domingo, 29 de março de 2020

[097] Teresa Balté oferece-nos um delicioso conto infantil, campestre e "cantante"

ERA UMA VEZ O JOÃO...

Teresa Balté
Era uma vez o João, que não sabia cantar.
– Canta connosco as nossas cantigas – diziam-lhe os amigos. Ele bem se esforçava, mas não soava um som.
Um dia acordou e decidiu: quero aprender a cantar. Saiu de casa e pôs-se a caminho, à procura do que queria.
Meteu por um bosque.
– Dóó, dóo, porque andas tão só? – rangeram os ramos das árvores, balouçando-se ao vento. O João inquietou-se e fugiu dali.
Meteu por um campo. 
– Réé, réé, rée… – ressoou a erva alta, onde conversavam as cigarras. O João, com receio de pisá-las, atravessou-o em bicos de pés. 
Meteu por um regato. Ia distraído e só reparou que se molhava quando ouviu rir:
– Mihihihi…hihihihi…
– És tu que ris? – perguntou o João à água que corria.
– Sou eu, o Mi, não sou a água, mas brinco na água e com quem passa por aqui. – O João riu e despediu-se do Mi.
Meteu por montes e vales. Por toda a parte acompanharam-no dois gaios, um verde e um amarelo, que assobiavam:
– Fá, sol! Fá, sol! Fá, sol! – o João tinha vontade de assobiar com eles, mas não se atrevia a experimentar.
Meteu por um canavial. Cortou uma cana, talhou uma flauta e soprou.
– Lá, si! Lá, si! Lá, si! – soou a flauta. Que voz tão rachada, pensou o João, até eu soo melhor. E, sem se lembrar de que não sabia cantar, cantou:
– Lá, si… lá, si, dó… lá, si, dó, ré, mi, fá, sol… – e continuou.
Chegou a casa de noite. Os amigos, que estavam em cuidados, ouviram cantar e vieram ver quem era. Viram o João. Cantava uma cantiga com florestas, cigarras, regatos, gaios, canaviais…
Quando acabou, disse:
– Encontrei a minha canção, já sei cantar. Agora podemos cantar juntos as nossas canções.
E cantaram.

Novembro 1986

José Malhoa, "Gritando ao rebanho", 1891

quarta-feira, 11 de março de 2020

[096] Nestes tempos de todos os temores, uma "short story" de Joaquim Saial

O ÚLTIMO HOMEM

Joaquim Saial
Tinham sido os dias da grande pandemia. O último homem, que vivera num recôncavo frente ao oceano, já muito fraco, saiu nessa manhã para ver o mar. Em rocha próxima, que emergia da água, estava pousada uma gaivota. O homem sorriu, pensou que afinal não morreria sozinho e finou-se. Instantes após, o pássaro levantou voo e dentro em pouco estava no meio do seu bando, participando em concorridos voos picados, na apanha de alimento. Por aquela praia, nunca mais se viu ninguém.



[0095] Novo conto "felino" de António Rosa

L’ÉTÉ INDIAN

António Rosa
Mosquitos insuportáveis, estes. Por mais que os enxote, continuam insistentemente a incomodar. Pobres dos animais que nem sequer têm mãos para se defenderem. Como deve ser difícil para eles estar continuamente a ser picado em sítios onde não chega a pata e não basta sacudir a orelha. São autênticas feras, estes insectos. Devoram qualquer ser vivo.

E aqui estou eu, empoleirado na melhor posição que posso, sentado entre a forca de dois galhos fortes cá no cimo da árvore, à mercê dos mosquitos. O campo de visão parece-me razoável, atendendo a que daqui  avisto uma boa parte do ribeiro, lá em baixo. É aí que os animais inevitavelmente vêm beber.

O dia cai a olhos vistos. Escurece a cada minuto que passa. Já vi e revi todas as condições da máquina, desde o obturador ao leque de fecho do diafragma. Parece estar tudo bem. O sistema de infra-vermelhos também já foi testado. O apoio onde ela se encontra é estável e permite com facilidade um razoável  ângulo de rotação, quer vertical, quer horizontalmente. No entanto, apesar de já estar bem habituado ao trabalho com ela, receio que a minha vista me atraiçoe nos momentos cruciais da focagem. E nada pior de que fotografias desfocadas, sem que possam ser repetidas. Não posso dizer ao bicho que volte ao mesmo sítio e se deixe estar quietinho.

Medito na fragilidade de um homem só, aqui isolado, armado em pássaro, pousado no alto de uma árvore enorme  a não sei quantos metros de altura do chão, indefeso nesta selva bruta, recheada de perigos, e agora de sombras, cada vez maiores e mais disformes.

Os sons da noite que se aproxima são cada vez mais intensos e alguns, especialmente os das aves nocturnas, arrepiantes. Grilos, aos milhares certamente, fazem uma chinfrineira ininterrupta, bem como rãs e sapos a coaxar ao despique. 

Agora sim, que já está escuro como breu e os sons ainda parecem mais intensos. Não tiro os olhos do ribeiro, sempre na esperança que apareça algo. Mas praticamente não o vejo. Já não consigo enxergar a água, apesar de saber bem onde ela está.

Por vezes há certos sons assustadores que não consigo identificar. Chegam a subir-me arrepios pela coluna acima. Na verdade, não estou muito à vontade. Entretanto, com a caída total da noite, começou a levantar-se uma brisa que até já começa a ser fresca demais, aqui em cima. O que é certo é que, por causa dela, os mosquitos parece terem acalmado as suas ânsias de sangue.

De tempos a tempos ouvem-se os cantos dos pavões, ao que outros, mais longe, respondem também em coro. É agradável por ser um som velhamente conhecido, mas aqui na Índia parece ter uma sonoridade diferente, que mete mais respeito.

Ligo o sistema de infra-vermelhos da câmara para inspeccionar o movimento no ribeiro. É natural que, com esta escuridão alguns animais se comecem a aproximar para se dessedentarem de um dia tão quente como foi o de hoje.

Ajeito-me melhor no ramo, procurando não fazer qualquer ruído que possa identificar a minha posição. Qualquer pequeno barulhinho pode ser fatal. Posso ao mínimo descuido afugentar os animais e dar por perdido todo este trabalho. E começo agora a pensar no pior. E se o animal for um tigre, um tigre de Bengala com os seus dentes de sabre? Sei que os felinos sobem facilmente a qualquer árvore. Apesar da sua corpulência e do seu grande peso, tem garras suficientes para se agarrar ao tronco da árvore e vir fazer-me uma visita. Não estou nada seguro aqui. Novo arrepio pela coluna acima. E desta vez um dos grandes.

Começo a pensar que, se o animal estivesse a beber ou numa emboscada a tentar caçar alguma presa que se estivesse a dessedentar no ribeiro e eu tivesse o azar de acidentalmente espirrar ou tossir ficaria imediatamente descoberto e à mercê dos seus “dentinhos”, sem qualquer defesa possível.

Sei que tenho a necessidade urgente de afastar este pânico, de não pensar em tais coisas. Aliás fui bem avisado disso.  Acima de tudo afastar o medo e depois esperar com paciência. Com muita, muita paciência e sempre em absoluto silêncio.

Os infernais grilos esgotam-me os ouvidos e começo a estar mal sentado. Os sapos e as rãs não param a sua sinfonia. Será que são sempre os mesmos ou irão alternando uns com os outros  para descansar?
Ouvi agora um leve resmalhar nas ramagens lá em baixo. Ligo de imediato o sensor térmico da câmara e vejo uma mancha vermelha que se aproxima da água com todas as cautelas. Que bicho será? Não lhe consigo identificar bem a forma. Parece uma pequena gazela mas não tenho a certeza. Preparo o disparador da câmara e já tenho o dedo sobre o botão. Efectivamente é uma gazela. Já está com os anteriores flectidos e o focinho na água fresca.

De repente, tudo se cala. Calam-se os grilos, as cigarras, os pavões, os sapos e as rãs. Mas o que foi que aconteceu? O silêncio total é agora aterrador. Agora sim, é que isto mete medo. Não se ouve rigorosamente nada. O sensor térmico mostra um vulto vermelho, esguio, avançando muito lentamente na direcção da descuidada gazela e eu sinto calores e arrepios por mim acima. O indicador treme-me no botão do disparador. Vejo-o agora nitidamente, vindo por detrás da incauta gazela. É um tigre e bem corpulento que estará a uns escassos três metros da pobre presa. Prepara o salto. E eu quero fixar o momento exacto do ataque. O dedo treme-me. O bicho encurva a coluna e com uma agilidade surpreendente, zás…

Trim… Trim… Trim… “the time is thirty past  seven”… “is time to stand up”…

Para dizer a verdade, custou-me mais perder a fotografia para a National Geographic  do que ter que me levantar para ir trabalhar.