava-se, fazia necessidades, perpetuava a espécie, dormia e, sobretudo, cantava.

Não há felicidade que sempre dure. É o que se diz. De facto, uma bela tarde, o azar tocou-lhe para se cumprir o destino fatal dos grilos. Estava ele baladando como era costume, quando o acaso quis que por ali perto passasse um garoto. Ouviu-lhe o cricri. Parou. Orientou o ouvido. O bichito teve pressentimento de perigo. Quedou-se no buraco. Sem fugir.

Porém, sabido era o catraio. Conhecia os hábitos da caça, tivera tempo para calcular onde se acoitava o brinquedo. De gatas, as mãos separaram trevos, ervilhacas, ervas, apalparam o terreno; o rapazinho, paciente, procurou-lhe o poiso. Ao resto de uns minutos, encontrou-o.

Pegou numa palhinha. Enfiou-a no orifício, pôs-se a rodá-la. E o grilo, coitado, sentia o ariete tocar-lhe ao de leve a carapaça, atingir-lhe o rabo com arrepiantes cócegas. Todo estremecia, rodopiava. Não se conteve e cantou. Ao ritmo da música, à cadência das festas, as pernas mexeram-se, retiraram-no da toca.

O garoto vencera no ardil. Carinhosamente, tomou-o entre dois dedos, colocou-o na palma da mão, mirou-o satisfeito. E guardou-o dentro de uma caixa de fósforos que consigo levava e na qual fizera dois furos para o animal respirar.

Pobre do grilo preso! Triste a escuridão da caixa fechada! O cantar não tinha a mesma vivacidade. Que importava ao garoto se lhe escutava a melodia? Levou-o para casa, arrumadinho em cima de uma prateleira. Todas as noites, o rapaz levava-lhe um naco de alface borrifada de água. E o grilo cantava, cantava. Em recompensa, o dono fazia-lhe cócegas no rabo. Com uma palhinha.

1 comentário:

  1. Belo conto.
    A prosa é soberba e a fábula tem o dom de encantar todo aquele que já foi garoto e se extasiou com o canto dos grilos. Eu diria que quase todos os garotos caíram na tentação de capturar um grilo para o enjaular numa caixa de fósforo. A mim me aconteceu pelo menos uma vez lá para os lados de Fonte Cónego, no Mindelo. Outro passatempo era atirar aos pardais com um pedrinha lançada por forquilha.
    Hoje fico triste quando me lembro dessas inocentes travessuras. Era o que havia naquele tempo em que nem por sombras se sonhava com Ipads e computadores, ou televisores com toda a casta de programas para a meninada. Mas eram melhores esses tempos porque aprendíamos a olhar para mais bem fundo de nós do que acontece aos rapazes de hoje.
    Talvez por isso é que hoje, ou seja, desde há muitos anos, me tornei um apaixonado pela natureza, principalmente pelos animais que vivem livres no seu maio natural. Atrás da minha casa existe um quintal com uma árvore de dióspiros, entre outras. Ninguém os colhe porque o terreno está à venda. E assim é um regalo ver os pardais e os melros a deliciarem-se todos os dias com bicadas desferidas no saboroso fruto. Fico longos momentos a olhar para eles, deliciado. Hoje, um sénior de coração doce, não o rapaz que disparava forquilhas contra os pardais.
    A propósito, este terreno de que falo já teve dono e fiz uma crónica sobre ele há uns bons anos. Se calhar calha bem reedita-la neste espaço.
    Quanto ao grilo dentro da caixinha do rapaz, espero que tenha aprimorado o canto e conquistado o coração da família adoptiva, tendo merecido assim regressar à mãe natureza que o pariu.

    ResponderEliminar