sábado, 29 de dezembro de 2018

[0032] Texto de Joaquim Saial



[0031] Nuno Rebocho, contador de histórias. Desta feita com focas, para os amigos e leitores em geral, como prenda de final de ano

Nuno Rebocho caracteriza-se com contador de histórias ao ponto de, por isso mesmo, surgir como personagem em romances de Vasco Resende (“Antónia, nome de guerra”). Os animais que, em muitos aspectos, personalizam os humanos, são matéria que ajudam a criticar comportamentos.

Ver mais três contos de Nuno Rebocho, AQUI, AQUI e AQUI

AS FOCAS MILITANTES

Estavam as felizes em sossego, dispostas no areal. O caçador veio. Laçou-as. Foca a foca, cada delas foi capturada, metida em gaiolas com destino ao circo. E sempre acontece em tais desgraças: os anfíbios torceram-se, contorceram-se, guincharam, viraram-se de borco, gritaram, espadanaram na areia. Era a resistência inútil dos já vencidos, apostados em que o vizinho tope que sucumbiram com honra.

Das costas de África as trouxeram para cá. De humilhadas, cruzaram o oceano no bojo de cargueiro. Sofreram dos balanços, enjoaram do percurso.

Em Lisboa despejadas: tiradas dos porões, içadas por guindaste, depositadas no cais onde comprador atento as enxergou à cata de defeito que justificasse desconto na encomenda. E atiradas para um camião, lá foram à descoberta de mundo novo, vida nova.

Assim passaram ao cenário como vedetas. Na tenda, foram libertadas - como quem diz: dilatou-se o espaço do calaboiço. O tratador recebeu-as de bastão em punho, a prepará-las para a educação das boas maneiras. As focas lá tiraram curso. À bastonada e com nacos de peixe.

Vinha todos os dias o tratador à tenda. Ali aprenderam as focas a soerguer-se sobre a cauda, a agitar os bigodes, a equilibrar bolas na ponta do focinho, a jogá-las em números de habilidade. E com algum custo, muita dificuldade, muita zanga do tratador se fez o amoldamento ideológico dos focídeos.

Durou meses o exercício. Semanas intensas de trabalho. No receio da dor, as focas aprenderam os gestos, os jeitos, as partes, os movimentos de conjunto. De cor e salteado. Não foi de um dia para o outro, não senhor. Mas aos poucos. Lentamente.

Por fim, o espetáculo. As focas figuravam nos cartazes - eram atração. Fizeram-se coqueluche. Foram aplaudidas. Os bichos descobriram o segredo da sobrevivência: empinadas, abriam as bocarras ao peixe que o tratador lhes atirava. E batiam palmas. 

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

[0030] José Antunes Ribeiro festeja o Natal

JOSÉ ANTUNES RIBEIRO, Portugal
CTP não conseguiu obter em tempo oportuno o local e a data de nascimento do autor
Do escritor e livreiro José Antunes Ribeiro, “Contos da Tinta Permanente” recebeu (ainda a tempo) uma saborosa prenda natalícia para os seus leitores. Com agradecimentos, Boas Festas!


NAQUELE ANO, O MENINO JESUS NÃO DESCEU PELA CHAMINÉ

É do Natal da infância na aldeia que me lembro hoje. A lareira da casa dos pais onde a família se aquecia naqueles invernos muito frios. No tempo da inocência cheguei a acreditar que o Menino Jesus descia pela chaminé para deixar as prendas a todos os meninos. E, uma vez ou outra naqueles anos de grandes dificuldades, o Menino Jesus deixou-me as suas prendas. Coisas úteis: umas meias, uma camisola quente, uns sapatos para evitar o frio gelado do chão da estrada para a escola inundado de pedras, seixos, coisas assim...

Mas houve um ano em que o Menino Jesus se esqueceu da nossa casa. Ter-se-á enganado no caminho? A criança que eu era quando acordou pela manhã e foi a correr para a lareira para buscar as suas prendas deu-se conta que naquele ano o Menino Jesus se tinha esquecido da nossa casa. Disse à mãe da minha tristeza. E ela para me animar respondeu-me: "o Menino Jesus não conseguiu descer pela nossa chaminé porque vinha com tantos sacos de prendas que não conseguiu entrar...".

Naquele ano comecei a questionar-me sobre este e outros assuntos divinos. Mas, com Fé ou sem ela, o Natal é o tempo das crianças e da família. À volta da lareira ou à volta da mesa com o ritual do bacalhau com as couves e as batatas regado por bom azeite, das filhós ou filhoses como se dizia na minha terra, das prendas para as crianças, da missa do galo, das fogueiras, do presépio com o Menino Jesus, Maria e José, a vaca e o burro, as ovelhinhas, o musgo verde. Fantástico sempre o presépio das crianças! É por elas que o Natal continuará tão vivo como na casa da infância mesmo que as vozes familiares já não se façam ouvir ao longe.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

[0029] Tchalé Figueira, mais um conto

TCHALÉ FIGUEIRA, Mindelo, São Vicente de Cabo Verde, 1953
De Cabo Verde, Tchalé Figueira envia-nos mais um conto tecido nas horas em que se liberta do seu cavalete e da sua pintura 


OS MORTOS NÃO CHORAM

Já não tinha alfinetes para cravar na mente, foi à drogaria mais perto da sua casa e sem prescrição comprou duas garrafas de Bourbon falso feito de restos de pilhas de uma lixeira do bairro chineses. Tudo nele era descrédito e desolação, podia até beber urânio empobrecido, longe de alcançar aquilo que desejava. Tinha falhado em cinco matrimónios, tinha gasto milhares de dólares com psiquiatras e bruxos... bebeu incontáveis mixórdias e até esteve em Santo Antão, em Cabo Verde, umas ilhotas no meio do Atlântico, a 500 Km do continente africano, onde um famoso bruxo curava com pénis de tartaruga e grogue de arruda benzido pelo cardeal católico, a impotência.

Foto NG
Tentou tudo, mas nada funcionou. Desolado, regressou a Baltimore onde morava na sua enorme mansão. Com o tempo, sem solução para a sua miserável vida, vendeu tudo e foi para Calcutá e dali viajou atravessando a Índia. Miserável e feito um pária igual aos intocáveis, depois de longos anos chegou exausto a Benare onde viu piras com cadáveres queimando. Arrastando os pés, chegou às escadas banhadas pelo Ganges e num degrau da escada deitou-se… 

Com todo o peso do mundo em seu corpo, dormiu, pensando que estava sonhando viu o seu corpo numa pira ardendo. Não era sonho não! Aliviado soube que tinha morrido. Quis chorar, mas os mortos não choram.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

[0028] Pedro Silva e os micro contos (haicais)

PEDRO SILVA, Tomar, Portugal, 1977
Historiador com vários trabalhos publicados, Pedro Silva é também contista, o que completa a sua predisposição para a cooperação: benemérito, ofereceu a Ribeira Grande de Santiago (ilha de Santiago, Cabo Verde) uma biblioteca que recebeu o seu nome. A Biblioteca Municipal Dr. Pedro Silva encontra-se na localidade de S. Martinho Grande.





 BRASIL

Brasil... Terra de paixão, minha descendência lusitana. Vou à ponta mais ocidental da Europa, estico-me, esforço-me e não te vejo. Meu querido Brasil, estás aí ao longe? Sei que estás. Olha para mim, ouve-me, sente o meu apelo. Aceno-te desde Portugal. Não te esqueças nunca: mesmo longe, sempre aqui estarei para ti.

SERIA EU? 

Um dia, pensei encontrar-me. Olhei no espelho. Seria eu? Seria mesmo eu? Olhei para baixo, mirando as mãos e os pés. Parecia eu, mas não tinha certeza. As fotos que poisavam nos móveis da minha casa eram similares à imagem obtida no espelho. Tinha na altura cinco anos. Hoje, meio século depois, continuo sem saber: seria mesmo eu?

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

[0026] Francisco Pinto Balsemão e José Maria Neves escrevem livro em conjunto

Na Livraria Arnaldo França, na Achada de Santo António da cidade da Praia (Cabo Verde), a Rosa de Porcelana Edições e a referida livraria fazem no próximo dia 20, 18h00, o pré-lançamento do livro assinado por dois ex-Primeiros-Ministros. Francisco Pinto Balsemão e José Maria Neves, “Um Futuro a Construir”.

[0025] Sibila Aguiar oferece-nos a história de Malokenko, o menino que queria ver o mar

SIBILA AGUIAR, Lourenço Marques (actual Maputo), Moçambique, década de 40 do século XX

Moçambicana de nascimento, Sibila Aguiar é pseudónimo de Maria Helena Duarte. Escritora com livros publicados e pintora, a residir em Portugal desde os anos 50, nunca esqueceu as suas origens. Desde os tempos dos antigos “Juvenis”, fizeram-se uma presença sempre constante 




MALOKENKO

Desde o romper do Sol, muito, muito cedinho ainda, os garotos de todas as cores, filhos dos guardas-fiscais, mainatos e serventes, juntavam-se em grande alarido nos assaltos aos cajueiros, às mangueiras e nas correrias tipo polícia e ladrão…
Uns, bem vestidos, outros esfarrapados deixando à vista os ventres cabeçudos de umbigos salientes…
Estavam ligados por um sentimento belo que ao longe os meninos da cidade não conheciam: a fraternidade.
Porém, quem observasse o grupo chilreante, notaria com certeza o olhar distante de Malokenko… 
Malokenko não entrava na brincadeira…
Era um menino estranho que se sentava à porta da palhota e fazia desenhos na areia… Sabia muito, e contava histórias de feitiços e bruxas que se penteavam no rio nas noites sem Lua…
Malokenko era preto mas tinha alma branca… Malokenko o menino preto diferente nunca tinha visto o mar…
E quando dormia, sonhava que o mar era um rio muito grande onde o Sol se via ao espelho e que a Lua amava…
E os meninos cresceram…
Os filhos dos guardas-fiscais foram à escola… E os filhos dos mainatos e dos serventes como Malokenko, precisaram de ganhar a vida…
Apanhavam espargo para vender na cidade… Muitas vezes ninguém comprava…- E os meninos não tinham veias porque a pele era preta…
Não tinham mãe… e pediam pão porque a fome era como a cor que lhes cobria a carne… E paravam nas montras das pastelarias, lambendo os beiços, como se os olhos engolissem aquilo que o ventre pedia…
Só Malokenko não trabalhava… Chamavam Malokenko preguiçoso…
Mas ele não ouvia… Ao longe o mar bramia na cabeça do menino estranho e a espuma desfazia-se na carapinha preta do menino preto…
Um dia, os garotos de espargo falaram-lhe do mar e levaram Malokenko a vê-lo… Então… viram-no correr, correr de braços abertos e olhos brilhantes como se quisesse abraçá-lo… Malokenko correu muito, ficou cansado… Contou ao mar sua saudade, seu cansaço…E deitou-se nas águas que o beijavam quentes…
Anoiteceu …
E no dia seguinte entre as espumas brancas que o mar fazia de encontro à areia, o menino preto jazia sorrindo porque o mar tinha finalmente ouvido o seu chamamento.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

[0024] Manuel Ruy galardoado com o Prémio Agostinho Neto

O romance de Manuel Rui Monteiro (conhecido por Manuel Ruy) “Quem me dera ser onda”, uma história aparentemente simples, quase infantil, mas que aborda temas sérios presentes na sociedade angolana após a independência, foi galardoado com o Prémio Agostinho Neto. Escrito em 1982, é aparentemente uma história infantil, com destaque para as personagens principais (duas crianças e um animal - um porco). 

A figura fundamental que perpassa o texto, uma mescla política e uma crítica à sociedade de Luanda da época, que esqueceu e apagou todos os valores antigos. A alienação cultural, social e política é dada através da figura do pai das crianças que não entende certas preocupações humanas e se revela completamente desintegrado do espaço social representado pelo prédio e mesmo pela cidade em que vive. 

[0023] Olinda Beja lança livro "Simão balalão" na sede da UCCLA, Lisboa

Uma história infantil, de sonhos e de procuras, de um menino que vive numa ilha o “Simão Balalão”, da autoria da escritora Olinda Beja, será lançado na UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa), no dia 26 de Janeiro, às 15h30.


[0022] Contadores de histórias da ilha de Moçambique

Decorrem na ilha de Moçambique sessões que promovem o encontro entre crianças e livros e o prazer pela fruição do livro e da leitura. As exemplares rodas de leitura e ateliers semanais criam e fortalecem os hábitos de leitura nas crianças, desde a primeira infância.
Estas atividades educativas, sociais e culturais - desenvolvidas pelos técnicos das bibliotecas públicas do Distrito da Ilha de Moçambique traduzem uma união de esforços para a melhoria das competências básicas de leitura e escrita, de promoção do livro, compreensão e expressão oral com crianças e jovens, implicando a aplicação de estratégias pedagógicas e educativas trabalhadas em formação e a implementação do Projecto Educativo Local entre técnicos de bibliotecas públicas para o desenvolvimento da autonomia, da reflexão e pesquisa em autoformação cooperada. 
Estas ações decorrem no âmbito Cluster da Cooperação Portuguesa da Ilha de Moçambique 2.ª fase - Componente 1 - Eixo da Educação. Têm como entidades executoras a UCCLA em parceira com o Conselho Municipal da cidade da Ilha de Moçambique, Conselho Municipal de Maputo, Câmara Municipal de Lisboa e apoio da SDEJT (Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano) com o financiamento do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

[0021] Tchalé Figueira, um viajante de mundos e um conto vindo de Cabo Verde

TCHALÉ FIGUEIRA, Mindelo, São Vicente de Cabo Verde, 1953
Na sua juventude, Tchalé correu mundos e teve mil ofícios. A bordo de um navio, conheceu povos diversos e colheu diferentes experiências. O presente conto é delas herdeiro.


NO DESERTO DE SANOKY

No deserto de Sanoky, entre o céu e um sol vindo das forjas do inferno, um forte cilíndrico e as suas guaritas direcionadas  para os quatro pontos cardeais.  Quatro bandeiras esfarrapadas bailam em mastros corrompidos pela intempérie, redemoinhos bailam num canto de ensandecer, vozes do vento numa constante vem de nenhures. Tudo é sonho ou fantasmas de sonhos na desoladora paisagem. Quatro guerreiros nervosos, esperam a vinda dos Atalampos, que, segundo uma lenda, vivem nas estepes onde existem rios, agro verde e animais de caça. Terra de valorosos guerreiros, temíveis,  de grandes espadas, sempre trajados com peles de animais e chifres de veados ornando as suas cabeças.

Um cão selvagem cor de areia corre atrás da sua sombra, no zénite deste dia o horizonte tremeluza e, os quatro guerreiros, apreensivos, aguardam um mito... (ou será verdade?) A terra vermelha num suplício voa em todas as direções, o tempo pára, os quatro homens nervosos nas guaritas escutam o rumor do vento e o bater dos seus corações. Faz hoje trinta dias e trinta noites que aguardam, esperam ser rendidos por soldados do seu exército que virão  dos confins da cidade das areias mágicas, Kalugame, onde mora o seu povo, os Fulangene, inimigos mortais dos Atalampos. 

No limiar da loucura, os vigias esperam... Rendição ou o inimigo? Qual deles chegará primeiro?

Como se de um milagre tratasse,  o azul do imenso deserto de repente abre-se, o vento pára, a poeira assenta, na guarita direcionada para o oriente um dos soldados avista no horizonte tremeluzindo, espectros de pessoas em montadas aproximando-se, que vão crescendo gradualmente. Serão Atalampos? Serão Fulangene? 

Agarrando na corda de um velho sino, no teto do cubículo, o homem da guarita do oriente, nervoso, começa a badalar o sino, alerta seus companheiros pasmados, que subitamente, acordam do seu torpor.

Aproximando-se cada vez mais do forte, o soldado nota que os cavaleiros montados em robustos cavalos têm ornamentos nas cabeças, chifres de veados, um gosto amargo. A morte começa a descer lentamente pela sua traqueia.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

[0020] Prémio Literário UCCLA - Novos Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa

2047 concorrentes candidataram-se, em três anos, ao Prémio Literário UCCLA – Novos Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa, que visa ao estímulo, enriquecimento e promoção da língua portuguesa. 
O prémio aposta na valorização de novos escritores, que nunca editaram qualquer obra, e tem contribuído para o sucesso do Prémio Literário UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa).
 O Prémio Literário UCCLA - Novos Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa  é uma iniciativa conjunta da UCCLA, Editora A Bela e o Monstro e Movimento 2014, que conta com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa.
Em 2016, candidatam-se 2016 concorrentes (dos 16 aos 90 anos), em 2017 foram 520 e em 2018 registou-se um parcial de 805 concorrentes. Não só escritores de nacionalidades lusófonas responderem “presente” a este concurso, mas também de outras nacionalidades, como da Alemanha, dos Estados Unidos da América, Argentina, Canadá, Espanha, Holanda, Inglaterra, Itália, Paraguai e Suíça. 
Nestes três anos (de 2016 a 2018), o Prémio foi já atribuído ao português João Nuno Azambuja (2016), ao brasileiro Thiago Braga (2017) e ao paraguaio Óscar Moldano.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

[0019] Nuno Rebocho e um grilo de boa voz

NUNO REBOCHO, Queluz, Portugal, 1945
Jornalista e poeta, o autor nunca menosprezou a ficção, como o demonstra o seu romance “A Segunda Vida de Djon de Nha Bia”(além de outros arremedos ainda na carteira). Durante dez anos esteve recolhendo histórias, minimilizando-as, reduzindo-as ao mais simples. Esta é um dessas historietas apodadas de “fábulas cínicas” e dedicadas “a quantos mantêm capacidade de ser meninos”. 


O GRILO CANTADOR

Enfiado na lura, o grilo cricrilava todo o santo-dia extenso cantar. Do emaranhado de estevas e salgueirinhas ressaltava um quase chilreio a entrelaçar-se nos odores da paisagem. Minúsculo e preto, o invertebrado cantava de natural alegria pela abundância do pasto e no chamamento da fêmea - taciturna e muda, gélida como as fêmeas que se prezam de boa educação e muitos preconceitos.

Quem passava nas redondezas sustinha-se. Ficava por uns momentos embevecido, de ouvido à escuta, na admiração daquele som agudo e intermitente, recheado de felicidade. Mas o grilo, à cautela, mal pressentia anormalidades no sussurro conhecido dos arbustos, remetia-se ao silêncio. E as cores das plantas, mesmo o vermelho queimado do chão, como que emurcheciam.

Era, pois, previdente o grilo. Por vezes, escapava-se para fora da toca a mirar o sol. Todavia, pelo sim pelo não, não fosse o diabo tecê-las, regressava ao casulo e retomava a cantoria. Nesta placidez, o bicharoco vivia, comia, refastelava-se, fazia necessidades, perpetuava a espécie, dormia e, sobretudo, cantava.

Não há felicidade que sempre dure. É o que se diz. De facto, uma bela tarde, o azar tocou-lhe para se cumprir o destino fatal dos grilos. Estava ele baladando como era costume, quando o acaso quis que por ali perto passasse um garoto. Ouviu-lhe o cricri. Parou. Orientou o ouvido. O bichito teve pressentimento de perigo. Quedou-se no buraco. Sem fugir.

Porém, sabido era o catraio. Conhecia os hábitos da caça, tivera tempo para calcular onde se acoitava o brinquedo. De gatas, as mãos separaram trevos, ervilhacas, ervas, apalparam o terreno; o rapazinho, paciente, procurou-lhe o poiso. Ao resto de uns minutos, encontrou-o.

Pegou numa palhinha. Enfiou-a no orifício, pôs-se a rodá-la. E o grilo, coitado, sentia o ariete tocar-lhe ao de leve a carapaça, atingir-lhe o rabo com arrepiantes cócegas. Todo estremecia, rodopiava. Não se conteve e cantou. Ao ritmo da música, à cadência das festas, as pernas mexeram-se, retiraram-no da toca.

O garoto vencera no ardil. Carinhosamente, tomou-o entre dois dedos, colocou-o na palma da mão, mirou-o satisfeito. E guardou-o dentro de uma caixa de fósforos que consigo levava e na qual fizera dois furos para o animal respirar.

Pobre do grilo preso! Triste a escuridão da caixa fechada! O cantar não tinha a mesma vivacidade. Que importava ao garoto se lhe escutava a melodia? Levou-o para casa, arrumadinho em cima de uma prateleira. Todas as noites, o rapaz levava-lhe um naco de alface borrifada de água. E o grilo cantava, cantava. Em recompensa, o dono fazia-lhe cócegas no rabo. Com uma palhinha.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

[0018] Teresa Balté e um percevejo vienense... beneditino e avisador

TERESA BALTÉ, Lisboa, Portugal, 1942
Poetisa, pintora e docente universitária de Filologia Germânica, Teresa Balté estreou-se no mundo literário em 1967, com a publicação do livro de poemas "Estações". Para além de poesia, escreveu dois livros infantis, nomeadamente "A Abelha Zulmira" (1979) e "O País Azul" (1990). Em 2009, assinou o livro "Hein Semke – A Coragem de Ser Rosto", uma das obras biográficas mais completas dedicadas ao artista plástico alemão e seu falecido marido. Em Abril de 2018 realizou na galeria Perve (Lisboa) uma exposição antológica da sua obra pictórica.

PROVIDÊNCIA

Registo a noite de há cinco anos, a última em Viena,
passada na pensão dos monges beneditinos, no 1.º distrito, por sinal caríssima. Jantara com amigos e recolhera tarde ao quarto imaculado, de Bíblia na mesa-de-cabeceira e crucifixo na porta do roupeiro. Deitei-me. Ia apagar a luz quando o vi na parede. Miúdo ainda, mas inconfundível. O percevejo. Não pensei em matá-lo, haveria mais, provavelmente. Impossível deitar-me na cama, impossível dormir. Instalei-me na cadeira de madeira e, para manter-me vigilante, li no Antigo Testamento. Às quatro da manhã, fui arranjar-me. De ouvido atento, pois pedira que me despertassem às quatro horas. Até às quatro e vinte, o telefone não tocou. Peguei no saco de viagem e desci. Às quatro e trinta estava à porta do convento. O táxi que reservara na véspera, pontual, já chegara. E assim, graças ao percevejo, ainda vi o sol nascer sobre a cidade e não perdi o voo da TAP, para Lisboa.

9.7.2016

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

[0017] Pepita Tristão e um rafeiro quase familiar...

PEPITA TRISTÃO, Castelo de Vide, Portugal, 1951

Pepita Tristão Cardoso traz dos episódios, por vezes absurdos, do quotidiano comum a matéria com que a narrativa se enche. 

Capta na bancada da Imprensa Regional a substância utilizada pelo seu outro lado - o de ficcionista.





O TIO RODOLFO 

Convidaste-me para jantar e, embora sem vontade aceitei.
No fim e ao cabo, somos casados há tantos anos, mas a rotina não entrou em nossas vidas.
Talvez por minha culpa... talvez por tua... ou porque somos ambos demasiado criativos para repetir os mesmos passos, dia após dia.
No entanto, ontem, apesar de não me apetecer, resolvi ir jantar contigo. 
Disse adeus ao único dos nossos filhos que resolveu ficar em casa numa tarde de domingo e rumamos porta fora.
Como de costume, sem destino. 
- Queres ir até às Festas do Mar, comer umas febras ou à Feira do Artesanato? perguntas sem obter resposta, pois eu queria mesmo era enterrar-me no sofá a ver televisão.
- Já vi que não te apetece, que tal a Alcabideche?
Encolho os ombros. Neste momento tanto me faz. 
Uma travagem súbita projectou-me quase atingindo o vidro dianteiro. Abençoado cinto de segurança!
Era um cão enorme e façanhudo que se tentara suicidar, atravessando a auto-estrada.
Apesar de mal lhe ter tocado, ficou parado a olhar para o carro, com um olhar infeliz.
- Só me faltava esta! – exclamas, enquanto eu tento recobrar o uso da palavra. Acho que nem lhe toquei e não sai dali!
- Deixa que eu vou ver. 
- Mas não posso parar no meio da auto-estrada! – quase gemeste.
- Tenta encostar mais à direita
A fila atrás de nós começava a formar-se, enquanto alguns apressados manobravam pela esquerda, quase roçando o animal. 
Abro a porta do carro e ele aproxima-se, parecendo querer entrar. Saio e deixo-o entrar, abrindo a porta de trás. 
Acomoda-se, como se apenas estivesse à espera disso. 
- Que é que fazemos? – perguntas
- Temos de procurar um veterinário e depois ver se tem dono.
- Num domingo, às 21 h? Onde vou eu descobrir um veterinário?
Recordei-lhe que a clínica veterinária onde levámos os nossos cães trabalha 24 horas por dia e ele dirigiu-se para lá.
Ao sair do carro, já com a iluminação da clínica atentamos melhor no animal, que nos seguia docilmente. 
- É façanhudo e velho. Parece-se com o teu tio Rodolfo – comentas com humor... afinal já te recompuseste da contrariedade...
Depois de observá-lo, o veterinário concluiu que apesar de mal tratado e possivelmente mal alimentado – deve ter andado ao abandono! – o animal não tinha qualquer ferimento.
- Onde é que vão metê-lo? Pergunta preparando-se para preencher a ficha. 
- De momento vai para nossa casa. Amanhã procuramos o dono nas imediações do local onde o encontrámos. 
- O mais certo é ter sido abandonado há muito tempo – desencoraja-nos o veterinário. Querem mesmo levá-lo?
Assentimos ambos, pensando na reacção da Bibi e do Lobo, ao receberem outro hóspede. 
Se calhar teríamos de separá-los, pois o Lobo, um pastor alemão de grande porte não devia querer concorrência. Quanto à Bibi, a minha cocker, não levantaria problemas, pois era muito brincalhona e amistosa para os outros cães. 
Só não gostava do Tio Rodolfo, que as poucas vezes que nos visitava, tinha prazer em irritá-la, pelo que logo que o via se escondia, rosnando.
Já o Lobo adorava-o, entregando-se às mais divertidas brincadeiras, quando ele o provocava.
Ensimesmada como estava nem ouvi o veterinário perguntar em que nome devia preencher a ficha do bicho, “mistura de rafeiro alentejano e pastor alemão”, só dando atenção à resposta do meu marido. “Rodolfo!”.
Sustive um impropério, até porque fixando melhor o animal, até acabei por achar umas semelhanças com o legendário irmão de minha mãe, pelo que disfarcei um sorriso, enquanto ele pagava a conta.
Gorado o nosso jantar, regressámos a casa, o que não me desagradava nada, embora a instalação do Rodolfo me roubasse qualquer veleidade de passar um serão sossegado.
Mal parámos o carro, Rodolfo saiu, dirigindo-se alegremente para a porta do jardim. 
- Até parece que conhece a casa! – comentei.
- E conhece... pelo olfacto percebe que é aqui.
Para nosso espanto, não mostrou qualquer receio do Lobo, que contra seu costume, o recebeu de rabo a abanar, com latidos alegres.
- Parece que não há crise! – exclamas.
- Ainda bem. Assim, pode ficar cá fora, na casota da Bibi.
Tínhamos comprado duas casotas, na esperança de que a Bibi se habituasse a dormir debaixo do alpendre, como o Lobo, mas ela recusara-se terminantemente. 
Assim, antes de entrar em casa fui à arrecadação procurar um dos velhos cobertores que guardara para os cães, e um prato que enchi com ração.
O Rodolfo não se fez rogado, devorando tudo, avidamente, perante o olhar sereno do Lobo. 
Quando acabou, estendi o cobertor na casota vazia, que lhe mostrei, dando-lhe a perceber que lhe pertencia. 
Farejou, entrou e ficou a olhar para mim, como quem espera alguma ordem. – Deita-te! 
Mal tinha pronunciado a sentença, eis que surge, furiosa, a minha pequena e doce Bibi. 
Latindo e rosnando, fez recuar Rodolfo, entrando para a casota, onde se instalou sempre de dentes arreganhados.
Por mais que tentasse levá-la para casa, não consegui. Resignada, e como a noite estava óptima, decidi ir procurar outra manta que estendi no chão, para que o nosso visitante se deitasse, mas... ao virar-me, não o vislumbrei por perto. 
Onde é que ele se meteu? No nosso jardim. do Rodolfo nem rasto. 
Entrei em casa, quando o meu filho mais novo espreitava à porta, com ar contrariado, por ter sido arrancado da frente do computador.
- Sempre gostava de saber o que vocês estão a fazer às voltas aí fora, enquanto a casa é invadida por cães pulguentos.
Praguejei, entre dentes. Enquanto estava a arranjar-lhe a cama na rua, Rodolfo entrara, sem cerimónias para a sala e fora-se deitar com o maior à-vontade, num cadeirão antigo que ninguém usava. 
O cadeirão do “tio Rodolfo”, como lhe chamávamos, por ser o preferido do meu tio, nas suas raras e inesperadas visitas. 
- Não me digas que não se parece mesmo com o teu tio – ri-se o meu marido.
- Brincas, mas eu começo a não achar piada. O cão tem algo estranho nas suas atitudes.  Parece compreender-nos... sempre ouvi dizer que os rafeiros são mais espertos que os outros cães.
Dada a pouca vontade que ele manifestava em abandonar o velho cadeirão e como eu já estava demasiado cansada, desisti e resolvi deitar-me, mesmo sem jantar, depois de recomendar ao meu marido para esperar que os outros filhos chegassem, não fosse o animal assustá-los, ou, como não os conhecia magoá-los.
Deitei-me a pensar em meu tio, que era pouco mais velho do que eu e sempre fora considerado a “ovelha negra” da família.
Oferecera-se para a tropa como voluntário sem ninguém saber e quando fora destacado para África, pouco antes do 25 de Abril, nunca mais dera notícias, para desgosto da minha avó materna e de minha mãe que pensava ter perdido o seu irmão mais novo.
Passados uns dez anos, sem qualquer aviso prévio, ligou para casa, dizendo que tinha acabado de chegar, e pedindo para o irem buscar ao aeroporto.
Como a avô e a mãe ficaram completamente atarantadas, vieram ter comigo, que estava com baixa de parto e  rogaram-me que fosse lá. 
Assim que me viu, abraçou-me, perguntando por todos, como se tivesse acabado de passar uma semana de férias fora.
Trazia um saco cheio de prendas para toda a família, excepto para os meus três filhos, cuja existência desconhecia. 
Com uma disposição exuberante distribuiu artefactos africanos por todos nós.
Decidiu ficar em minha casa. “Gosto de estar entre jovens”. A avó é que choramingou um pouco, incapaz de conter a felicidade de ver reaparecer o filho. 
Durante duas semanas esteve em casa, partilhando o quarto com o meu filho mais velho, deitando-se no chão, dentro do seu saco cama, pois recusou o quarto de hóspedes.
Contou mil e uma aventuras que viveu em África, aflorando ao de leve que deixara ainda alguns negócios pendentes. 
Num domingo, telefonou para a família, convidou-nos todos para jantar fora e anunciou, com a maior das naturalidades que no dia seguinte embarcava para a América do Sul.
“Negócios”, foi a única explicação.
Desde então, aparecia na minha casa uma ou duas vezes por ano, em visitas que podiam durar dois dias ou duas semanas, chegando carregado com os mais incríveis presentes, oriundos dos mais recônditos lugares da terra, e partindo, sem deixar endereço nem contacto.
Em casa, mesmo ficando no quarto de hóspedes, nunca utilizava a cama. “Mau hábito para quem passa a vida em expedições”, explicava.
Gostava de sentar-se no velho cadeirão do avô, que eu colocara em minha sala, quando a avó decidira livrar-se dos “monos” que lhe recordavam demasiado 40 anos de vida a dois e, rodeado pelos meus filhos contava histórias de indígenas, das Áfricas e Américas.
Há algum tempo que o tio Rodolfo não aparecia em casa. 
Viera pouco antes do Natal passado e desde então, até hoje - já o Outono ia adiantado - não dera notícias.
Que pensaria ele se chegasse a casa e encontrasse um cão com o seu nome? Se calhar, achava piada e soltaria uma das suas sonoras gargalhadas.
Sem irmãos, Rodolfo é para mim o irmão que não tive e, apesar do pouco contacto que temos mantido, gosto mesmo muito dele!
Pensando nisto, acabei por adormecer.
No dia seguinte andámos, com o Rodolfo atrás, pelos bairros localizados perto do local da auto-estrada onde o encontrámos. Ninguém o conhecia.
Devia ser de uns ciganos que por aí acamparam com uma data de cães, foi a opinião generalizada.
Passaram-se mais alguns dias e Rodolfo começou a fazer parte da nossa rotina. Seguia-me para todo o lado. Durante o dia brincava em alegres correrias com o Lobo e ao serão, instalava-se no sofá da sala, para desespero da Bibi, que morria de ciúmes.
- Tenho de habituar este cão a ficar lá fora – repetia eu, todas as noites, mas acabava por o deixar ficar na sala e deitar-se ao lado da cama do meu filho mais velho, que o adorava.
Cerca de uma semana depois, recebemos uma chamada da Índia.
- Deve ser o tio Rodolfo, comento, enquanto aguardo a ligação.
Era o próprio embaixador de Portugal naquele país que queria falar com um familiar de Rodolfo Meireles.
- É o meu tio – respondo, preocupada.
Incrédula, ouço a voz que do outro lado do mundo me comunica que o tio teve um acidente grave e, não resistindo aos ferimentos, acabara por falecer, horas depois.
- Quando? – perguntei, com a voz embargada.
- No passado domingo.
Rodolfo, que estava deitado aos meus pés, parece ter compreendido o meu desgosto. Levantou-se e, erguendo a pata direita, pousou-a sobre os meus joelhos. Fitando-me com o seu doce olhar, parecia querer dizer-me: - Não te preocupes. Eu estou aqui contigo e desta vez, vim para ficar.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

[0014] Prémio de Literatura Oceanos

Serão anunciados no próximo 7 de Dezembro, no Palácio da Ajuda (Lisboa), os vencedores do Prémio Oceanos, edição de 2018. Este Prémio de Literatura em Língua Portuguesa será anunciado pelo Ministério da Cultura.

[0013] Concurso de histórias bascas

Com prémios de 1000 euros para o vencedor e 500 euros para os finalistas a Zenda Autores, Libros y companhia com o patrocínio da Iberdrola promove um concurso de histórias bascas para textos originais e inéditos, escritos quer em euskera (língua do País Basco) ou quer em castelhano na extensão mínima de 100 caracteres e máxima de 1000 palavras. A selecção de 5 histórias concorrentes deverá ser publicada na Internet (blogue, facebook ou twitter) de 28 de Novembro às 12H00 até 9 de Dezembro às 23H59. Para este concurso foi designado um júri constituído por seis elementos: Txani Rodríguez, Ana Malagón, Iban Zaldua, June Fernández,  Ander Izagirre y Mikel Urkiaga. Mais informações devem ser pedidas a contacto@zendalibros.com.

[0012] De novo Deodato Santos, desta feita "Guardador de gotas de água"

DEODATO SANTOS, Lagos, Portugal, 1939 
Na serra algarvia, o lacobrigense Deodato Santos molda as palavras com a mesma ousadia com que ataca e esculpe a dureza da pedra. 

A ousadia que o levou a desafiar o antigamente e a buscar no exílio a liberdade para manejar a palavra em consonância com o seu pensamento (e sentimento)

Sobre o escultor e escritor Deodato Santos, ver AQUI




O GUARDADOR DE GOTAS DE ÁGUA

Escultura de Deodato Santos
Nem todas foram especiais como aquelas vindas congeladas de um glaciar alpino, ou como aquelas recolhidas de um amanhecer de nevoeiro em Serpa, ou como aquela que deslizou pelo vidro que me separava do exterior quando sobre ele com um dedo fiz um traço horizontal.
A maior parte foram gotas vulgares.
Como aquela que emitiu sinais de luz - que se quisessem dizer alguma coisa apenas seriam compreendidas pela eternidade - do ponto exacto matemático que situava o centro do seu máximo instável equilíbrio esférico, a sua efémera rotundidade, a sua curta prenhez e o seu rápido parto.
As recolhi, as guardei.
As entregarei a um derradeiro viandante, desapaixonado plenipotenciário incumbido de enigmáticos desígnios.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

[0010] Depois do carneiro filósofo de Nuno Rebocho, temos hoje as moscas filósofas de Nicolau Saião


NICOLAU SAIÃO, MONFORTE, 1946
Com o pseudónimo de Nicolau Saião, reparte a sua reforma entre Portalegre e Arronches. Poeta e escritor, é a segunda vez que visita este portal.


ANÍBAL E AS MOSCAS FILÓSOFAS

Estava há sete semanas naquele quarto de hospital e principiava a chatear-se.
Todos o tratavam muito bem - alguém lhe emprestara mesmo uma telefonia – mas o certo é que começava a sentir-se ligeiramente aborrecido.
Não era que a enfermeira não lhe trouxesse a comida quentinha a horas certas, nem que o dr.Varela lhe faltasse com a sabedoria médica. Não. Toda a gente era realmente muito simpática, mas ele principiava a ficar um bocado… frio.
A partir da terceira semana começara a segredar para si próprio ideias que apanhava ao calhar. E, caso estranho, pensava, pensava muito, pensava como nunca havia pensado: pensamentos gordos, mesmo suculentos, que lhe deixavam na boca um sabor esquisito e galopante, como se fossem comboios molengões andando sobre carris podres. Não estava a gostar nada daquilo.
Além do mais, de noite o quarto enchia-se de vagas correrias, vagas risadas…
Virou-se para o outro lado.
O pára-choques apanhara-o exactamente em cheio no sítio onde as costelas dizem adeus ao estômago. Acordara depois, de súbito, numa cama descompassada com formigas e abelhas a passearem para baixo e para cima a toda a altura do esqueleto, suaves, venenosas. A cabeça muito bem entrapada repousava virtuosamente sobre uma almofada branca. Em volta, tanto quanto se lembrava, uns fantasmas abusadores deambulavam num leva-traz peculiar zurzindo o ar ambiente com uma lengalenga que nem por ser em voz sumida era menos estarrecedora.
Depois foi-se habituando.
O dr. Varela chegava ao crepúsculo, ou ao nascer do sol, com os óculos muito calmos e mudos a apontar na sua direcção: pegava-lhe no pulso, rosnava sabiamente, abanava a cabeça e, antes de sair, escrevia qualquer coisa num papel. Ele por momentos pensava que o dr. Varela tinha um pacto secreto com o seu aborrecimento, mas está-se a ver que era só impressão.
A enfermeira, como é natural, vinha mais vezes. Tinha um nome impronunciável, olhava aos ziguezagues e era magra e penugenta. Cheirava a relógios bem lubrificados e nunca se ria. Também não devia ter de quê, pensava ele, mas tudo aquilo lhe fazia nervos.
A enfermeira era ferozmente cumpridora. Uma boa profissional: puxava-lhe a roupa para o pescoço se o topava destapado, metia-lhe pastilhas entre os beiços, a horas correctas ajudava-o a assoar-se e a fazer mais coisas. Enquanto ele teve os braços em gesso, deu-lhe a papa com um clarão de bondade nos sobrolhos perfeitamente assustador.
O termómetro que sempre transportava no bolsinho da bata constituía uma realidade imprópria.
Saía depois de o olhar com satânico interesse a enfermeira.
Antes de fechar a porta a sua mão traçava no ar um círculo cinzento e agressivo
A esposa visitava-o três vezes por semana, mas isso já não o arreliava por aí além.
Arte de Nicolau Saião
Ficara imunizado por dezassete anos de matrimónio. Já estava mais que familiarizado com o seu narizinho de coruja egoísta e com a sua voz que a passagem do tempo tornara rascalhante. Limitava-se a ficar calado, com os olhos bem fixos no meio do tecto. Às quatro da tarde a esposa abandonava a partida e ia-se com o seu passo de flamingo de noventa e oito quilos. Ele fingia que não era nada com ele.
Foi no dia em que lhe tiraram as últimas ligaduras que ele viu as moscas.
Eram duas, esvoaçando solenemente na meia sombra com um ar tranquilo e respeitável. Tinham o aspecto de moscas de sociedade, talvez já grisalhas dos anos e ele por uns segundos raciocinou que até nem se espantaria se lhes visse bengala e gravata.
Durante vários dias as moscas não lhe largaram o quarto.
Eram moscas filósofas. As suas conversas, num tom muito fino e discreto, eram do mais alto interesse e centravam-se sobre os grandes temas do universo: o Homem, o Tempo, a Infância, todas as coisas – enfim – que horrorizam ou causam prazer, o Mundo, o Amor e a Morte. Um nunca mais acabar de problemas maravilhosos e inextrincáveis.
A ele o que mais o danava era o seu arzinho superior, como fingindo que nem por ele davam: como se ele fosse um retrato decrépito que para ali estivesse. E, no entanto, elas bem sabiam que ele não perdia pitada das conversas, com os punhos o mais possível cerrados.
Começou a detestá-las. Precisamente no dia em que lhe tiraram o gesso da perna direita.
No entanto, por orgulho, nunca tentou imiscuir-se nas suas conversas. Ainda não descera tão baixo.
Na tarde seguinte, tarde de visita conjugal, as moscas falaram do Ser e das metafísicas, Falaram também das estrelas e seus prestígios, dos barcos à deriva nos mares antigos, dos astrónomos e dos reis dos países afastados. Ele sofria tanto que foi com renovado alívio que viu a cara-metade abandonar a cena da sua tortura.
Com pasmo e raiva estendeu o braço e abriu a telefonia. Adormeceu ao som dum fadinho picado em surdina.
E sonhou sonhos esquisitos de defuntos e bosques imensos, de catedrais e aranhas.
Acordou ao crepúsculo. Em cima da mesa estava uma bandeja com vitualhas. Nada se ouvia. Nem…o voar de uma mosca.
As moscas tinham partido. Durante o seu sono pela tarde fora, tinham decerto voado através da janela entreaberta buscando diverso poiso, concerteza sempre debatendo entre si as coisas belas e incríveis. E ele sentiu de súbito vontade de partir tudo, pois já lhes havia jurado p’la pele: quando estivesse de posse de todos os seus meios físicos, ele lhes diria. Haveria de as ensinar com decisão: ficariam, até, sem vontade de tasquinhar o mais apetitoso bocadinho de excremento.
Mas o certo era que haviam partido. Inexoravelmente. E nada, pensou, poderia fazer!
O crepúsculo, cinematográfico e devorador, entrava aos gargarejos para dentro do quarto. Do outro lado da porta uns passos conhecidos crepitaram com energia.
O dr. Varela entrou, com os óculos muito serenos.
Com uma branda emoção a palpitar progressivamente na garganta ele deu por si a notar, cheio de deliciosas comichões, que a cara do dr.Varela era mesmo, mesmo parecida com a da mosca mais faladora.  

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

[0009] Nuno Rebocho, um contador de fábulas, com a "Fábula do carneiro filósofo"


NUNO REBOCHO, Queluz, Portugal, 1945
Jornalista e poeta, com um romance e dois livros de crónicas já publicados, Nuno Rebocho é igualmente contista. Nos trabalhos ainda “na gaveta”, há um conjunto de “fábulas cínicas”, crítica de costumes e de comportamentos. Como esta historieta de um rebanho alentejano… 
Continuamos, assim, a repetição dos contistas já publicados em "Contos da tinta permanente". Na próxima terça-feira, teremos de novo Nicolau Saião.

FÁBULA DO CARNEIRO FILÓSOFO

Eram todos merinos e seguidores do chefe. Dava gosto vê-los, de lindos, lindos: o chefe balia num méhé feito de tremuras enquanto o chocalho tilintava o compasso do trote. O resto do rebanho lá vinha atrás, passinho à semelhança do do guia, no coro monótono - méhé. Vigiado por modorrento serra d’aires, o rebanho era feliz.
Quase. Porque não faltava - era fatal - quem destoasse, a ovelha ranhosa como por cá se diz. Tinha chifres espirais, retorcidos, mal-educados à definição e conveniência dos costumes: era o desalinhado carneiro filósofo, espírito anarca. Era o punk. Tinha vício tremendo: protestar. E hábito contumaz, pernicioso: contestar.
Entre dentes, o sujeito desalinhava no meio do coro tranquilizante dos balidos simétricos: “Cambada! O que o chefe faz, todos fazem. Sem imaginação, sem inspiração. Merecem o nome que têm. Carneiros, carneiros todos!”
Deste jeito se passavam dias. O chefe adiante, o rebanho atrás, passo certo, balido de mando, balidos de obediência, concêntricos, monocórdicos, satisfeitos. E o pastor, encostado ao cajado, pernas enfiadas nas safonas, dormitava. O carneiro filósofo protestava.
Lógico que, nas circunstâncias, fosse olhado de lado. Os pares ficavam à distância, não coisasse o mal espalhar-se e manchar honras feitas desde o berço, segundo sábia tradição passada de pais para filhos, de avós para netos. A irritação do filósofo crescia na razão direta do isolamento. Passou a ser o da cauda, o último, passo trocado, rebelde ao praxismo.
À hora do sol-pôr, depois de tangidas trindades em igreja próxima, o rebanho a trote a caminho do ovil. Vinha o guia, como sempre, na dianteira, assistia-se à ordem: logo atrás, em fila, o rebanho no passinho sempre igual, sempre certinho, balido uníssono nas respostas ao chefe. Obviamente: o último de todos, o carneiro filósofo, esse, resmungava.
Eis senão quando o chefe tropeçou na vereda, despenhou-se em cambalhotas na vala direita que a bordejava. Outro, outro e outro, carneiro após carneiro, o rebanho atirou-se, disciplinado, aos tombos, em mortais, em piruetas, para o fosso. O carneiro filósofo tasquinhou. Regougou. Guinchou:
- Cambada, cambada! Para onde vai o chefe, vão todos. Vejam só. Tem isto algum jeito?
E zás, contestatário, atirou-se em força para a vala do lado esquerdo.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

[0007] Pepita Tristão oferece-nos "Sombras e sonhos"

PEPITA TRISTÃO, Castelo de Vide, Portugal, 1951
Pepita de Alegria Sanchez Tristão Cardoso é uma veterana da imprensa regional portuguesa que, ao dia a dia das notícias, acrescenta o mister de contista permitindo-lhe o repassar para a novela muito do que perpassa diante dos seus olhos. E são contos poderosos…


SOMBRAS E SONHOS

O dia amanheceu cinzento, tal como o meu espírito.
Por entre um nevoeiro cerrado, impróprio de um Verão que se preza, diviso a tua sombra.
Chamo-te, mas não olhas para trás. Prossegues num passo apressado.
Por mais que estugue o meu, seguindo na tua peugada, quase te perco, de cinzento vestido, entre a névoa que teima em não abrir.
Corro, mas mesmo assim, a distância mantêm-se até que paras junto do quiosque onde diariamente comprávamos o jornal – o único que às 7. 30 da manhã já está aberto.
Aproximo-me, enquanto folheias um vespertino e tento puxar-te pelo braço para te chamar a atenção.
A minha mão encontra o vácuo. Tu não és senão a minha vontade de te trazer de novo à vida.
Envergonhada, pago o jornal que folheaste.
O meu coração sente-se ainda mais oprimido, enquanto, como uma autómata, me dirijo ao café onde tantas vezes tomámos o pequeno-almoço, juntos, ainda impregnados de vestígios da fusão dos nossos corpos, que nem o duche rápido conseguia apagar.
Sento-me numa mesa, solitária, frente à enorme vitrina que me separa da rua pardacenta.
Em vez da habitual bica, peço ao rapaz ensonado que me atende, meia de leite e uma merenda mista – o teu pequeno-almoço habitual – e, enquanto aguardo, folheio maquinalmente o periódico, sem atentar nas notícias.
Ainda mal recuperada, penso na visão que tive e que não posso deixar repetir-se. Parece que a dor da tua perda em vez de se atenuar com o tempo, acentua-se e se torna cada vez mais insuportável, a ponto de me enlouquecer.
Passo mais uma página, e chego às centrais.
Frente aos meus olhos, ainda viçoso, surge um pequeno botão de rosa, vermelho-sangue, preso a um cartão branco. “Parabéns. Amo-te muito!”
Fico sem reacção. Não tenho coragem para pegar no cartão, onde a tua letra inconfundível, me fascina, pois estou certa que se tentar, se esfumará, também por entre os meus dedos.      
- A senhora faz anos hoje?
Volto a mundo real e olho para o empregado que espera, de bandeja na mão, que eu desvie o jornal.
Ele apercebe-se do meu espanto e aponta para a rosa.
- Não é hoje o seu aniversário?
Impossível. Isto será mesmo real? Pego no cartão, a medo...
- Anos? Eu?
- Desculpe... não pude deixar de ler... parabéns...
Olho para o alto da página do jornal. Segunda-feira, 20 de Junho ... Não há engano.
É hoje o meu aniversário.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

[0006] "O sobretudo", por Deodato Santos

DEODATO SANTOS, Lagos, Portugal, 1939 
Escultor, radicado no Algarve, Deodato Santos é um “poeta arrependido”. 

Na Amadora, com Joaquim Benite, marcou a sua presença com uma poesia forte e o seu trabalho escultórico admirado por Artur Bual – memórias que deixaram sinais nos Cadernos Andaime. 

A sua vibração poética transparece em Barão de São João onde o artista rumina as suas andanças pela Europa em anos de antes de Abril de 74 (Paris e Genebra).


O SOBRETUDO

                              para Joaquim Benite

É sozinho que se veste?
No Inverno é mais difícil ao dobrar-me para atar os atacadores das botas.
O que eu perguntava era se é você próprio quem compra a roupa que veste?
Não compro roupa. Visto aquela que os outros deixaram de usar ou por ter passado de moda ou por terem morrido.
A roupa reflecte sempre o estado de espírito de quem a usa. Se você não usa roupa própria é porque não ousa assumir uma personalidade própria...se a tiver. 
A roupa como tudo o que se põe em cima do corpo transmite uma marca social e tem uma função de chamariz para acasalamento.
Não só isso. Há pessoas que aguentam a mesma roupa durante um espaço de tempo mais prolongado e outras que precisam de uma mudança constante, mesmo de várias vezes ao dia, conforme as alterações humorais,  conforme a renovação anímica de que estejam necessitadas.
Bem visto.
No seu caso, que anda sempre de sobretudo, o que representa? Se não é um chamariz será um repulsivo? É uma armadura? Para não deixar entrar o exterior e não deixar sair o interior?
É uma questão de eficiência. Já reparou o tempo da sua vida gasto a decidir a roupa que vai vestir? No fundo já não sabe qual é o seu estado de espírito
e é a roupa que o vai definir. Já não veste a roupa em função do seu estado de espírito mas é a roupa que vai determinar esse estado de espírito. Já calculou o tempo que perdeu a procurar a etiqueta da roupa interior? A atenção posta nessa tarefa mesquinha vai condicionar a sua atitude para o resto do dia. Deixou de ser um homem que sai do sono e do sonho para tornar-se um homem utilitário.
Não calculei não. Mas calculo, pelo que acaba de dizer, que não traga nada por debaixo desse sobretudo. E a sua mulher deixa-o sair assim?
O que tem?
O que tem? É ridículo o ar que tem?
Acredito que sim. Como não me posso ver a mim próprio, admito perfeitamente que para si possa ter um ar ridículo.
E não se importa de ter um ar ridículo?
Não, e como não tenho hipótese de formar opinião própria aceito sem contestar nem tomar partido, todas as outras. Repare que todos nós somos ridículos aos olhos de outros, à luz das estéticas, das racionalidades e das nacionalidades que cada um tenha.
Não se olha ao espelho?
Só quando faço a barba.
Na sua casa de banho não tem um espelho de corpo inteiro?
Só um espelho para ver a barba quando me barbeio.
Qual é a sua nacionalidade?
A minha nacionalidade? A minha nacionalidade é o meu quarto. A que propósito vem essa pergunta sobre a minha nacionalidade?
Porque me está a parecer um homem estranho.
E quando é estranho não é da nossa nacionalidade.
Pois.
E, está-se mesmo a ver, é-se de nacionalidade inferior.
Pois claro.
Pois claro.
E a sua mulher não lhe diz para se vestir de um modo mais estético?
Se calhar diz, diz, mas esqueço-me… e os olhos também.
Os olhos também, o quê?
No meu espelho só vejo barba quando me barbeio e os olhos. Os olhos para ver se me reconheço. Se não me reconhecer saio, se me reconhecer não saio.
Faz bem. Reconhece, ao reconhecer-se, que não tem ar digno para sair.
Nem mais.
Admiro-me muito que haja alguém que o convide?
Ainda bem. Convidar para quê?
Para tanta coisa, para conviver socialmente.
Entre pessoas da mesma nacionalidade.
Claro. E não sofre por ninguém o convidar?... terei percebido um instantâneo pestanejar irónico nos seus lábios impassíveis? 
Pestanejar é com as pestanas.
Eu sei. Mas como nomear a principal característica do pestanejar, o instantâneo, quando tal acontece na zona labial?
Não sei. Aí está um campo em que devia aplicar a mesma atitude estética que usa para o vestir.
Que está a dizer com isso?
Além da sua formação estética para com a maneira como se escolhe e combina a roupa com que se encobre e esconde o corpo, podia dedicar-se à estética literária e encontrar a palavra que defina o mexer dos lábios, correspondente ao pestanejar das pestanas.
E que ganhava com isso?
Ganhava o acesso a uma outra área social.
Quem lhe diz que não convivo já, de maneira até muito chegada, com artistas da palavra escrita e de outras expressões, daqueles ao mais alto nível do reconhecimento público? E que não opino com saber e elegância sobre obras e estilos?
Claro. Que ingenuidade a minha. Como poderia um homem como você, não andar nas vernissages, nos autógrafos, nos beijinhos.
Entre pessoas da nossa nacionalidade não se anda de sobretudo dessa maneira. 
Olhe que este sobretudo pertenceu a uma pessoa muito considerada que foi aceite, melhor dizendo tolerada, pela vossa nacionalidade.
Não me escapou a qualidade do tecido e o corte desse sobretudo. É sobretudo por isso que lhe fica mal, pelo contraste que faz consigo. As mangas tapam-lhe as mãos e a bainha pouco lhe falta para ficar debaixo dos tacões dessas botas rústicas. Para além do mais não é uma peça de roupa que se use agora em pleno verão.
Tenho frio. O frio interior não se explica.
Sou capaz de até aceitar isso. Sim concordo, plenamente. Imagino a existência de uma espécie de frio inextinguível, pronto a tolher-nos em qualquer altura menos esperada. 
Pessoas há que o sentem a cada momento.
No seu quarto? Pessoas daqui? Da sua nação?
Pessoas de todas as nações destes quartos.