terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

[0051] Novo livro de João Lopes Filho

Na Livraria Pedro Cardoso (cidade da Praia, Cabo Verde, à Fazenda) João Lopes Filho apresenta o seu novo livro, “Percursos & Destinos” (edição da Livraria Pedro Cardoso), do próximo dia de Março, com apresentação da prof. Fátima Fernandes.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

[0050] Novos corpos gerentes do P.E.N. Clube Português

Tomaram posse, a 21 de Fevereiro, os novos corpos gerentes (eleitos em Assembleia Geral) do P.E.N. Clube Português:  
Mesa da Assembleia Geral: - Ernesto Rodrigues (Presidente); Nuno Camarneiro (1º Secretário) e Fernando Venâncio (2º Secretário)
Direcção: Teresa Martins Marques (Presidente); José Viale Moutinho (Vice-Presidente e Tesoureiro); Paulo José Miranda (Secretário); Fernando Pinto do Amaral e João Rasteiro (Vogais); Francisco Belard e Inês Lourenço (Suplentes)
Conselho Fiscal: Cristina Carvalho (Presidente); Rui Miguel Mesquita (Vogal); Carlos Nogueira Fino (Vogal); Ana Paula Coutinho e Victor Oliveira Mateus (Suplentes)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

[0049] Nuno Rebocho, mais uma fábula

Mais uma das suas fábulas cínicas com mostras de moralista aprendiz. É uma história contada a quantos nunca desistiram de ser meninos.  


O CAMALEÃO IMPREVIDENTE

Alapava-se o camaleão à parede. Branco, da cor da cal. Trepava cortinas de chita, ficava amarelo, ficava azul, às bolinhas. Refugiava-se nos manjericos, era verde. Ou tijolo como o vaso. Ou indefinível como a terra vegetal.
Neste defeito mimético, o camaleão era, especialmente era, a alegria da criançada. Os putos perdiam-se em deleite, horas e horas, basbaques ao bicho sem cor própria.
Chegara a casa dias antes. Trouxera-o o pai, fanático ecológico: “nada de flites, de banzés, de mixórdias químicas que só fazem mal”. Mata-moscas davam prejuízo, loiça partida. Fitas de melaço eram inestéticas - sórdidas. Havia os métodos eléctricos. Mas com a energia tão cara... Mais os estoiros de grelhadura que complicavam com os nervos. Optou pelo camaleão.
Libertado em casa, desenrolou a cauda e encostou-se a parede forrada de papel. A primeira mosca expôs-se ao alcance. O camaleão disparou a língua, capturou o insecto. Engorgitou-o. Os putos bateram palmas. O pai levou as mãos ao cinto, puxou as calças de contentamento.
- Viram? Então? Dá ou não dá resultado?
Vinham amigos admirar o animaleco. A sala era “ah” de espantos ao maravilhoso de mudar de cor conforme o poiso. Compreendida a razão das honras, o camaleão caprichava: tingia-se de cores alheias com máxima perfeição.
As crianças, o pai, recompensavam-lhe as proezas. Chegavam a apanhar, com as mãos em concha, as moscas que invadiam a sala de jantar. E embevecidos, alimentavam-lhe a gula.
Assim, rodeado de carinhos e atenções, o camaleão engordava. Mudava de poiso, mudava de cor. A família chegou a baptizá-lo: deram-lhe o crisma António, e, era curioso, parecia que ele atendia ao nome.
Numa manhã, farto de uma bambinela onde se instalara, o camaleão desceu as cortinas, correu pelo chão rumo a um vaso do lado oposto da sala. Verdíssima avenca encostava-se aí a alva cana. Ficara o camaleão acastanhado, da cor do soalho. Perfeito, como de costume.
A mulher-a-dias, de espanador em punho, entrou para limpar o pó. Não lobrigou diferenças entre bicho e chão. Pôs-lhe o pé em cima. Esborrachou-o.
António morreu. Na família houve choro e ranger de dentes. 

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

[0048] José Batista de Queiroz, contos necessários

Do escritor brasileiro José Batista de Queiroz, recolhemos um conto que recorda a sua vida militar. É uma voz que nos chega do mundo lusófono, prometendo divulgar outros autores.


SAUDADE DE GRANADEIRO

Se a primavera é a estação mais alegre do tempo, hoje é o dia mais saudoso do ano. Mais uma vez aqui estamos reunidos, de coração humedecido de saudades, para juntos celebrarmos a união indissolúvel de homens que vestiram, no passado, o uniforme garboso do Batalhão da Guarda Presidencial. Mais uma vez, vamos palmilhar a estrada do tempo que nos leva ao passado, em busca daqueles momentos que tanto marcaram nossas vidas, e deixaram fortes lembranças enclausuradas em nossos corações. Hoje, vamos acordar as saudades adormecidas e repartir as alegrias esvoaçantes, que estão penduradas dentro de nós.
Quando ainda viviam o tempo doce de suas vidas, o dever os levou pra longe, longe de seus pais, de seus amores, de sua terra natal, rumo a Brasília, uma cidade que nascia resplandecente no coração do Brasil. O ponto de encontro de todos vocês foi o BGP, um Batalhão que deixou registrados, nos seus pensamentos, dias de saudade, uma saudade brejeira que, até hoje, continua viva, flutuando na alma de cada um.
Vocês se tornaram granadeiros e granadeiro é aquele que já traz dentro de si uma semente de amor ao Exército e ao Brasil, um amor em constante ebulição, iluminado e prateado por raios de sol. Assim são vocês e assim serão pela estrada do tempo, porque o peito de um granadeiro é a morada segura da virtude de um soldado. Seus exemplos são como raios luminosos, que irrigam e atravessam gerações, deixando sulcos na memória do tempo. Ser granadeiro é ter o espírito colorido de verde-amarelo, é ser um brasileiro de alma e coração, é viver um sonho para sempre.
Hoje, os corações aqui presentes têm cheiro de lembranças, lembrança do passo vagaroso do tempo, em que os acordes de um clarim interrompiam o sono repousante de vocês, anunciando o nascer de mais uma aurora. Era mais um dia de saudades, saudade do lar aconchegante, dos rostos suaves, dos momentos alegres, dos anos que não voltam mais. Era uma saudade que exprimia o peito e torturava a alma.
Vocês jamais se esquecerão das horas de sentinela, dentro ou fora de uma guarita, ouvindo o silêncio da noite, observando o céu semeado de estrelas, vendo a lua prateando a relva, ouvindo o vento rumorejando nas árvores, sentindo os ardores de um sol a pino, vendo o manto azul salpicado de nuvens brancas, contemplando o sol a beijar as serranias e o dia se afogar na noite. Eram momentos de meditação, de sono, de cansaço, de saudade. Como era lento o passo das madrugadas! Como seria bom se fosse possível acelerar o tempo! Mesmo na adversidade, você, granadeiro, pode ser comparado àquilo que, na memória dos homens, existe de mais heroico, de mais valente, de mais soldado.
Até hoje, vocês carregam as lembranças daquelas noites melancólicas passadas nos alojamentos, enfrentando uma epidemia de saudade e tristeza. Naquele tempo já empoeirado, mantinham acesa a esperança de retornar ao torrão natal e abraçar a família, os amigos e os amores. E hoje aqui estão e ainda guardam no peito as lembranças de uma vida de soldado e ainda cantam as canções militares que o tempo não apagou. O tempo não faz com as lembranças o mesmo que o vento faz com a poeira.  Hoje, podemos dar as mãos e cantar as canções alegres que, no passado, empolgaram a nossa alma de soldado, porque somos todos frutos da mesma árvore.
A saudade é um das palavras mais bonitas do dicionário e a emoção mais doce de nossa alma. Vamos em frente, granadeiros, porque os dias futuros nos aguardam, para nos saudar com mais alegrias, mais emoções, mais saudades. Ser granadeiro é ser a lembrança e o parceiro do tempo. O tempo caminha e nós caminhamos com ele. Obrigado Ibitinga, por nos acolher em seu regaço. Obrigado João Carlos, por nos proporcionar momentos alegres e saudosos como as primaveras. Obrigado Deus, por mais este encontro com a saudade.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

[0047] Fernando Sabino, um contador de histórias

FERNANDO SABINO (Fernando Tavares Sabino, de seu nome completo), Belo Horizonte, Brasil, 1923-2004
Aqui fica mais um conto brasileiro, escrito por um dos seus valiosos autores. Não lhe falta uma pitada de humor a pincelar uma história bem contada. Obviamente, mantivemos a grafia de origem.


O HOMEM NU

Ao acordar, disse para a mulher:
– Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
– Explique isso ao homem – ponderou a mulher.
– Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar – amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
– Maria! Abre aí, Maria. Sou eu – chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no lanço de escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
– Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão. Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
– Ah, isso é que não! – fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
– Isso é que não – repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar. Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
– Maria! Abre esta porta! – gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si. Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
– Bom dia, minha senhora – disse ele, confuso. – Imagine que eu...
A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
– Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
– Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
– É um tarado!
– Olha, que horror!
– Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
– Deve ser a polícia – disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

[0046] Nuno Rebocho: mais uma das suas fábulas cínicas

De Nuno Rebocho, mais uma das suas fábulas cínicas: desta vez, é o peru que se prepara para as quenturas do forno, em dia de festa.


O PERU BÊBADO

Pelo Natal, tempo de festa. O peru aproximou-se da cerca, esticou o pescoço, enrubesceu e enfunou as rémiges. “Peru velho”, disse-lhe o dono. A ave envaidecida, avermelhada de gozo, agitou-se:
- Glu, glu, glu-glu-glu.

Foi isto na segunda-feira. O dono desenrolhou garrafa de medronho, encheu um copo e despejou-lhe o líquido, áspero e violento, goela abaixo. Encharcou-lhe o papo, as vísceras. O peru estremeceu, mais quente. O capoeiro esfumou-se em névoas, paisagens de sonho. Sentiu-se liberto como se as redes caíssem, o mundo agigantado à volta. Uma sede de bons sentimentos, um desejo de fraternidade pesou-lhe no bucho. Em arrepios, terno e lânguido, soluçou:
- Glu, glu, glu-glu-glu, glu, glu-glu.

Terça-feira. O peru despertou em tonturas, dor de cabeça horrível. Da festa, certamente. No imo, apesar de bico empastado, o bicho sentia-se feliz com o dono que destino lhe dera em sorte. Gratidão imensa, vinda do fundo, dos intestinos, do papo, do baço, do fígado, inundou-o. O dono fazia-o fruir das delícias, ele comparticipava da festa.
Nesse meio da tarde, aproximou-se o homem da capoeira e o peru não se conteve. Veio à rede. Meneou-se. Abriu-se em leque. Rubro de paixão, recitou-lhe um aplauso:
- Glu, glu, glu-glu-glu.
Com método, gestos repousados e calculados, o homem tomou a garrafa, novo copo de medronho para a goela do galináceo. O bicho inchou, transportado às florestas americanas. Cambaleou o passo até ao centro do galinheiro, aberto a todo o pano. Glorioso, imenso. Sublimemente grato, desbarrundou euforia e vaidade em alexandrinos:
- Glu, glu-glu, glu, glu, glu, glu-glu-glu-glu-glu-glu.

Terceiro dia, quarta-feira. O animal acordou mal disposto, cabeça pesada, pálido, com cólicas. Feliz. O universo já não se confinava à acanhada miséria das quatro redes da capoeira.
Arrastou-se, aproximou-se da vedação, asas alisando a terra, barbas em baixo. O dono sorria-lhe, ele alegrou-se. Na mão do senhor, lá estava a garrafa.
O homem de novo despejou a aguardente num copo e entornou-a pela goela do peru. O bicho dilatou as penas. O bicho cantou:
- Glu, glu, glu.
O dono pegou-lhe pelo pescoço e, de um golpe, decepou-o. Depois de depenado, passou pelo forno e foi servido no jantar da festa. Com castanhas. 

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

[0045] Pedro Silva e os velhos escritos

Há demasiado tempo afastado da escrita ficcionista, o historiador Pedro Silva retirou do baú um dos seus contos escrito há anos e contempla-nos com uma interessante memória. 


O PRIMEIRO DIA DE AULAS

O início de algo muito esquisito estava prestes a ter lugar e o jovem não sabia bem como havia de reagir. Após tantos anos a fazer exactamente o que queria, às horas que muito bem entendia, apenas controlado pela mãe, ia agora para um local que, segundo os seus dois irmãos, era pior que o inferno. E, de acordo com o que ele tinha visto em filmes, o inferno era verdadeiramente mau. Tudo a arder e sempre alguém a controlar tudo e todos. Se aquele local era ainda pior… Eram sete da manhã quando a mãe o foi acordar, mas o jovem há muito não dormia. Pensava, imaginava e desesperava. «Mas», dizia de si para si, «se é assim tão mau, porque é que os meus pais vão enviar-me para lá? Eu sou seu filho e eles gostam de mim, por isso não deve ser como os manos dizem. Aliás, eles até sobreviveram muito bem ao longo de todo este tempo.» A mãe não sabia o que ia dentro do filho, em termos de amálgama de sentimentos, e, para ela, tudo eram maravilhas. «Vais conhecer meninos da tua idade», contava, sempre a sorrir, «e vais aprender tanto que hás-de ser o melhor da tua classe.» 

Mas ele não queria ser o melhor, nem o pior, apenas queria ficar em casa, sem ter que ir para aquele lugar malfadado, tanto mais que em casa já tinha aprendido muito. A avó ensinara-o a vestir, o avô a regar o jardim, o pai a jogar futebol e a mãe, bem, essa sempre lhe dera muito amor e isso era, para ele, mais importante que todos os outros ensinamentos. Em casa, também, podia sempre assistir à televisão, ou então brincar com os seus super-heróis preferidos. Naquele sítio não podia fazer nada disto, segundo aquilo que os irmãos lhe tinham dito.

Após algumas horas de dilema profundo, a fatídica hora chegou. Oito e trinta em ponto e a sua mãe a mandá-lo sair do carro, já em frente da escola. De todos os lados vinham crianças a correr, de diferentes alturas e larguras. Muitas, todas diferentes. E como o pequeno estava assustado! Não queria acreditar que não conhecesse ali uma única pessoa e que a sua mãe o enviasse para aquele local, completamente sozinho. Não valia a pena estar agora a abraçá-lo que ele nada queria saber de sentimentos. Tinha de ser um homem e aguentar tudo sem responder ou, sequer, dar a mostrar a enorme vontade de soltar a lágrima fragilmente colada ao canto do olho. 

«Como sou infeliz», pensava. «Agora, aqui, não sou ninguém. Sou apenas mais um.» E tinha alguma razão, já que iniciara ali um ciclo que iria até à maturidade, mas sem conseguir ultrapassar o anonimato, a menos que, por mérito próprio, se destacasse. A professora parecia-lhe um monstro horrendo, sobretudo porque aquele enorme pêlo, que sobressaía de um sinal perto do nariz, era terrível. Como ele gostaria de voltar a casa e sentar-se no sofá preferido a assistir a um filme de desenhos animados. Agora tudo isso parecia uma miragem, uma recordação do passado. Ali estava ele, numa casa de madeira, mas com uma textura semelhante a ferro, tal a dureza que sentia. Os colegas eram, aos seus olhos, um monte de bonecos de corda, completamente desorientados. Uns saltavam, outros rodavam e alguns gemiam. Continuava a não querer acreditar que estes eram os companheiros que lhe haviam sido destinados. Bem, concluía, a juntar a este panorama, só faltava um colega de mesa. E ali estava ele, um rapazito da mesma idade, mas de um cabelo marcadamente ruivo e com a face coberta de sardas. Nada mais a fazer. Ia ser um rico dia!

O primeiro intervalo escolar da sua vida foi até bastante emocionante. Dois miúdos haviam partido dentes um ou outro. Mesmo à sua frente uma rapariga de oito anos tinha sido atingida por uma bola projectada do outro lado do campo com tal força que, mesmo antes de tombar, teve apenas tempo de gritar «ai!». Como era triste aquela visão: conjuntos, muitos conjuntos, de crianças a fazer alguma coisa, mas sempre num ritmo desordeiro, tanto mais que era essa a única coisa que lhes dava gosto.

De volta à sala, a lição começou a ter lugar. A «professora barbuda», como de início fora alcunhada, falava, mas ninguém parecia prestar muita atenção, a não ser aquele jovem lá ao fundo que, sentindo nada mais ter a fazer, olhava para ela, mesmo não entendendo nada. A certa altura, um enorme estrondo fez-se sentir. Vinte e sete cabeças moveram-se, ao mesmo tempo, para o sítio donde provinha o ruído. E lá, naquele canto, o menino Jeremias tinha deixado cair a caixa com o lanche que, por acaso, estava a ser comido ali mesmo. 

A professora, com um ar mais aterrorizante que nunca, dirigiu-se ao miúdo obeso que, com a boca repleta de restos de bolo de chocolate, se sentia muito atrapalhado. Ninguém sabia como a professora iria reagir, mas já haviam sentido na pele, muitas vezes, as reacções das mães, pelo que todos esperavam o pior. Foi então que, do alto dos seus quase dois metros, e com uma face de tal forma transfigurada que poderia afirmar-se que se preparava para engolir o mundo, a professora obriga-o prontamente a «ficar de castigo». E, na realidade, o que isso era? Simplesmente, ficar virado de costas para os colegas, junto ao quadro negro, com umas «orelhas de burro feitas em cartão». Tantas risadas de chacota se seguiram, tantas palavras sem nexo foram proferidas e apenas um miúdo se mantinha calado, chorando por dentro, desejando, do fundo do coração, que as horas passassem o mais depressa possível e que a tormenta tivesse um término.

Porém, o relógio parecia não querer colaborar e cada minuto demorava uma hora. Mas aquele menino, com os seus seis anos acabados de fazer, rapidamente aprendeu a lutar contra a maré e, ao invés de contar afincadamente os segundos que passavam, preferiu prestar atenção ao que aquela figura, que tanto o atemorizava, lhe tentava, da melhor forma que sabia, ensinar. Porque era a missão de ambos e porque a literacia é fundamental. O menino, ainda que imberbe, interiorizara aquilo que muitos adultos não compreendem: que a educação é tão importante para o espírito como o alimento para o corpo. E mesmo que os seus pais, de fracos recursos financeiros, passassem uma vida de muitas privações para o manter e aos irmãos na escola, o certo é que eles, iletrados, não esperavam o mesmo destino para os filhos. Mesmo que para isso tivessem de cumprir o dobro da carga horária estipulada no emprego.

Aquela criança aprendera as noções básicas da vida de forma tão rápida e jurara, ali mesmo, sentado naqueles horríveis bancos de madeira, que iria lutar afincadamente para que, um dia, todos pudessem ter direito à educação e, ao mesmo tempo, proporcionar aos seus pais uma merecida reforma descansada. Se bem pensou melhor o fez – quarenta anos mais tarde tornar-se-ia reitor de uma importante universidade, introduzindo melhorias significativas no sistema de ensino nacional.

Apesar de tudo, o certo é que, no fim do primeiro dia de aulas e, independentemente de ter entendido a sua situação como um autêntico adulto, não deixou de correr a toda a velocidade para o colo da mãe, onde, sentindo-se acarinhado e protegido como sempre, pensou: «Graças a Deus que já terminou!». Mal sabia ele que nunca mais na vida iria deixar um só dia de estar numa instituição de ensino. Mas isso, convenhamos, terá de ser ele próprio a descobrir, não é verdade? Deixemo-lo descansar esta noite.”

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

[0044] Amélia Dalomba, um história angolana

Da escritora Amélia Dalomba, uma história bem angolana: fala de meninos, de rios, de mar, do vasto mar de Angola.

NSINGA – O MAR, NO SIGNO DO LAÇO

I

Chegava a cada dois anos vestido de branco, como um príncipe dos muitos livros e cadernos que trazia, estes últimos que tanto jeito faziam à mamã para embrulhar ginguba e micates nas suas folhas arrancadas sempre do meio, para segundo ela, “o caderno não chorar".
Eu gostava de ver o tio chegar!
A miudagem toda em volta dele, os adultos ajudando a transportar as bicuatas . Era uma festa.
A casa ficava cheia de embarcadiços que andavam de porto em porto e contavam estórias, dando presentes.
O que eu mais gostava era quando o tio, com o olhar sério, perguntava ao meu pai: “Mano, como vão os meninos na escola"?, acariciando-nos com o olhar, como se fôssemos o único propósito das suas canseiras. Ele mandava sempre o dinheiro para os nossos estudos; éramos dos poucos meninos, no nosso bairro pobre, que estudávamos sem isenção de propinas e andávamos calçados. O tio cuidava para que nada nos faltasse. Éramos sete meninas e dois rapazes.
Não sei porque razão não tinha filhos, mas casara-se, diziam os mais velhos, no Brasil com uma linda senhora de cabelos tão negros e compridos que suas tranças pareciam duas longas lianas floridas em cada lado do rosto. Eu cheguei a sonhar com ela, mas aparecia sempre em sonhos com o rabo de peixe, como uma sereia pelo que não contava para ninguém. Como é que afinal, a mulher do tio habitava misteriosamente as águas salgadas, do outro lado do bairro onde morávamos?


II

Nós vivíamos entre o rio e o mar. A mãe proibia-nos de tomar banho nas águas salgadas da praia, porque, dizia perigosas demais para as crianças pequenas; mas Futi adorava tanto aquelas águas que, quando entrava o cheiro da maresia pelas persianas da nossa linda casa de madeira à beira da estrada grande, onde passavam os camiões carregados de toros de madeira, ela deixava soltar num suspiro: “Lando, um dia vou mesmo tomar banho no mar..." 
Sabíamos, ela e eu, ser isso precisamente o que nunca deveria fazer, segundo nossos pais, até atingir a idade de entrar no tchikumbi, ao que eu advertia: “se voltas a dizer isso, vou queixar à mamã". Ela, com um sorriso estranho nos lábios, sempre resmungava: “humm, queixinhas, estava só a brincar"...
Passara-se, pelo menos, mais de um ano desde a última vinda do tio e a nossa vida voltara a monotonia de sempre, quando vozes estridentes se fizeram ouvir:
“Futi se afogou socorro, socorro; Futi se afogou..."
Suas coleguinhas, ainda sujas de areia da praia e batas molhadas, traziam os pertences de minha irmã querida, de apenas sete anos: a pasta da escola, a bata e um par de sandálias castanhas muito usadas, com a marca de seus dedos bem marcados".

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

[0043] Tchalé Figueira, sob o signo do fantástico

TCHALÉ FIGUEIRA, Mindelo, São Vicente de Cabo Verde, 1953
De novo, Tchalé Figueira esgaravata o fantástico e, de Cabo Verde, envia-nos mais um conto em forma de fábula.


FÁBULA LOUCA

Morriam as vacas de fome, as tartarugas, saindo de mar, foram ao parlamento... Interditadas por gorilas, não conseguiram  reclamar na assembleia de hienas seus direitos. Hienas, bichos ignóbeis e pestilentos, sempre ocupadíssimos em peidar-se pela boca em discursos malcheirosos de rasgada gramática de bichos. 

Zangadas, as tartarugas foram-se queixar nas nações unidas da bicharada dos seus direitos. O urso-mor das nações unidas, amedrontado pelo rei leão do Norte, meteu-se na sua toca, e, numa crise de amnésia propositada, dormiu com os olhos abertos, mas sempre de esguelha, observando bando de chacais vampiros bebendo sangue de animais constantemente assassinados no reino animal. 

Aflitos, os sobreviventes saíram pelas ruas da selva protestando, mas foi a grande macacada!... Num relâmpago, veio a polícia e também soldados da guarda pretoriana do rei da selva distribuindo mordeduras com afiados dentes... Criou-se uma ditadura, a harmonia no reino animal extinguiu-se por completo: lobos disfarçados de cordeiros papando tudo aquilo que deveria ser de todos, devoravam tudo... 

Mas que tragédia! Não é que, no meio da confusão, aparece um animal chamado homo-sapiens o mais malvado de todos os bichos... Terrificada pelo cheiro nauseabundo do bípede erecto, a bicharada em pânico, em uníssono gritou: SALVE-SE QUEM PUDER!!!