terça-feira, 29 de outubro de 2019

[0084] É hoje!

IM estará presente e dará notícia do lançamento, como seria de esperar. Quanto ao caderninho, é delicioso e já lido e relido há semanas por nós. Tem o esquisito preço de 4,10€ mas isso só lhe dá mais sabor. Um grande pequeno livro, na verdade.

terça-feira, 16 de julho de 2019

[0079] Mário Pereira, em conto angolano

Do escritor angolano Mário Pereira, já reportado em Contos da Tinta Permanente, referimos mais um conto


MAN JACK DA COBARDIA

Corria o ano de 1963 em Luanda.

E, num dos subúrbios da capital, num dia em que o sol insistia em aquecer o ambiente como raras vezes o fazia, os putos corriam atrás de uma bola de borracha: uns à procura do golo do empate, enquanto outros defendiam, de qualquer maneira, a sua baliza, lançando a bola para longe: para queimar tempo; simulando lesões que não existiam e agarrando o avançado fora da grande área afastando-o da boca do golo,…

E, num certo momento, o jogo parou!

A bola, que fora chutada para a baliza defendida por Santito Matias, entrara no quintal de Man Zeca, o tal que vezes sem conta rasgara o esférico a punhal perante a mol de gente embevecida que assistia o jogo do princípio ao fim! Pela frustração causada, muitos auguravam, num dia destes, a oportunidade para indagarem Man Zeca, no beco da rua de trás, quando o sol se fosse embora! 

O presságio, para alguns, era funesto; enquanto, para outros, não passava de mais um episódio que teria um final semelhante: o da bola rasgada pela fúria de quem, sempre, pelos mesmos motivos, exibia um punhal na mão; ao da tristeza estampada no rosto, não só de quem fora impedido de correr atrás da pelota, mas também dos que se aglomeravam nos quatro limites do campo.

E enquanto se pressagiava sobre o que viria a seguir, - a desforra que fariam a Man Zeka botando no chão do beco escuro onde namorava com a Zinha as cascas de 100 bananas no momento em que ele se dirigisse para lá ao anoitecer - vinha do fundo da rua uma débil figura que parecia incapaz de se contrapor à ira dos ventos de Abril, estes que se habituaram a levantar para os ares as ninhadas de aves assentes no meio das moitas; as chapas esburacadas do casario em desalinho, deixando a céu aberto a desgraça do povo clamando por liberdade. 

Fingindo conhecer o que à sua volta se passava, a débil figura - que trazia no canto direito da boca uma beata apagada de cigarro Juca e um gorro negro na cabeça -, evitou indagar a causa por que ali se achava a mole de gente e, acenando aos conhecidos que o saudavam com deferência, levantou a mão com o dedo indicador em riste, chamando, para o beco mais próximo, um dos que implorava a resolução daquele caso que parecia insolúvel. – O que é que se passa aqui? – Indagou Man Jack. 

É o puto Zito que jogou a bola para o quintal do Man Zeka. Então, o Man Zeka, furioso, prendeu não só a bola, mas também o miúdo que chutou a redonda para lá. 

– Mas a bola estragou alguma coisa? Aleijou alguém? Partiu algum vidro? – indagou Man Jack, enquanto ajeitava o cigarro, já aceso, inspirando e expelindo, pela boca e pelo nariz a fumaça quente que se alojara no peito. 

– Não se sabe, Man Jack. Só sabemos que o dono do quintal disse que já tinha avisado que da próxima vez que a pelota entrasse no seu quintal, não só ela seria retida, mas também o autor do chuto, e quem viesse em seu socorro, fosse quem fosse! E a clausura seria por tempo indeterminado, a não ser que houvesse, por parte dos familiares, a intenção de pagar o estrago… e exigiria um pedido de desculpas por parte dos pais, avós, tios e amigos do prevaricador, pelos abusos que vêm sendo cometidos até à presente data…

Dirigindo-se à porta da casa do ofendido, lá onde a bola e o puto estavam retidos, Man Jack falou assim: - Dá-me licença, Man Zeca. Sou eu, o Jack. – Quem? – O Jack, Man Zeka. – Oh! Man Jack? Entra, se faz favor. Pode entrar, Man Jack. O prazer é todo meu, caramba…. Ó, Man Jack? Como é, meu? Há tanto tempo que a gente não se via, pá!

Gerou-se um silêncio sepulcral quando Man Jack e Man Zeca se abraçaram perante o olhar atónito de quem espreitava a cena pelos intervalos das aduelas do quintal; gente que ansiava a solução do caso que juntara a vizinhança contra o detentor da bola e do puto Zito, o melhor goleador do musseque Rangel. 

– Então, Man Jack? Como é que vão as coisas por aí? Lá em casa tá tudo bem? - Graças a Deus, man Zeca! Tirando as perseguições dos Arara kwara, o resto vai caminhando, mas com a maior das atenções, porque o Arara Kwara não estão para brincadeira, não. Ainda ontem, não sei se já sabes, cangaram o Jingongo, o filho da Donana, o mais velho. 

– Mas estas questões vão ser tratadas noutro dia. E, então, como é que vão os mambos por aqui? Os miúdos; a mana Dominguinha? E a Donana, a tua irmã mais nova? Nunca mais a vi, Man Zeca. Anda mesmo cá ou viajou? Desde o ano passado no funeral da Ximinha que nunca mais lhe pus o olho em cima! 

– Está tudo sob controlo, Man Jack; vamos indo, como dizem os mais velhos cá da banda, mano. 

– Bom, mas o que eu queria mesmo dizer, Man Zeka, é o seguinte: é esse aglomerado aí fora que me está a preocupar; temos de evitar esses ajuntamentos tumultuosos à nossa volta, seja por que motivo for. Os Jipela Njipe e os Araras volta e meia estão aí a passar e sempre com o olho em cima da gente e qualquer cheiro a geringonça é suficiente para os tipos actuarem! E já sabes como é que isso é, pá! 

– Ok, Man Jack, percebi tudo. Mas esses putos dão trabalho sério! Por mais que a gente fala, os gajos não querem saber e então, pela falta de respeito permanente, canguei-lhes a bola que caiu aqui mesmo no quintal, na hora em que eu ia a sair do cubico para ir fazer um biscate. 

– E, como se não bastasse, ó mano, o tipo que chutou a bola ainda saltou para dentro do quintal sem pedir autorização e, por isso, como qualquer um de nós faria, também lhe canguei. É esse indivíduo que está aí sentado no fundo quintal, mano. 

– Tá bem, pá. Não deixas de ter as tuas razões! 

– Porém, como as coisas estão por aqui, não devemos criar inimizade com esses putos, ó mano! 

– Devemos tê-los connosco, tás a entender? Se não fossem eles, ontem mesmo já me teriam cangado pois, foram vistos três indivíduos, dos tais, de calça preta e camisa branca, a circularem pela rua em sentido oposto! 

– E foi um grupo de putos que nos alertou do perigo, mano, a mim, ao Mangololo e ao Jinguma. E foi assim que nos escapamos e não conseguiram encontrar-nos. Man Zeca! – Diga, Man Jack. 

– É assim, mano: temos de estar em sintonia com esses miúdos pois, são eles que nos dão guarida, quando nos vêm avisar, na calada da noite, que está gente estranha a rondar o Bairro, tás a ver? 

– Para além disso, ó mano Zeca, essa é a única diversão que eles têm antes de as chuvas chegarem. 

– Quando há chuva, a diversão deles muda logo, porque essa água assentada transforma os campos da bola em grandes lagoas. 

– Aí, a brincadeira é mergulharem nessa imundície até se cansarem. Temos que ter mais calma! Somos mais velhos e devemos orientar essa malta miúda a estar dentro da normalidade, apesar das adversidades. 

– Para além disso, ó Man Zeca, que eu saiba a tua casa só tem uma janela que dá para a rua e ela, a casa, nem é de madeira, ó pá. É de barro. 

– E mesmo que a bola bata na parede, mano, o barulho que faz é nulo, não te incomoda. 

– Por outro lado, o teu quintal não é feito de vidro, é de aduelas esburacadas pelo salalé. 

– E se a bola bater nele quem sofre são esses mesmos bichitos que são atirados para o chão a cada remate que os miúdos fazem. 

– Até aqui só há benefícios para ti, mano. 

– Até me apetece dar uma gargalhada por te dizer isso, mano. 

– O barulho que eles fazem, meu mano, é do despique pela bola e, quando há golo, há aquela algazarra normal de quem já está a ganhar, em que os jogadores e adeptos correm, abraçam-se, atiram-se para o chão, assobiam, jogam areia para o ar e xingam quem não é do seu time. 

– É só isso mano! 

– Para ti e para muitos que aqui vivem, ó Man Zeka, estou-te eu a dizer, isto é um autêntico filme ao vivo, um benefício que traz alegria a quem, como tu, aqui no Rangel, não tem luz eléctrica, nem em casa nem na rua; não tem água canalizada e o chafariz fica longe; a casa não areja por só ter uma porta e uma janela em miniatura… 

– Esses jogos na rua, mano, são uma autêntica sala de estar onde as pessoas podem conviver vendo os putos a correr descalços à procura de enfiar a bola na baliza! Tás a ouvir o que te estou a dizer, ó mano! 

– Por isso, Man Zeca, o que tens de fazer é libertar a bola e o miúdo, mas, atenção, Man Zeca: tens de chamar alguns deles para presenciarem a entrega; testemunharem a tua amizade para com eles e para que estejam permanentemente a teu lado; para receberem de ti a proposta de que podem jogar sempre sem restrições, mas com árbitro presente para não haver batota que traz confusão no meio e fora do campo. 

– Atenção, muita atenção: não te esqueças de prometer aos miúdos que no final dos jogos haverá sempre um bombózito assado, uma gingubita e aquela quitaba da boa, daquela que já tem gindungo; uma tijela grande com farinha musseque, água e açúcar e com isso ofereces uma rodada de ngongwenha para essa malta. Para se refrescarem, dá a cada um uma caneca do bom kitoto. 

– Para os kotas, já sabes: preparas uns bons nacos de gengibre e uma boa caneca de kimbombo e pronto, já está…-

– Man Zeca! – Diz, Man Jack. 

– Estou a ver ali no fundo do quintal uma lata com cal já usada e que parece que já não tem mais serventia para a tua casa!

– Entrega isso aos putos para alinharem o rectângulo de jogo pois, nunca se viu que as linhas laterais de um campo de futebol sejam os limites das casas que o ladeiam! 

– Sinceramente, mano! 

– Vamos botar ordem nisso, o mais rápido possível e evita cangar os putos por causa da bola! 

terça-feira, 9 de julho de 2019

[0078] Estreante nos CTP, E. S. Tagino oferece-nos um conto inédito

E. S. Tagino, 1945, Grândola, Portugal
E. S. Tagino é pseudónimo de António José da Costa Neves, residente em Almada há mais de 40 anos. Licenciado em História pela FLL, durante anos publicou regularmente poesia em diversos jornais e revistas nacionais. Tem vasta bibliografia de romances (alguns de âmbito histórico, como "Sangue de Portugal", 2019) e foi galardoado com o Prémio Literário Cidade de Almada 2006 ("Mataram o Chefe de Posto"), Prémio Revelação Manuel Teixeira Gomes 2006/2007 ("Nem por Sonhos"), Prémio Literário Paul Harris 2007 ("Mea Culpa!"), Prémio Literário Poesia e Ficção de Almada - Prosa de Ficção 2008 ("O Amor nos Anos de Chumbo"), Prémio Literário Joaquim Mestre 2017 ("Um Certo Incerto Alentejo")...

JOÃO VIRADO

João Virado saiu de casa, como todos os dias. João Virado estava sempre pronto para sair. A maior parte das vezes não sabia para onde. Quase sempre dava uma volta e voltava ao ponto de partida, que é a remate natural de qualquer volta, seja grande ou pequena. Naquele dia, porém, tinha visto um anúncio na televisão em que ofereciam qualquer coisa para quem fosse capaz de fazer não se lembrava o quê. Aquele anúncio interessou-lhe. Então recordou-se de que tinha saído para perguntar no café se alguém o tinha visto. João Virado era um pouco virado da cabeça, daí a alcunha, que Virado não era nome de família. Nome de família era Corneta, por causa de um avô que tinha sido corneteiro em Infantaria 3. No caso do João, porém, apelido muito apropriado pelo que João Corneta era também chamado, muitas vezes, por João Virado da Corneta. 

João Virado não sabia fazer nada e, só por essa razão, não fazia nada. Às vezes apetecia-lhe fazer qualquer coisa, mas como não sabia o que fazer, rapidamente se esquecia desse anelo indefinido, felizmente apenas episodicamente aflorado. Naquele dia, porém, demorou um pouco mais a esquecer-se do anúncio. Quando entrou no Café, não estava ninguém. “Querem ver que a malta toda resolveu responder ao anúncio!?”, pensou João Virado, ligeiramente azoado. “Já me lixaram o emprego!”, concluiu. Chamou para dentro, apareceu-lhe a Ernestina. Vinha de olhos revirados, a palitar os dentes. “Qué da malta?”, perguntou. “Nã sei, nã tava aqui”. Ernestina era empregada do Café, mas era um pouco mais lerda do que o João Virado. “Vou dar uma volta”, disse e saiu. Ainda não tinha dado dois passos, lembrou-se do anúncio e voltou atrás.

A Ernestina, que ainda estava encostada ao balcão, a palitar os dentes, admirou-se. “Tã depressa!”, disse, sem tirar o palito da boca. A televisão estava acesa. Na pantalha, dois tipos de casaco e sapatilhas nos pés, virados um para o outro, discutiam futebol. “Agora também discutem bola de manhã!?” perguntou-se o João Virado, que não era muito virado para os desportos coletivos, em especial do futebol. Gostava mais dos desportos individuais, como a pesca, que eram muito menos cansativos. Foi nesse instante que se lembrou de qualquer coisa do conteúdo do anúncio: “…nã faça nada….”, sim, “…nã faça nada…”. Tinha sido esta fração do slogan que lhe tinha despertado a atenção. Não fazer nada era com ele, para não fazer nada estava sempre pronto. Podia estar ali um bom emprego, pensou. “Vistes o anúncio de nã fazer nada?”, perguntou, apontando a televisão. “Nã fazer nada!?, espantou-se a Ernestina, que entrava às seis e saía às vinte e duas e nunca tinha tempo para nada. “Nã fazer nada, nã sei o que é.”

“Esta gaja é parva”, pensou João Virado, voltando-se e saindo. O sol da manhã estava apetitoso e a esplanada convidativa. Ajeitou o toldo e sentou-se com as pernas esticadas. Com a pressa, por causa do anúncio, não se tinha calçado. Olhou os pés por breves instantes. Encolheu os ombros e gritou para dentro: “Tina, traz-me uma cerveja sem copo”, e continuou a olhar os pés. “Com esta já são cinco que estás a dever”, disse-lhe Ernestina, antes de pousar a garrafa. “Descansa, que no sábado, o mê pai paga-te”.

Bebericou a cerveja, a pequenos golos. “Que paz, que descanso…”, pensou enquanto descansava o olhar na colina distante pintalgada de papoilas. “Nã há como o Alentejo para um homem viver descansado”, e os olhos relancearam, agora mais perto, abarcando o coreto, onde há anos ninguém tocava, a porta dos Correios, inativados, e a farmácia, encerrada desde a morte do Dr. Valdemar.

“E a volta, nã vais dar a volta?”, interrompeu Ernestina, que tinha vindo ajeitar as mesas. “Que volta, criatura!?”, perguntou, genuinamente admirado. “Tu é que dissestes quias dar uma volta”. “Pois se disse, ainda bem que já me esqueci”.

A meio da manhã começaram a aparecer os tipos do Leste, os ucranianos e os moldavos e, ainda mais tarde, os bangladeches e os filipinos. Só depois apareceu o Xico Moleiro, que estava desempregado para aí há vinte anos. “A apanhar sol!?”, perguntou, enquanto puxava uma cadeira. “Estou a descansar”, disse Virado, estendendo a punho que o Xico socou com um pequeno toque. “Com este calor, é o melhor que um homem pode fazer”, disse e sentou-se. “Também vou descalçar as botas”, acrescentou depois de olhar para os pés do João Virado.

“Essa malta nã faz nada?”, perguntou o Xico Moleiro, passados dez minutos, apontado os tipos do Leste. “Vivem do subsídio”, respondeu o João Virado, encolhendo os ombros. “Por isso é que há cinco anos não sou aumentado”, rosnou o Xico, raivo da concorrência. “Também o mê pai. E só a trabalhêra que dá arranjar os carimbos…”. “Nem me fales disso, João, que já tou a ficar cansado!”.

Quando na igreja badalou o meio-dia, João Virado deu por concluído o descanso. Estava na hora do almoço. Quando entrou em casa a mãe perguntou-lhe. “Foste dar uma volta, João?”. “Nã senhora, fui procurar emprego”, disse, lembrando-se vagamente do anúncio. “E encontrastes?”. “Nã senhora. Nã tive tempo. O Xico Molêro apareceu e ficámos na conversa. E o pai?”, perguntou, olhando em volta. “Está ainda a dormir”, respondeu a mãe. “Mas esse calacêro dum cabrão nã faz nada!?”, exaltou-se, pela primeira vez, João Virado, que nessa manhã já tinha ido ao Café e voltado. “E o Vinagre tava lá? O teu pai este mês ainda precisa dum carimbo.” Nã senhora, só estava a Ernestina”. “Bela rapariga, sim senhor, trabalhadêra e jêtosa, bem que podias arrimar-te a ela”, incitou a mãe, pensando no subsídio que mal dava para dois e tinha de chegar para três. “É jêtosa, mas nã é do mê jêto. Palita muito os dentes”. “Mas tu precisas duma rapariga. Olha que na tua idade o tê pai já era casado”. “Ó mãe, nã teme, que ê nã tou praí virado. Ainda pra mais, logo agora que tenho em vista um emprego”. “E tem futuro esse emprego?”, perguntou a mãe, enquanto deitava a comida da panela diretamente para a malga. Não respondeu, a mãe não ia compreender. Se tinha futuro!? Ali no Alentejo, tinha futuro e tinha presente. Além disso, ele queria lá saber do futuro. No futuro haveria de ter o subsídio.
Sentou-se à mesa e comeu o caldo de couves com toucinho. A rodela de chouriço comeu-a no pão e, antes de ir dormir a sesta, ainda murmurou entredentes: “Nã fazer nada, belo emprego. Amanhã, se nã tiver tanto calor, vou continuar a procurá-lo”. 

sexta-feira, 5 de julho de 2019

[0077] Um conto de Tazuari Nkeit

TAZUARI  NKEIT
Mais um texto angolano chega a Contos da Tinta Permanente. De seu nome próprio José Caetano, é escritor e jornalista.


TAMBÉM QUERIA ESCREVER “CHORA, TERRA BEM AMADA”

Coulayá é o nome imaginário de uma das mais belas cidades do continente africano. Virada para o Oceano, tem na pesca, a extracção do sal, madeira, bauxite e a cultura do ananás umadas principais riquezas, nas mãos de uns. A maioria da população é pobre e vive resignada à condição de continuar a sê-lo, até matar o coração. 

Como na maioria das cidades africanas, os habitantes de Coulayá vivem do pequeno comércio. E espalham mercados de assados, fritos e descongelados por tudo quanto é canto. Onde houver um aglomerado de pessoas, lá estará um mercado. Os habitantes de Coulayá compram e vendem pelas ruas, ruelas e becos tudo o que lhes permita a mínima receita para comer hoje, porque, segundo a crença, o amanhã a Deus pertence. 

Também é assim, regra geral, a vida de um africano: «vida negra», para aqueles que melhor caracterizam estes povos condenados à condição de miseráveis: acordam sem saber o que comer; trabalham sem a certeza do salário; e, adormecem desconhecendo que nessa noite poderão ser vítimas de um enfarte... 

Em Coulayá os mais poderosos esforçam-se para serem vistos a rezar em templos sagrados e a oferendar esmolas como obra de caridade. É uma farsa que lhes permite o título de «Homens mais capazes da Cidade!»; ou, então, se preferirmos, um gesto de cidadania comparável ao turista americano que, de óculos escuros e calções de caqui, passeia descontraidamente pelas calçadas europeias, atirando migalhas de milho aos pombos e andorinhas que,sem tecto, esvoaçam pelo céu... 
Em cidades reais, dezenas de intocáveis querem ser vistos como heróis e homens de boa vontade. Entregam à caridade a parte do dinheiro que pouca diferença lhes faz; dinheiro roubado; migalhas dos milhões e milhões não investidos em infra-estruturas básicas; dinheiro desertor e foragido da melhor remuneração dos seus empregados; os mesmos milhões que obrigam meio mundo a correr, mentir, enganar e lutar para comer e enganar o estômago... porque, infelizmente, nesta vida semi-selvagem, a tal vida negra, mentir, enganar e lutar para comer é a regra do dia a dia: cada um por si, Deus por todos, salve-se quem puder! 

- Porque é que todas as cidades africanas vivem o mesmo dilema?- pergunto ao anfitrião, meu amigo, em Coulayá. 

- Não te rales. Não vais mudar nada! A África não tem solução.

- Como assim…?!

- Põe isto na cabeça – diz-me ele - Nós, os africanos, estamos condenados ao fracasso. Nenhum país governado por pretos se vai endireitar. Nenhum! Deus fez o homem com cinco dedos diferentes nas mãos, para representar o diferente destino dos cinco Continentes. Nós somos o dedo mindinho. Estamos condenados a pensar pequeno e a sermos os inferiores. O dedo maior, representa os brancos, mais poderosos, e os seus descendentes como o Jerry Rawlings ou o Obama. Eles são mais capazes do que nós! 

- Não acredito! Faço tudo para contrariar esta tese. Digo-te: se um dia eu concorresse a Presidente escolheria como slogan «Dez anos para Mudar África – Um Compromisso Internacional!» E, faria tudo para desmentir isso! 

O meu anfitrião respondeu-me com uma das gargalhadas mais bonitas e sonoras que já ouvi dele:

- Eh, eh, eh..., todos dizem o mesmo!!! É para enganar, meu amigo. Olha o outro, jurou a mesma coisa: «Vou mudar...! Vou mudar...! Vou mudar!». Foi tudo para ludibriar, roubar e enriquecer. Nada mudou... 

Inconformado, volto a atacar:

- Roubar?! Comigo, não! Podes ter a certeza que nunca. E quem roubar no meu Governo, ainda que sejas tu, vai para a cadeia. Serás o primeiro a ser preso e julgado... 

O anfitrião não se deixa intimidar. Volta a zombar de mim, às gargalhadas. Explica-me que perdeu toda e qualquer esperança na seriedade dos líderes políticos africanos deste tempo. E, num tom provocante, pressionou o botão do suicídio da Esperança Africana – o gatilho da derrota e da resignação! 

- Vais prender todos, então! O africano foi criado por Deus para ser assim. Ele quer comer hoje, e deixar tudo para depois. Quer o imediato, gosta do excêntrico e é extravagante. Não te rales, meu amigo. Cuida de ti e deixa o mundo andar...! 

Involuntariamente, estávamos a debater duas teses sobre a Esperança Africana: Para o meu anfitrião, a África não tem futuro; Eu e outros, dizíamos que dez anos de boa governação poderiam ser suficientes para alterar o rumo do Continente. Dez anos irreversíveis! Também tínhamos um sonho, a exemplo de Martin Luther King que nos anos 60 acreditou ser possível terminar com os preconceitos raciais, a favor da liberdade e da dignidade para todos. Porque não acreditar que a melhor governação é a solução para África? 

- Porque não segues a mesma crença e determinação de Nelson Mandela, que fez cair o apartheid sem vinganças? - faço o último esforço para convencer o meu amigo, como se fosse um caçador cansado e faminto rogando a Deus para não morrer de fome. Mas, ele é peremptório. Surdo e implacável, diz-me para ter cautelas e ser realista: 

- Olha que o tempo de Mandela, SekouTouré, Nyerere, Agostinho Neto ou Sankarajá passou. Foram-se todos como a moda d’Os Beatles! A África de hoje perdeu os seus revolucionários, e perdeu-se! Os políticos já não querem fazer revolução nenhuma, como outrora. Querem dinheiro. Querem fazer negócios e ser milionários! Cuidado, meu amigo. 

Senti um estranho calor na espinha...O meu anfitrião não era um homem qualquer: é perito e PCA de uma empresa bem-sucedida.Com mais de 40 anos de experiência profissional, é o tipo de peixe na água, homem sábio e senhor de muitas barbatanas. Sabe falar e sabe estar calado. Se é um ladrão, ou se faz tráfico de influências, não sei. Em casa, e na minha presença, vi-o receber gente graúda, a quem deu conselhos e pareceres. Pontual como a Lua e o Sol, diz que vem à minha busca 18:00 e as 17:55 bate-me à porta:

 «Conconcon...!». Diz-me ainda: - É impossível mudares a África com discursos! E nem precisas ser político para começares com mudanças. Falta nos uma grande burguesia para criar bons empregos, assim como uma classe média que lhe sirva de suporte, e, uma massa crescente, exponencial, de tecnocratas capazes de funcionar com autonomia – e um código de conduta obrigatória para todos. Sem isso, meu rapaz, vais dar o teu show, vais ser aplaudido várias vezes, mas, depois, arruma as botas e vai-te embora, como nos actuais jogos de videogame. E, faz o «logout», antes que cometas as mesmas asneiras que os outros ladrões e parasitas do videogame...! 

Mesmo assim, apesar da sua retórica e ironia, o meu bom amigo não me convenceu. O mal dele é pensar que viver e crescer mal e sem berço é sinónimo e é destino do verdadeiro africano. Em dez anos, tudo isso pode começar a mudar sem retrocessos. Eu acredito. 

terça-feira, 2 de julho de 2019

[0076] Lançamento de “O Pequeno Livro dos Grandes Heróis”

“O Pequeno Livro dos Grandes Heróis”, de Sofia Cochat-Osório, será lançado a 4 de Julho, às 18h00, na UCCLA. Com a chancela da Editora Guerra e Paz, a obra será apresentada por Maria do Céu Roldão. Com 208 páginas, reúne as histórias épicas de vinte e cinco personalidades que ajudaram a mudar o nosso mundo.

domingo, 30 de junho de 2019

[0075] Novo conto de Pepita Tristão

NOITE


Sonolentamente virei-me na cama de espinhos de roseira que na Primavera protegeram as rosas vermelhas contra a avidez das crianças, que diariamente  queimam no jardim público o desejo de sonharem com castelos de chocolate e espadas de “chantilly”.

Toquei em tua cabeça e enrolei um dos teus caracóis negros em meus dedos pavorosamente alvos.

Um arrepio percorreu-me o corpo como se o teu cabelo fosse serpente gélida que me deslizasse pelos dedos, braços, seios, envolvesse meu ventre, violando a placidez de meu sono.

Soergo-me sobre o teu acordar espantado e bebo o brilho de teus olhos com o fel de meu desejo, respondo à pergunta que não formulaste com o sarcasmo de minha amargura, recebo o ar que respiras como pontas de estilete, que se alojam em meus pulmões, fazendo o sangue golfar em loucas cavalgadas que me electrizam o corpo.

Tombo sobre os espinhos, ferindo-me, enojada de mim e lamentando-te.

Abro as pernas à dor de te ter sem o prazer de me dar. Sinto a carne rasgada, a pele ensanguentada, e rio da porca da vida que não sonhei.

Semicerro os olhos. Arquejante, acaricio-te a pele sedosa com toda a ternura que a raiva de mim obriga a dedicar-te. Praguejo, em silêncio, contra o mundo, contra a existência, contra a crueldade e contra a minha baixa estima.

Sem amor à vida nem ao universo, sem força para lutar nem vontade de vencer, odeio ser obrigada a estar presente, como os demais, representando quotidianamente a peça da existência na sua amargura, no seu prazer, na intensidade de vivências que nunca mais sentirei.
De novo eu, agora eu mesma, na morte do sono que tudo faz esquecer, sou o fantasma de um ser a que o sofrimento roubou a vida, obrigando-o, por puro sadismo, a continuar fisicamente vivo.

Arrancas uma rosa vermelha da jarra que orna o quarto e entregas-ma, com amor. Beijas-me, com paixão. Correspondo...

Desesperada, olho em volta. Vejo uma pequena adaga dourada, sobre a mesa de cabeceira... uma adaga cravejada de diamantes, que me poderá devolver a vida.

Liberta do amplexo, compreendo que, mais uma vez, a imaginação me levou longe demais... é apenas a aliança que ontem à noite colocaste no meu anelar...

sexta-feira, 17 de maio de 2019

[0073] Mais um belo conto de J. M. Carvalho-Oliveira

J. M. CARVALHO-OLIVEIRA
Deste nosso recorrente colaborador, mais um conto em que a morte é encarada de modo natural, pois também faz parte da vida.

ESCRITO COM PENA DE GAIVOTA


Passear ao longo de praias quase desertas é um verdadeiro prazer. Passeia-se higienicamente, em tronco nu ou coberto, para contrabalançar os dias de trabalho seguidos e as multidões que nos acompanham nas ruas, nos transportes públicos, nas lojas. Espraia-se o ego, renatura-se o ser, reflecte-se a vida.

Um passeio em Maio, pode ser imensamente belo. Já há temperatura convidativa, os areais continuam praticamente desertos - embora se anotem alguns surfistas, casais jovens que se adunam, tisnando o corpo e gozando a dois o prazer da natureza.

Quando passeio, vou por vezes acompanhado. Hoje, fui sozinho. A manhã amena, com um sol algo tímido mas agradável e com ausência de vento, convidava a um esticar de pernas no longo areal com cerca de três quilómetros de extensão. O abrir e fechar de braços, em estilo de ginástica convencional, faz estalar uns ossitos, ao mesmo tempo que, com a sequência, causa umas primeiras gotas de suor no rosto; produz a saudável sensação de que nos estamos a desintoxicar e a voltar à forma.

Os pensamentos, se é que os há, são sobre a vida. São generalidade e não especialidade. À minha frente, um bando de duas dúzias de gaivotas, que usufruíam na areia algo do meu prazer, levantam voo quando me aproximo. Sinto-me desconfortado: por nada queria incomodar as aves. Olhei para as belas gaivotas, levantando voo sem precipitações, voltejando no ar mas afastando-se sempre. Algumas voltariam para local próximo do que tinham abandonado, já eu estava longe.

Observar gaivotas no ar é testemunhar a graça do voo e a habilidade de pairar; é também ver o companheirismo dos grupos, unidos no voo e no lugar onde pousam.

Vai um homem a pensar nestas coisas bonitas quando nota, à sua direita, que as ondas que se desfazem na praia enrolam um volume. Era uma gaivota morta. Trazida para terra e depositada na areia por uma pequena onda, foi re-levada para o mar por uma segunda. O mar surgiu-me como a sepultura natural das gaivotas.

Seixal - Foto Joaquim Saial
Trezentos metros à frente, esperavam-me no areal duas asas bem abertas ladeando o corpo de outra gaivota inerte. Jazia ao sol. Um cão branco que me viu e veio na minha direcção acompanhando-me alguns metros, farejou o corpo e desinteressou-se ao fim de dois segundos.

Dei uma pequena corrida, fiz mais uns exercícios físicos. Passei por uma rochas que quebram o areal e nas quais em tempos inscrevi três Xs, com uma pedra rija que na sua forma lembrava um coup de poing.

Do lado de lá dos rochedos, dando início a uma pEquena extensão de areal, uma nova gaivota surgiu-me na praia. A morrer. Junto ao mar, mas sem que este lhe tocasse; acocorada na areia húmida, já não conseguia mexer-se. Os olhos prescrutavam o ar desesperadamente, o bico abria e fechava lentamente. Ia morrer, percebia-se. Parei, continuei, voltei atrás. Senti que nada podia fazer naquela altura. O bico da ave abria-se e fechava-se quase sem força. Passou por mim um casal, precedido por um belo setter. Mal olharam. Passou também um homem correndo. De cabelos grisalhos, consultava o relógio que trazia no pulso: iria um segundo atrasado, ou já teria ganho um minuto ao seu tempo anterior? A tanga azul puxava por um corpo que se queria manter em forma, que não consentia que os anos lhe roubassem qualidades.

Prossegui, o meu pensamento ora na gaivota aflita, ora no mundo de interesses diversos em que nos movimentamos. Mais uns exercícios, mais transpiração, o sol a brilhar agora mais forte. Iniciei o regresso. Ao reaproximar-me das rochas, procurei descortinar a gaivota moribunda. O mar tinha-se afastado um pouco, a maré vazava. A gaivota jazia na areia branca da praia, as asas junto ao corpo, peito para cima, a cabeça de lado, os olhos abertos. Corri a trazer na concha das mãos um pouco de água que a pudesse refrescar. Já não a sentiu. Os olhos estavam abertos porque a morte não os deixara fechar.

Morrer em Maio. Assim, naquela beleza toda. Passaram-me depois pela mente todos os nossos maios; à minha frente continuava a vastidão imensa do oceano, à direita a arriba milenária. Entendi que não era para ficar triste. Afinal, estava ali dando um passeio da vida, no meio de uma natureza que um dia, mais tarde ou mais cedo, nos proporcionará o seu encontro com Maio, num desMaio derradeiro. 

quarta-feira, 8 de maio de 2019

[0071] "Praças", de António Pedro Correia, venceu Pémio Literário UCCLA

O vencedor da 4.ª edição do Prémio Literário UCCLA - Novos Talentos, Novas Obras em Língua Portuguesa foi atribuído ao livro “Praças” da autoria de António Pedro Serrano de Sousa Correia, português natural de Angola. A obra vencedora foi anunciada no dia 5 de Maio - Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP - no Mercado da Língua Portuguesa, no Mercado da Vila em Cascais.
António Pedro Serrano de Sousa Correia nasceu em Angola em 1961. É artista plástico, dedicando-se especialmente à escultura, à criação de objectos tridimensionais e à área de instalação multidisciplinar. 
O Prémio Literário é uma iniciativa conjunta da UCCLA, Editora A Bela e o Monstro e Movimento 2014, que conta com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e da Comissão Temática para a Promoção da Língua Portuguesa dos Observadores Consultivos da CPLP.


sábado, 4 de maio de 2019

[0069] Novo livro de Nuno Rebocho, prestes a sair na ilha de Santiago e, para breve, também em Lisboa

É apresentado pelo poeta Filinto Elísio e pelo também poeta e pintor Tchalé Figueira no Instituto de Língua Portuguesa (Casa Cor de Rosa), às 18h00, a 9 de Maio, quinta-feira, na cidade da Praia (ilha de Santiago, Cabo Verde), o mais recente livro de poesia de Nuno Rebocho, “Rotxa Scribida” (edição Rosa de Porcelana). O mais recente livro de Nuno Rebocho será depois apresentado na Assomada (a 22 de Maio) e em Lisboa (a 29 de Maio), por altura da Feira do Livro.

terça-feira, 30 de abril de 2019

[0068] Manuel de Sousa, com mais um conto angolano

O prometido é devido. “Contos da Tinta Permanente” alertou que divulgaria novo conto angolano e ele aqui está. Muito provavelmente, não será o último, como s seu tempo se verá.


LUÍS ITIEL, O PAI NATAL AFRICANO
Por Manuel de Sousa

O Pai Natal, em alguns países conhecido como Santa Claus ou Papai Noel (ou Papá Noel), em virtude do crescendo de pedidos, decidiu alargar a sua zona de acção e de entrega de prendas para crianças um pouco mais para a zona Sul do Globo Terrestre, nomeadamente, em África. 

Na ocasião, estendeu os seus serviços de entrega até países como África do Sul e países limítrofes, os quais incluíam Angola, também e onde a tradição natalina continua sendo forte e em crescendo. Contudo, punha-se lhe o problema de que as suas renas, habituadas aos climas frios e de neve, não teriam condições para puxar o trenó aéreo num clima tropical, usualmente quente e húmido. 

Assim, falou com alguns dos seus amigos em África e solicitou a estes que investigassem nas matas, chanas e nas florestas e selvas africanas, a ver se haveria um animal que tivesse características físicas adequadas, ordeiro e de fácil adestramento, para substituir com êxito as renas. 

Aos poucos, começaram chegando à sua caixa electrónica de correio, várias informações sobre os animais eventualmente candidatos para a substituição das renas. Dentre eles, vieram indicações para a utilização de antílopes de compleição física maior, e até houve sugestões para o uso de bois-cavalo e búfalos africanos e mesmo, até, elefantes, etc. 

Para poder escolher os animais mais apropriados, o Pai Natal veio ele próprio à África testar os vários animais indicados. Chegou contudo ao fim dos testes, tendo montado e experimentado o trenó em vários tipos de antílopes, incluindo zebras, dromedários, bois-cavalo, elefantes, concluindo que nenhum destes lhe servia os propósitos, em virtude do grau de dificuldade de aprendizagem que todos demonstraram quanto aos gestos de coordenação, etc. 

Encontrava-se a viajar de carro entre a República Democrática do Congo, a Zâmbia, o Zimbabwe e o Botswana, e já em desânimo e prestes a desistir da ideia, muito cansado, quando adormeceu pesadamente, e eis que teve um sonho. Sem o saber, no sonho, veio parar a Angola, onde nunca antes havia estado. Certo era que enviava para lá brinquedos a pedido de algumas crianças que de lá lhe escreviam, já desde há muitos anos, mas sempre encarregara os seus emissários ou assistentes locais e regionais de fazê-lo, os quais se vestiam com trajes semelhantes ao seu. Mesmo esses haviam usado elefantes voadores carregados com cestos e sacos, onde colocavam as prendas, mas nunca haviam feito recurso a trenós, em virtude destes animais serem demasiado grandes e desajeitados para tal.

Caindo em sono profundo, o tal sonho pareceu-lhe ser deveras tão real, que lhe deu a impressão de estar acordado. Nisso, viu muito claramente um pequeno e lindo bebé de tez africana. O bebé parecia pairar em pleno ar, contudo, como se se encontrasse deitado em algo invisível. Tão logo se aproximou, reparou que o bebé olhava para ele com olhos muito vivazes e de quem estava consciente do que via e do que ali estava fazendo. Quase de imediato, viu nítido em sua mente o nome do bebé, Luís Itiel. 

Achou estranho, mas, acabou não ligando muito, achando que poderia ser mera coincidência. Nisso, ouviu uma melodiosa vozinha de criancinha tenra, que mais parecia saída de um boneco falante ou de uma fada: “Meu nome tu já sabes. Agora, gostaria de te sugerir uma ideia sobre o tipo de animais que poderão ser-te úteis aqui em África, para que possas levar avante teus planos de distribuição de brinquedos aqui nesta região.” O Pai Natal estava de boca completamente aberta, quando tentou recompor-se: “E o que será que um bebé de aparentemente algumas poucas semanas me poderá dar como ideia, quando há pouco tempo nasceu para este Mundo? Afinal quem és tu, pequeno bebé Luís Itiel? O bebé Luís Itiel, olhou ainda como maior incisão para o Pai Natal e vai de dizer: “Eu sou um bebé recém-nascido sim, mas, também sou um bebé mágico e precoce, com poderes equivalentes ao das lendárias fadas das estórias infantis! Apesar de tudo, estou aqui para te ajudar, pois, na vida real, sou um aparente mero bebé e nunca ninguém iria suspeitar que eu poderia até falar e, muito mais ainda, com uma figura tão importante e mágica, como tu, Prezado Pai Natal! Se te virares um pouco para a tua esquerda, poderás ver seis animais, cuja designação mais comum é a de Palanca Negra Gigante. Elas são também da classe dos Antílopes, e são hoje animais muito raros, tendo estado mesmo às portas da extinção em Angola, em virtude da caça desenfreada e dos tempos atrozes de guerra. Estas aqui nasceram praticamente ao mesmo tempo e cresceram e andaram juntas, quase o tempo todo da sua sobrevivência. Foram mesmo treinadas e preparadas mentalmente, desde pequenas, para este momento e para te servirem aqui em África, como animais de elevada inteligência e senso de missão, podendo ter os mesmos atributos que as tuas renas, lá no frio Hemisfério Norte. E, além disso, estes animais estão bem adaptados climaticamente e poderão puxar muito bem o teu mágico trenó voador pelos ares da África e enfrentando tempestades e chuvas mais severas, habituais nesta ocasião do ano aqui no nosso Continente. Elas podem até voar, quando necessário, sem que se assustem de forma alguma com quase nenhuma situação adversa”. 

Mais espantado do que seria de esperar, o Pai Natal virou-se e perguntou em tom de admiração profunda: “Mas nunca ouvi falar de Palancas Negras Gigantes e nem sequer sabia que tal animal existia e de onde elas são mesmo?” 

“Das chanas do Leste de Angola, exclusivas da Província de Malange, de uma reserva natural chamada Kagandala, junto ao Rio Kuanza, que nasce algures no Centro-Leste de Angola e desagua a 60 quilómetros a Sul de Luanda, capital de Angola, país onde eu nasci recentemente”, disse muito naturalmente o bebé Luís Itiel. Podes até aproximar-te delas, para que fiquem desde já familiarizadas contigo e afagá-las enquanto ainda aqui no sonho. Aliás, da mesma forma que as tuas renas, as palancas também têm o dom de falar mentalmente, pelo que estão preparadas também para falarem contigo e para receberem tua voz de comando. Todas têm um nome próprio, pelo qual as podes tratar. Por exemplo, a líder da manada, chama-se Sol. A sub-líder chama-se Terra. Chamando-se as restantes, respectivamente, de Lua, Fogo, Água e Ar”. 

Dito isso, e acto contínuo o Pai Natal foi afagando uma a uma as palancas, que o rodearam plenas de júbilo e felicidade, como se sempre tivessem estado na presença do Pai Natal. Este, olhando novamente para o bebé, vai e diz-lhe com uma certa propriedade: “Afinal, já sei quem tu és, meu lindo bebé! Tu és o meu substituto no futuro, ou seja, o próximo Pai Natal, o qual está destinado a ser oriundo de África e isso eu já previa em minha mente, há muito tempo. Só que, não me passou nunca pela cabeça que um dia me iria encontrar com o bebé que viria a ser o Pai Natal seguinte!”. Aí, fez uma pequena pausa, e adiantou: “Hoje é um dos dias mais felizes da minha vida, e não faltam muitos anos e poderei finalmente arrumar as botas e reformar-me, pois já sei quem me vai substituir. Agora, continuaremos em comunicação sempre, sobretudo por intermédio de sonhos. Entretanto, vou deixar-te crescer como um Bebé normal e só voltarei a ver-te, mas, dessa vez, fisicamente, quando tu estiveres crescido e maduro e consciente o suficiente, para te passar então o testemunho de tão gigantesca e responsável tarefa de seres o Pai Natal do Mundo. Agora, vou acordar, pois já tenho a solução para os animais que irão puxar o meu trenó aqui em África, a fim de me poder dirigir a Angola e lá poder encontrar-me fisicamente e de facto, com estas tão lindas, elegantes e valiosas palancas negras, que, além de gigantes e raras, passarão a serem mágicas também, a partir de então…”. 

Despediram-se entretanto, com o Pai Natal a agarrar as mãozinhas delicadas e suaves do bebé e a beijá-las em tom terno, emocionado e em agradecimento. Acorda já como que motivado a mover-se com certa pressa. De imediato, vira-se para o seu colaborador que conduzia o carro e disse: “Pára aí algures para comermos uma bucha, e após isso, fazemos meia volta, indo, de seguida e sem demoras, directos à fronteira com o Leste de Angola, para dali, nos dirigirmos à Reserva Nacional de Kangandala, na Província de Malange. Ali iremos encontrar os animais que tanto procuro aqui nesta região de África”. 

O colaborador, com certo espanto, mas simplesmente ouvindo as directivas do Pai Natal, assentiu com a cabeça e parou num local apropriado para comerem. Depois, como previsto, dirigiu o carro na direcção de Angola, onde entraram já à noitinha. Dormiram algures numa pequena aldeia, e mal o Sol raiou, puseram-se em direcção de Kangandala, onde finalmente, não muito longe da entrada da Reserva de Kangandala, à sua espera estavam os imponentes, viçosos e elegantes vultos das seis palancas negras, que tinham algumas fêmeas e algumas crias em sua companhia. Receberam o Pai Natal com correrias alegres e altos saltos de comoção. Então, quase como num coro perfeito, o Pai Natal ouviu as vozes das Palancas em uníssono pela primeira em sua mente: “Olá, querido Pai Natal, aqui estamos nós prontas para puxar o teu trenó mágico pelos céus incandescentes e doirados de África.”.

Tão logo acabaram de falar, apareceu do nada, por artes mágicas, um lindo, sumptuoso, radiante e luzidio trenó doirado, todo ele a raiar brilho em todas as direcções, deixando por algum tempo os animais semi encadeados e tontos. Tão logo se refizeram e se habituaram e, em posição perfeita, com duas linhas paralelas de três palancas formadas em fila, ordeiramente, com umas atrás das outras, aquelas viram-se emparelhadas ao trenó… 

O Pai Natal, sem delongas, pulou para o trenó e disse em seu tom tradicional: “Oi, oi, oi! Aqui vamos nós pelos ares de Angola e de África, em nosso primeiríssimo ensaio inicial”. Voou, voou, até estarem ele e as palancas, exaustíssimos. Depois de ter tornado o trenó novamente invisível e ter soltado as Palancas, passou a noite na aldeia do Soba Maior da região e no dia seguinte, e antes de se despedir das palancas, dirigiu-lhes a voz: “Minhas amadas palancas Sol, Terra, Lua, Água, Fogo e Ar, eis que vos deixo tão-somente por uma semana, para que se refaçam, pastem os melhores pastos e se preparem para executar nossa árdua e intensa missão, a qual se aproxima a passos largos. Iremos, então, distribuir brinquedos e outras prendas de Natal nesta região do Continente Africano, de forma assaz intensa e em tão-somente um dia e tal, entre 24 e 25 de Dezembro, este último, o dia de Natal. Os brinquedos e outros presentes de Natal serão entregues, sobretudo, em regiões onde as crianças e as pessoas adultas ainda observam a verdadeira mágica tradição de Natal…” 

“Agora, minhas honrosas amigas Palancas, irei agradecer mentalmente ao bebé Luís Itiel por me ter guiado até vós e deixo a lembrança que, num futuro não muito longínquo, irão servir a ele, como futuro Pai Natal e o primeiro oriundo da África, mais precisamente de Angola…”, arrematou o Pai Natal… 

quinta-feira, 25 de abril de 2019

[0067] Mercado da Língua Portuguesa em Cascais

O Mercado da Língua Portuguesa, no Mercado da Vila em Cascais, decorre de 3 (a partir das 18h00) a 5 de Maio, e homenageia a língua portuguesa e a união das várias culturas pelo mundo, divulga o artesanato, a dança, a literatura, a música e os sabores de todos os continentes. É numa iniciativa da UCCLA em parceria com a Câmara Municipal de Cascais.

Programa:

No dia de abertura haverá Dança do Leão - Clube Kung Fu Hong Long (Macau), música por Djumbai Djazz (Guiné-Bissau), danças e músicas tradicionais Batucadeiras FinKa-Pé (Cabo Verde) e terminará com música de Piki Pereira (Timor-Leste). 

A 4 de Maio, Gaitas de Foles pelos Gaiteiros da Xuventude de Galicia (Galiza) e Kung Fu pelo Clube Kung Fu Hong Long (Macau), Afro Mandinga por Mamadú Baio e convidados (Guiné-Bissau), Cante Alentejano pelo Grupo Coral os Vindimadores (Portugal), Semba e Kazucuta por Chalo Correia e os bailarinos Pawel & Marly (Angola), Guitarra Portuguesa por Carlos Sanches (Portugal), BOSSA & Outras Novas por Sílvia Nazário e Cláudio Kumar (Brasil), Fado com Filipa Maltieiro e David Ventura acompanhados à guitarra por Armando Figueiredo e Nuno Siqueira e à viola baixo por Luís Morais (Portugal), semba com Luiana Abrantes (Angola); coladeras, mornas e funaná por Zezé Barbosa (Cabo Verde) e dexa, rumba, socopé e outras músicas com Tonecas Prazeres (São Tomé e Príncipe). 

A 5 de Maio, dança e música pelo Grupo Evkat (Goa) e a Fado pelo Modus de Fado (Portugal), uma tertúlia literária moderada por José Fanha, com o tema “Os Falares da Língua Portuguesa: Um Contrabando de Afetos”, Celina Veiga de Oliveira (Macau), Emerson Sousa (Angola), Goretti Pina (São Tomé e Príncipe), Júlio Meirinhos (Portugal - mirandês), Maria Luísa Timóteo (Malaca), Tatiana Levy (Brasil) e Valentino Viegas (Goa), Brais Fernández (Galiza), Fátima Guterres (Timor-Leste), Filinto Elíseo (Cabo Verde), Ricardo Araújo Pereira (Portugal), Sheila Khan (Moçambique) e Tony Tcheka (Guiné-Bissau), actuação da Cultura Makonde por Malenga (Moçambique) e Viva o Samba (Brasil).


quarta-feira, 24 de abril de 2019

[0066] N.º 5 da Revista "Nervo"

O nº 5 da revista “Nervo”, correspondente ao quadrimestre de Maio a Agosto de 2019, está disponível a partir de 2 de Maio e contará com as seguintes participações: Ana Paula Inácio,  David F. Rodrigues, Edgardo Xavier, Eduarda Chiote, Emanuel Matos-Drago, Francisca Camelo, Jesús Jiménez Domínguez (Espanha), João-Paulo Esteves da Silva, Luis Muñoz (Espanha), Miguel Filipe Mochila, Paulo José Costa, Pedro Mexia, Pedro Seabra, Zetho Cunha Gonçalves. As ilustrações e a capa são do artista plástico Emerenciano Rodrigues.

terça-feira, 23 de abril de 2019

[0065] Luciano Canhanga, mais uma história angolana

Mais um escritor angolano, Luciano Canhanga, convive em Contos da Tinta Permanente. Outros virão, prometemos.


O FALSO LEÃO

Os sul-africanos que, vezes sem conta, violavam com os seus invisíveis aviões o território do país tinham abrandado as investidas. Dizia-se mesmo que se tinham retirado definitivamente ou que tinham sido corridos pela tenacidade das FAPLA. A rádio, única naqueles anos, dava pouca informação e os meninos como Jacinto, mesmo sendo curiosos e perguntando ou lendo quase sobre tudo, tinham um deficit de informação sobre o que era a guerra, como e onde se desenvolvia e quem eram os actores mediatos e imediatos. Apenas palavras de soar bem ao ouvido e de significação oculta preenchiam o seu vocabulário do dia-a-dia. 

Os noticiários que se seguiam ao “Angola Combatente” começavam sempre com comunicados das forças governamentais sobre a situação política e militar no KK onde os fantoches e seus aliados, no dizer dos jornalistas de então, eram derrotados minuto a minuto, mas onde também, na retirada, acabavam por matar civis: mulheres grávidas, crianças e velhos. Apenas os jovens que estavam nas gloriosas estavam fora das atrocidades dos violadores kifumbes. 

Apesar da saudade dos pais que se tinham mudado de Luanda para o Munhango, as férias do fim de ano lectivo tinham corrido bem a Jack e aos tios. Os primos estavam todos felizes porque tinham ganho novas brincadeiras. O natal tinha sido maravilhoso e todos os meninos tinham ganho muitos presentes que o tio Wandisyapo comprou na loja do Sô Venâncio. 

Wandisyapo e a irmã, Naxitula, tinham combinado que Jacinto regressaria a casa acompanhado do primo Bernabé, enquanto o irmão mais novo, Xendivali, ficaria com o tio. Lito que estava adoentado voltaria a casa mais tarde. 

No dia em que Jacinto e Bernabé receberam a notícia de morarem juntos na vila de Munhango, quase não dormiram. A curiosidade de Bernabé era tanta e queria que o primo lhe falasse sobre como eram as águas dos rios, os animais, as frutas da mata e das lavras, os peixes dos rios, o chilrear dos passarinhos e tudo mais. 

— Oh primo, conta então, ou não queres que eu vá contigo? – ameaçou Bernabé, em jeito de troça. 

— Bebé! Arruma a tua mochila. Os teus olhos te vão contar ao longo da viagem. – Respondeu-lhe Jack, como era tratado Jacinto no seio familiar. 

— E tu, Jack, já arrumaste a tua mochila? — ripostou Bernabé. 

— Ainda não. Mas eu sei onde andam as minhas coisas e não será difícil. 

— Olha para isso. – Bernabé mostrava o cantil que ganhara como presente por ter transitado de ano académico. – Vai ser útil ao longo da nossa viagem até à casa da tia Naxitula. — disse. 

— Ai é? E vamos mesmo a pé? – perguntou Jacinto a zombar. Os dois já tinham combinado gastar o dinheiro da passagem em guloseimas e fazer o percurso de dez quilómetros a pé. Conheciam o caminho e eram também conhecidos dos aldeões daquela região onde bastava dizer de quem se era filho ou neto para logo ser acolhido em qualquer aldeia por onde se passasse. 

No domingo, dia em que o comboio faz o percurso Lwena-Vye, os meninos foram à estação dos caminhos-de-ferro acompanhados por Wandisyapo, pai de Bernabé e tio de Jacinto. Os rapazes, que já tinham o dinheiro da passagem, fingiram dirigir-se à bilheteira de modo a despistar Wandisyapo. E conseguiram mesmo ludibriá-lo, pois tinham conseguido de véspera uns bilhetes que já não tinham validade. E foram estes que mostraram ao pai, de quem se despediram. 

— Papá, não adianta esperar pela partida do comboio. Jack e eu já somos grandes e o papá pode ir descansado. Quando chegarmos, a tia vai ligar para dar notícias. Não é isso Jack? – perguntou Bernabé. 

— Sim, tio. – respondeu Jacinto, a fingir que subia na carruagem, puxando pela mão do primo. 

Mal Wandisyapo marcou os primeiros passos em retirada, os dois trapaceiros desceram da carruagem e meteram-se a caminho do mato que liga as embalas. Na mata cerrada do Moxico, em direcção ao pôr-do-sol, os dois aventureiros transpuseram riachos e contornaram montanhas, deleitando-se, ao longo do percurso, com muitas frutas: umas colhidas de pomares que iam encontrando e outras silvestres. Viram também um passarinho preto, amarelo e vermelho que lhes fez recordar a bandeira de Angola. 

— Jack! Olha aí o Angola-Avante! – exclamou Bernabé, o primeiro a ver o passarinho no cimo de uma árvore. 

— Angola-Avante é o hino nacional. Esse aí é cor-de-bandeira. – corrigiu Jack que era um ano mais velho do que o primo. 

Depois de caminharem cerca de uma hora, o mutismo e o cansaço fez morada entre eles. — Jack, porque não paramos um pouco para descansar e apreciar que está à volta? – sugeriu Bernabé. 

— Sim, Bebé. Também sinto a boca seca de sede. Queres um pão com manteiga? – brincou Jacinto. A sombra de uma árvore frondosa foi escolhida para descansar e conversar. 

Jack puxou da mochila a sua bússola para ver em que direcção estavam, enquanto Bernabé prospectava com o seu binóculo o que se passava à volta. Foi naquele instante que viu, não muito longe do local em que estavam, uma cabra do mato que corria perdidamente. 

— Jack, Jack! Uma cabra do mato está a correr em direcção ao rio. Queres ver? Deve haver um leão atrás dela! 

— Hum, leão? – balbuciou Jack acossado de medo. 

— Sim aqui há leões, leopardos, hienas, onças e outros animais ferozes. Doutra vez – contava Bebé – o papá caçou um leão velhinho que rondava o curral do Soba. Só a juba dele? Parecia um espantalho. Era um bicho assim… – Bernabé indicava com gestos a enormidade da juba do bicho. Enquanto Bernabé descrevia o animal, Jack, já quase sem forças nas pernas, sorvia uma porção de água do cantil. Foi no mesmo instante em que Bebé, também ele sedento, esticou a mão para receber o cantil.

— Está aqui. – disse Jack. 

— Mam! Estou perdido. – gritou Bernabé que se meteu a correr pelo mato. 

Nisto, Jack que tinha pensado que o primo fugia duma fera, também se meteu em fuga pelo mato, metendo por um outro atalho. 

Andaram perdidos no sertão cerca de hora e meia até que se reencontrarem numa aldeola, já próximo do Munhango. Estavam exaustos, sedentos e famintos.

— De que fugiste, Bernabé? – questionou Jack todo aborrecido. 

— Não foste tu que disseste que o leão estava aí? Ou querias que eu servisse de almoço do bicho? – respondeu Bernabé também agastado. 

— Eu não me referi ao leão. Esticaste a mão para receber o cantil e eu te disse “está aqui” o que pedias. 

— E por que te meteste também a correr? – voltou a perguntar Bernabé já mais calmo. — Fugi porque, ao te ver com o “pé no ngimbu”, pensei que tivesses visto, na verdade, um leão! 

segunda-feira, 22 de abril de 2019

[0064] 3 de Maio, dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP

Decorre no dia 3 de Maio (uma sexta-feira), no auditório da CPLP em Lisboa (R. de São Mamede 21), sob o lema “A Cultura e a aproximação dos Povos da CPLP – realidades, desafios e perspectivas futuras”, a celebração do Dia 5 de Maio, Dia da Língua Portuguesa e da Cultura na CPLP.

[0063] Bienal de Culturas Lusófonas em Odivelas

Odivelas volta a ser a Capital da Lusofonia, de 2 de Maio e 1 de Junho: a sua Câmara Municipal promove a VII Bienal de Culturas Lusófonas oferecendo um conjunto de iniciativas dedicadas, em exclusivo, à língua que nos une e enriquece a multiculturalidade e a interculturalidade que caracterizam e identificam o concelho:  Feira do Livro de Autores Lusófonos, exposições diversas, Feira Multicultural, o Fórum Lusofonia, o Desfile Multicultural e o Encontro de Escritores.

terça-feira, 16 de abril de 2019

[0062] Nuno Rebocho, um contador de histórias

Menos conhecido é que Rebocho é um contador de histórias. De exemplo, serve esta sua “Novela da Cidade Velha”, escrita em Cabo Verde.


EL PREDADOR


I

Encosta riba, lá onde a extensa achada começa a definir-se num primeiro patamar, já se podem encontrar as galinholas mais atrevidas. Galinhas do mato lhe chamam. São aves de penas acinzentadas e camufladoras, maiores que as galinhas de terra, mais pernilongas, pescoço alongado, cabeça dir-se-ia negra. O corpo fusiforme e as asas anchas, a conferir maior sustentação ao voo, distinguem-nas das primas galináceas pica-no-chão tanto no porte como na capacidade de se elevarem aos céus e planar sustentadamente por longas distâncias. Raramente se descobrem isoladas. Preferem a proteção do bando, por vezes de seis, oito exemplares, debicando parcas sementes e bichezas. Ao rés dos trilhos que atravessam as matas de acácia que cobrem cutelos e achadas facilmente se depara algum casal acompanhado de franganotes, já desenvolvidos em tempos de maio e de perdição: em mês de festas que atiram por junho adentro, depois da procriação que faz as galinholas mais esquivas, tornam-se cobiçada iguaria para palatos exigentes. Então a caça redobra.

Galinhas do mato, pois, assim as designam. Também galinhas de angola ou galinhas da guiné, galinholas são nomes useiros, com razão da origem. Porque não são autóctones. Salvo a halcion (vulgo, passarinha), nada em Cabo Verde é autóctone: tudo veio com o povoamento que, a partir do décimo quinto século, animou estas ilhas até então desertas de animais, homem incluso. Ao contrário de moscas e mosquitos, gafanhotos, tchotas, corvos, cagarras, fragatas e alcatrazes, as galinholas não terão arribado por motu próprio ou arrastadas pela fatalidade dos ventos. Seriam mãos humanas que alguma vez as trouxeram. Depois multiplicaram-se.

No caminho para Salineiro, mal a achada, numa primeira dobra, alteia a uns quinhentos metros sobre o mar, lobrigam-se as galinhas do mato no refúgio de acácias e babosas. E, à medida que o viajante investe para lá de Salineiro, no rumo de Santana, a cada passo se avistam mais e mais, aqui disfarçadas na morabeza das purgueiras, além de Lapa Catchor e já no ramal para João Varela não menos. Se se marcha pelo canyon de São João Batista com destino a Belém, mais do mesmo. Ou pelo de Alfarroba. Ou subindo para Mosquito Horta. Por toda parte, elas se conjugam com o estoiro de caçadoras de chumbo e bacamartes e fazem abundância no território da Ribeira Grande de Santiago.

Adaptaram-se ao sequeiro, à atmosfera sufocante de poeiras suspensas que cansa por estas extensões, a chamada bruma seca. Quais perdizes, adotaram covas por ninhos onde largam os ovos e os incumbam, aproveitando os segredos das achadas para industriar os filhotes enquanto a penugem os cobre e lhes proíbe o voo. Aprendem então a escarafunchar. E crescem.


II

Alfonso Tércio y Tércio era o mais famoso caçador de galinhas do mato de Praia e Cidade Velha. De Praia porque, embora nascido em Santiago de Cuba, Alfonso todos os fins-de-semana pegava na espingarda, sua segunda pele arrumada na capital de Cabo Verde, e metia-se aos caminhos, regressando sempre com numerosas peças que ofertava aos amigos ou ele mesmo cozinhava para pantagruélicas petiscadas comunais que honravam as manhãs de domingos e, por norma, se afundavam de barriga cheia ao fim da tarde. Que era homem de convívios este fiel admirador dos barbudos da sua ilha: castrista indefetível, o cubano juntava o respeito pelos heróis da Sierra Maestra ao visceral repúdio das políticas ianques que tinham o poder instalado em La Habana como inimigo a abater. Abominava os exilados em Miami e, ainda que ele fosse também mais um que partiu de Cuba, detestava que o confundissem com os “reacionários”.

Era de facto diferente o seu caso. Alfonso viera para Cabo Verde nos bons tempos da cooperação, quando Cuba era tida por luz dos países de África apodados de progressistas, fosse tal qualificativo o que verdadeiramente pudesse ser: quando foi quando chegaram a África médicos e técnicos militares cubanos. Tércio y Tércio, engenheiro, viera nessa leva, apaixonou-se por crioula, com ela casou e teve filhos. Em Cabo Verde ficou, cubano sempre, castrista sempre, mas preso por amor à mulher encontrada no arquipélago. Criou empresa e, por agora, era vê-lo a melhorar estradas e acessos na Ribeira Grande de Santiago.

Portanto, Tércio y Tércio era caso à parte, não identificável com as “muñecas” que se serviram de estudantes cabo-verdianos de passagem na cooperação cozinhada por Cuba em tempos velhos, armadilhando-os nos seus braços em troca de um casamento que as tirasse da ilha de José Marti. Arribadas a Cabo Verde, passados uns anos, abandonavam os maridos, buscavam novo curso à sua vida. Nem identificável com aqueles que, nas ilhas do Cabo Verde, achavam pretexto para se distanciarem de uma revolução que lhes prometera paraísos, mas de que afinal desgostavam: vinham, metiam-se em negócios nada limpos, despiam a farda revolucionária e revelavam quanto ocultaram nas origens.

Hábil caçador, este cubano refutava que a mortandade causada entre os galináceos pudesse pôr em causa a sobrevivência da espécie.

- Reproduzem-se com facilidade. Deixá-los por aí, eras prejudicial na agricultura: não escapava semente. Até deviam darme gracias.

Para provar a tese de que a multiplicação desregrada trazia prejuízo para o arquipélago, recordava o havido na vizinha ilha do Maio: as galinhas do mato sobrepovoaram de tal modo o interior daquela ilha quase plana, a coberto do arvoredo que fornecia madeira para fazer carvão, que assolaram Porto Inglês – invadiram casas, lojas, tornaram-se praga, acabando por ser abatidas em massa. 

Num aparte, explicou ele:

- Trouxeram da Guiné a galinha-do-mato e não pensaram que em Cabo Verde não há predadores. Foi por isso que, mais tarde, tiveram de importar um, vindo de Cuba – yo!


III

O terreno de caça escolhido pelo cubano sempre foi a vasta achada para lá de Salineiro, onde a plantação de acácias se deita a perder de vista: uma barbaridade. Quem não identifique a árvore maligna, ao ver o estendal pensará que se trata de algum pomar, tal as acácias se alinham a distâncias regulares. Tratou-se de terrível maldade cometida contra o país nos anos seguintes à declaração de independência, quando se sonhava com os “morangos do nordeste”: é que acácia (a chamada “acácia americana”) é infestante daninho, chupa do solo toda a água nele existente. Contribui para reforçar o sequeiro. Ainda se as plantassem em zonas de tarrafo… Mas não. Disseminaram milhares de acácias ao longo de quilómetros, num desperdício de dinheiro que mais empobreceu Cabo Verde.

- O autor deste crime devia ser enforcado numa acácia!, costumava barafustar Emerenciano que, por vezes, acompanhava Alfonso nas deambulações venatórias.

- Cala-te, respondia o cubano. E justificava: o plantio foi feito com boas intenções. Tinham a ideia de que, pondo árvores, adoçavam o clima e combatiam a desertificação.

- Com acácias? Deixa-me rir. A acácia é pior que o eucalipto. Mas o eucalipto, apesar disso, ainda serve para a indústria de celulose e para a carpintaria. A acácia para nada serve: quanto muito, dá carvão. Não é por acaso que em grande parte do mundo as arrancam e as consideram uma praga.

De facto, a estupidez do plantio de acácias reforçou a seca e ainda mais erodiu os solos. Dói o coração ver o massacre perpetrado contra a natureza, um massacre que teve antecedentes no século XIX, quando o Governador Martins decidiu colocar as primeiras daquelas árvores. Se Martins deu mau exemplo, no século XX abusaram. E merecerá homenagens quem tiver a ousadia de as mandar arrancar e substitui-las por marmeleiros e figueiras ou, porque não?, alfarrobeiras que por aqui se terão adaptado bem, fazendo fé na toponímia do município: lá está Alfarroba, na falha que se avista em Chã Gonçalves.

É no mato de acácias que as galinholas se escondem, voando em bandos por cima das árvores quando o sol se encaminha para poente – saúdam o aliviar dos calores que abrasam a achada, do mesmo modo que as cabras, as vacas, os burros e os porcos se animam com a promessa de sombras.

O sol a pino, vertical sobre a achada, não assustava Tércio y Tércio. Fazia-se ao empedrado ou aos trilhos tumultuosos do leito seco das ribeiras, conduzindo a sua pick-up pintada de camuflado como se fosse militar – era um assumir da sua antiga identidade de oficial do exército de Cuba. A camuflagem, contudo, tinha aqui um efeito contrário: não a disfarçava, dissolvendo-a na paisagem, antes a anunciava ao longe. “Lá vem o cubano!”, gritava-se mal se avistava à distância a estranha carripana. E Alfonso deliciava-se em dar nas vistas.

Ninguém estranhava suas andanças, mesmo no forno das tardes. Preparava-se o cubano para zarpar da Cidade Velha, já sentado ao volante da carrinha, quando avistou Emerenciano atravessando a rua do Calhau. Reclamou-o:

- Ei, quieres vir para Belém? Emerenciano aceitou o convite: “Não tenho nada para fazer esta tarde. Porque não? Vamos nisso. Vou contigo”.

Emerenciano acomodou-se no lugar do pendura. Alfonso avançou para Caniço e meteu para S. João, buzinou à passagem pela loja de Djon-Djon e trepou o monte até à bifurcação para Chã Gonçalves. Depois, foi o árduo caminho para os altos que encerram, nas suas dobras, a pacatez de Belém.

De súbito, correndo no trilho, duas galinholas atarantadas procuraram refúgio entre as acácias. O cubano travou. Com agilidade insuspeitada em sexagenário, Alfonso estendeu o braço para trás do banco onde a caçadeira dormia. Levou a arma à cara e, ainda dentro da viatura, apontou pela janela aberta. Desfechou. Um estrondo abafou o susto de Emerenciano, que quase saltou no assento, enquanto uma galinha-do-mato tombava sobre a terra seca e dura e a sua companheira levantava voo, assustada.

- Porra, cubano! Fiquei surdo. Estou surdo. Disparar dentro da carrinha não lembra ao diabo, xiça!
Alfonso riu-se e foi buscar o troféu tombado na secura. Emerenciano saiu da pick-up, agitando a cabeça, a polpa das mãos a espremerem-se sobre os ouvidos.

- Raio de macaco, este cubano. É mesmo maluco.

- Non puedes ser soldado, muchacho. Te susta un simples disparo! Si combatieras en la guerra…

Alfonso Tércio y Tércio tinha agora pretexto para desenrolar memórias da sua guerra de Angola, onde integrara, como oficial de engenharia, o corpo expedicionário ido de La Habana em socorro do MPLA. Estivera no Cuito Canavale, na ofensiva sobre o Huambo.

- Isto foi só uma cartucheira. Si audiras disparo dos canhões como era? Te emierdavas...

- Eu não sou soldado, não estou numa guerra. Convidaste-me para vir contigo a Belém, não foi para andares por aí aos tiros.

Emerenciano estava irritado. Mas tinha de fazer das tripas coração e aguentar. A alternativa era regressar a pé à Cidade Velha, quilómetros à torreira, que automóveis a passar por ali eram coisa mais que rara. Rosnando pragas, foi-se acalmando. Para isso servem os raios e coriscos.


IV

Do boteco de Xinda Veiga, em S. Domingos, à cândida esplanada de Mosquito Horta, o churrasco de galinha-do-mato é pitéu cobiçado. Aquela carne, rija e fibrosa, agarrada ao osso, faz as delícias de muita gente e justifica deambulações por estradas difíceis – estradas é uma maneira de dizer. Como se diz que o cubano é fornecedor das churrascarias. É boato. Ninguém alguma vez o topou em tal tráfico que, de resto, nem sequer é crime. A galinhola não está em extinção, não há quem reclame por licenças de caça nem há taxas para esta atividade. Nenhuma regulamentação existe.

Não faltam especialistas nesta caça que não precisa de ser furtiva. Certo é que Alfonso gostava de patuscadas, de convívios com amigos, cerveja e grogue a correr. E assados, até porque os cubanos são exímios no churrasco. Fama têm-na. 

Alfonso Tércio y Tércio, certa feita, congregou roda de amigos para pachorrenta tarde de domingo em Achada de S. Filipe, à saída da cidade da Praia, por Monte Vaca. Vieram uns vinte à requisição. E o cubano esmerou. Queria fazer prova da habilidade islenha, nisto rival de filipinos no tratamento de um bom porco assado.

Suíno bem calibrado comprado dias antes, ainda teve tempo para rondar as ruelas rurais da Achada. Foi morto, com facada certeira, na véspera da comezaina. Guinchou e sangrou, patas amarradas e espadeirantes, antes que se fizesse a sorte de queimar as cerdas, precedente do desmonte das miudezas. Tudo a cargo do cubano, que só ele teve alforria para matador, talhante e assador.

Ficou a carne a esfriar de um dia para o outro, no pela-manhã lá estava Alfonso a cavar um buraco de mais de dois metros de comprido para, no fundo, espalhar carvão e lenha que alimentassem quanto bastasse o demorado braseiro que se anunciava. Para espeto, escolheu vara aparentemente apropriada: lenho grosso e extenso que, enfiado do traseiro à focinheira do bicho, iria permitir rolar o cerdo sobre o baile das chamas. Tudo de acordo com os preceitos, explicou ele:

- É assim que se hace en Cuba.

Sentou-se à beira da fossa ardente. Com impressionante calma avisou:

- Vai levar cinco horas a assar. Necessito que, de meia em meia hora, alguém venha aqui rodar o espeto para que o porco fique bem tostado. E isto cansa.

Voluntários não faltaram - entre eles, Emerenciano que, nessa tarde, acabara de conhecer o cubano, início de alongada amizade. 

Alfonso estava deliciado: ensinava arte a cabo-verdianos. De certeza que nenhum catequista se sentiria mais feliz a ensinar doutrina a efebos. O cubano estava no oitavo céu. A mão direita, descaída ao nível do joelho, segurava o espeto e, num alarde de força, rodava o pau e a sua carga.Com languidão. Com perícia. E a atmosfera emprenhava-se de um odor salivante: cheirava a crestagem de carne gordurosa. O rosto de Alfonso falava por si – do seu deleite, do seu quase orgasmo.

Em dado momento, um estoiro: o varapau que servia de espeto, cansado do suíno que aloirava ao lume, ardido de chamas e de fumo, rompeu-se e despejou o porco sobre o braseiro. Atiçadas pelo derrame e pela gordura pingante, as labaredas cresceram, afugentando tentativas de salvamento. A carcaça condenou-se a torrar até ficar carvão.

O cubano olhou o desastre. Triste e sem palavras. Levantou-se com pesar, mirou a cova aberta por suas mãos. E despediu-se do manjar. Só Emerenciano se pronunciou:

- Pronto! Ficámos a saber como se assam porcos em Cuba!

Alfonso mirou-o de alto abaixo, com o espesso sobrolho alteado. Depois, aproximou-se do rioleiro e deu-lhe um abraço. Ficaram amigos.


V

Entre o desastre da Achada de S. Filipe, na Praia, e a arcabuzada de Belém onze anos transcorreram e cimentaram amizade entre dois homens que, oriundos de pátrias diferentes, Cidade Velha reuniu: cinco séculos após alfa, a histórica urbe mantinha-se globalizante. Perdera muito do seu umbigo oceânico que a prendera e soltara do ventre do tempo. Já não era porto, nem visitada pelas armadas, os veleiros do antigamente já não se arriscavam para fundear perto da eminência dos escolhos e recifes atemorizadores como quando o mar era o acesso único à cidade encaixada no vale que muralhas de rocha vulcânica defendiam e isolavam. Os séculos talharam estradas pelas encostas e corroeram-lhe a memória da origem – fixaram a Ribeira Grande ao chão da ilha, deceparam-na dos seus braços marítimos, mas não destruíram o cadilho: continuou a ser o laboratório onde se amalgamavam fluxos diferentes que convergiam para uma mesma massa de diferenças, para uma comunidade onde o elo comum era o diverso. Esse continuava a ser o milagre, o mistério e o encanto da Cidade Velha: a sua origem e o seu destino.

Alfonso viera de Cuba. Emerenciano de Portugal. Cidade Velha os juntara. Cada qual com o seu percurso e a sua identidade, consideravam-se hoje ambos tão cabo-verdianos como os cabo-verdianos. E ambos assumiam Cidade Velha como bandeira. Estranho vazadouro aquele… Talvez lugar nenhum do mundo tivesse igual condão para reunir o antes disperso e com ele construir os elos de uma corrente.

Emerenciano e Alfonso tinham o crioulo como o esperanto do seu diálogo. Deformavam-no, reconstruíam-no, reformulavam-no, tropeçavam na sua gramática e inventavam um crioulês no qual se entendiam. A língua da terra, tal como no início dos tempos, continuava a refazer-se, mercê dos contributos que ali desembarcavam e desprezavam cristalizações. Por isso mesmo era crioulo e recusa do definitivo, matéria-prima e plástica, húmus sempre renovado e renovável.

Contrastavam. Alfonso era guerreiro, reivindicava o seu passado militar e a espingarda era parte de si mesmo como os braços, as pernas, a boca ou o sexo. Emerenciano proclamava-se pacífico e pacifista, mas a companhia do cubano era-lhe tão prestimosa como o bode o é para a carraça. Completavam-se. Tornavam-se indispensáveis.

Homem de armas, o cubano disparava por alimento. A bala não lhe fazia sentido se não trouxesse provisão. Em Angola tomara o vício da caça. Em Santiago de Cabo Verde, a galinhola valia-lhe agora de antílope ou de pacaça. E, sempre que podia, metia-se pelos matagais de acácias e espinheiros em busca de alvos. Torcia o nariz quando Emerenciano o admoestava: que as galinhas do mato eram bem comunitário e, como tal, a comunidade deveria ser ressarcida do abate; que à caça só tinha acesso quem pudesse comprar arma e munições, pelo que a melhor fortuna deveria ajudar os desfavorecidos – defendia o licenciamento dos caçadores, tanto pela necessidade de preservar as espécies, tanto pela justeza da redistribuição das sortes. Mas, dizendo-se embora socialista, Alfonso Tércio y Tércio chegando aí, estancava: era socialismo a mais, dizia.

Não abdicava do seu exercício. Todas as semanas empunhava a caçadeira e internava-se por achadas e cutelos. Dois ou três disparos, recolhia os despojos e regressava feliz, repartindo depois a carnuça pelos amigos. Mas nem sempre os azimutes certificavam o seu mapa. Exemplo foi uma vez que a caçadeira desfechou sobre cabrito, o que deu protesto dos aldeãos. Desculpou-se: pensava que o caprino não tinha dono, que também houvesse por ali “cabrito do mato”. Haver, havia, mas não era o caso. 

Na verdade, tudo se perdoava a El Predador. Popular, acamaradava pelos lugares, gostava de ajudar no que podia – um conselho, um alvitre, a reparação de um artefacto. E não recusava farra para que fosse convidado. Era o “cubano”, personalidade famosa desde a Malagueta até Monte Tchota.

Porém, certo dia, o caldo quase entornou devido a erro de montaria. Foi pelas bandas de Santana. Alfonso abandonara a carrinha e galgou uma barreira. Tinham-lhe dito que no vão de uma ribeira seca vadiavam cabritos do mato, dos verdadeiros.

- Cabritos do mato, de verdad?, inteirou-se.

Que sim. E ele que ansiava estrear-se na modalidade! À distância, divisou enganadora mancha, atrapalhada pelas ramarias na hora de lusco-fusco. Não era mais alta que uma cabra, de pelagem parda escura. Levou a arma à cara, apontou. Disparou. O vulto tombou. Era um jumentinho, pequenote como são os asininos de Cabo Verde. Os olhos dóceis e sofridos no estertor ainda viram o cubano aproximar-se e estarrecer.

Desde então, Emerenciano, para o arreliar, atazanava-o quando ele regressava das caçadas:

- Ei, Predador, encontraste hoje burros do mato?

Tércio y Tércio respondia com sorrisos. Era bravo apenas nas caçadas.