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sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

[0114] Na passagem do 1.º aniversário da morte do Nuno Rebocho

 

Passou no dia 12 o primeiro aniversário do falecimento do poeta, escritor, jornalista, radialista e conselheiro autárquico Nuno Rebocho (1945-2020), a quem a Ribeira Grande de Santiago (Cidade Velha), Cabo Verde tanto deve. Honra seja feita à memória do nosso amigo e amigo da cidade-berço de Cabo Verde. Ver AQUI a sua biografia.

Fundámos ambos este blogue e o seu "irmão" Contos da Tinta Permanente, hoje com o título mais abrangente de Textos da Tinta Permanente (ver AQUI), dedicado a poesia. Foi uma convivência longa e de grande camaradagem, com a poesia, a prosa e o amor mútuo por Cabo Verde em fundo. 

Estejas onde estiveres, Nuno, recebe um grande abraço deste teu amigo de escritas e morabeza

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

[0087] Faleceu ontem em Mafra o nosso amigo e colega de escrita Nuno Rebocho


Nuno Rebocho (1945, Queluz, Sintra, Portugal – 12.Janeiro.2012, Mafra, Portugal) foi um escritor, poeta, homem da rádio e jornalista. Participou na luta contra o Estado Novo de Salazar, chegando a ser preso durante cinco anos, por motivos políticos, na cadeia do Forte de Peniche.

Iniciou sua carreira na página juvenil do Diário de Lisboa, em 1963. Foi redactor da revista O Tempo e o Modo e da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, porém só viria a ingressar no jornalismo profissional em Abril de 1974 em jornais diários como o Jornal NovoTribunaA TardeJornal de EconomiaO Século e nos semanários Vida MundialNovo ObservadorO SinalDez de Junho e Ideal. E também em revistas especializadas - Pesca & NavegaçãoTT-Todo o TerrenoMotor (foi director do suplemento de Turismo). Presença activa na imprensa regional - Notícias da AmadoraComércio do Funchal, foi chefe de redacção de A Ponte (Montijo) e A Nossa Terra (Cascais). Desempenhou funções diversas - redactor principal, chefe de secção, sub-chefe de redacção, chefe de redacção. Em 1989 enveredou pelo jornalismo radiofónico, colaborando com Moliceiro FM (Aveiro), cronista da Rádio Comercial (programa de Turismo, de Carlos Amorim; programa de Rui Castelar) e de comentador. Ingressou na RDP (Radiodifusão Portuguesa), destacado para a Guarda durante um ano. Depois, foi editor, chefe do departamento de Informação Especial e chefe de redacção da RDP - Antena 2. Integrou conselhos de redacção e a Comissão de Trabalhadores da empresa radiofónica. Em Cabo Verde, colaborou com o semanário Horizonte, com Expresso das ilhas e com Liberal on-line (de que foi delegado em Lisboa) e foi assessor da Câmara Municipal de Ribeira Grande de Santiago. Integrou os órgãos dirigentes da AJEPT, Associação de Jornalistas Portugueses de Turismo. Participou com poesia no tríptico de serigrafias de Silva Palmeira "A Lisboa", Centro Português de Serigrafias. Lisboa 1997. Foi comissário da Bienal do Mediterrâneo, Dubrovnik, Croácia, 1999. Animador cultural, organizou A Festa da Poesia, na Galeria Artdomus, S. Pedro de Sintra em 2000-2001; As Noites da Liberdade, na Biblioteca Museu da República e Resistência, Lisboa em 2005; A Poesia à Mesa, no restaurante Panela de Barro, Carnaxide em 2006. Foi vice-comissário da Festa da Poesia - Encontros de Poetas Portugueses, na Figueira da Foz em 2003/4/5. Organizou o Dia Mundial da Poesia, em 2006, em Penamacor. Participou nas Jornadas Poéticas de Artiletra (Cabo Verde), 2007; em Correntes d'Escrita, Póvoa do Varzim, 2007; na I Bienal de Cultura Lusófona-Encontro de Culturas, Malaposta-Odivelas 2007. Foi membro efectivo da AVSPE (Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores).

Autor de "Breviário de João Crisóstomo", "Uagudugu", "Memórias de Paisagem", "Invasão do Corpo", "Manifesto (Pu)lítico", "Santo Apollinaire, meu santo", "A Nau da Índia", "A Arte de Matar", "Cantos Cantábricos", "Poemas do Calendário", "Manual de Boas Maneiras", "A Arte das Putas" (poesia), "Estórias de Gente" (crónicas), "O 18 de Janeiro de 1934", "A Frente Popular Antifascista em Portugal", "A Companhia dos Braçais do Bacalhau" (investigação histórica), "Canções Peripatéticas" e "Histórias da História de Santiago (Cabo Verde)" (com prefácio de Joaquim Saial), entre outros. O seu derradeiro livro publicado em vida foi "A Ilha de Amianto". Está representado em diversas antologias e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil. Tem colaborado em catálogos para exposições de artes plásticas: Ramón Catalan, Deolinda, Carlos Eirão, Alfredo Luz, Edgardo Xavier, João Alfaro, Maria José Vieira, Ricardo Gigante, Ana Horta, Isabel Teixeira de Sousa, Nuno Medeiros, Viana Baptista, Teresa Ribeiro, Rico Sequeira, João Ribeiro, José Manuel Man.

O seu primeiro trabalho póstumo será o prefácio do livro "Poemas para a hora de ponta", editora Cordel d'Prata, de Joaquim Saial, a sair em Vila Viçosa a 25 deste mês de Janeiro e a 15 de Fevereiro em Lisboa.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

[0084] É hoje!

IM estará presente e dará notícia do lançamento, como seria de esperar. Quanto ao caderninho, é delicioso e já lido e relido há semanas por nós. Tem o esquisito preço de 4,10€ mas isso só lhe dá mais sabor. Um grande pequeno livro, na verdade.

terça-feira, 16 de abril de 2019

[0062] Nuno Rebocho, um contador de histórias

Menos conhecido é que Rebocho é um contador de histórias. De exemplo, serve esta sua “Novela da Cidade Velha”, escrita em Cabo Verde.


EL PREDADOR


I

Encosta riba, lá onde a extensa achada começa a definir-se num primeiro patamar, já se podem encontrar as galinholas mais atrevidas. Galinhas do mato lhe chamam. São aves de penas acinzentadas e camufladoras, maiores que as galinhas de terra, mais pernilongas, pescoço alongado, cabeça dir-se-ia negra. O corpo fusiforme e as asas anchas, a conferir maior sustentação ao voo, distinguem-nas das primas galináceas pica-no-chão tanto no porte como na capacidade de se elevarem aos céus e planar sustentadamente por longas distâncias. Raramente se descobrem isoladas. Preferem a proteção do bando, por vezes de seis, oito exemplares, debicando parcas sementes e bichezas. Ao rés dos trilhos que atravessam as matas de acácia que cobrem cutelos e achadas facilmente se depara algum casal acompanhado de franganotes, já desenvolvidos em tempos de maio e de perdição: em mês de festas que atiram por junho adentro, depois da procriação que faz as galinholas mais esquivas, tornam-se cobiçada iguaria para palatos exigentes. Então a caça redobra.

Galinhas do mato, pois, assim as designam. Também galinhas de angola ou galinhas da guiné, galinholas são nomes useiros, com razão da origem. Porque não são autóctones. Salvo a halcion (vulgo, passarinha), nada em Cabo Verde é autóctone: tudo veio com o povoamento que, a partir do décimo quinto século, animou estas ilhas até então desertas de animais, homem incluso. Ao contrário de moscas e mosquitos, gafanhotos, tchotas, corvos, cagarras, fragatas e alcatrazes, as galinholas não terão arribado por motu próprio ou arrastadas pela fatalidade dos ventos. Seriam mãos humanas que alguma vez as trouxeram. Depois multiplicaram-se.

No caminho para Salineiro, mal a achada, numa primeira dobra, alteia a uns quinhentos metros sobre o mar, lobrigam-se as galinhas do mato no refúgio de acácias e babosas. E, à medida que o viajante investe para lá de Salineiro, no rumo de Santana, a cada passo se avistam mais e mais, aqui disfarçadas na morabeza das purgueiras, além de Lapa Catchor e já no ramal para João Varela não menos. Se se marcha pelo canyon de São João Batista com destino a Belém, mais do mesmo. Ou pelo de Alfarroba. Ou subindo para Mosquito Horta. Por toda parte, elas se conjugam com o estoiro de caçadoras de chumbo e bacamartes e fazem abundância no território da Ribeira Grande de Santiago.

Adaptaram-se ao sequeiro, à atmosfera sufocante de poeiras suspensas que cansa por estas extensões, a chamada bruma seca. Quais perdizes, adotaram covas por ninhos onde largam os ovos e os incumbam, aproveitando os segredos das achadas para industriar os filhotes enquanto a penugem os cobre e lhes proíbe o voo. Aprendem então a escarafunchar. E crescem.


II

Alfonso Tércio y Tércio era o mais famoso caçador de galinhas do mato de Praia e Cidade Velha. De Praia porque, embora nascido em Santiago de Cuba, Alfonso todos os fins-de-semana pegava na espingarda, sua segunda pele arrumada na capital de Cabo Verde, e metia-se aos caminhos, regressando sempre com numerosas peças que ofertava aos amigos ou ele mesmo cozinhava para pantagruélicas petiscadas comunais que honravam as manhãs de domingos e, por norma, se afundavam de barriga cheia ao fim da tarde. Que era homem de convívios este fiel admirador dos barbudos da sua ilha: castrista indefetível, o cubano juntava o respeito pelos heróis da Sierra Maestra ao visceral repúdio das políticas ianques que tinham o poder instalado em La Habana como inimigo a abater. Abominava os exilados em Miami e, ainda que ele fosse também mais um que partiu de Cuba, detestava que o confundissem com os “reacionários”.

Era de facto diferente o seu caso. Alfonso viera para Cabo Verde nos bons tempos da cooperação, quando Cuba era tida por luz dos países de África apodados de progressistas, fosse tal qualificativo o que verdadeiramente pudesse ser: quando foi quando chegaram a África médicos e técnicos militares cubanos. Tércio y Tércio, engenheiro, viera nessa leva, apaixonou-se por crioula, com ela casou e teve filhos. Em Cabo Verde ficou, cubano sempre, castrista sempre, mas preso por amor à mulher encontrada no arquipélago. Criou empresa e, por agora, era vê-lo a melhorar estradas e acessos na Ribeira Grande de Santiago.

Portanto, Tércio y Tércio era caso à parte, não identificável com as “muñecas” que se serviram de estudantes cabo-verdianos de passagem na cooperação cozinhada por Cuba em tempos velhos, armadilhando-os nos seus braços em troca de um casamento que as tirasse da ilha de José Marti. Arribadas a Cabo Verde, passados uns anos, abandonavam os maridos, buscavam novo curso à sua vida. Nem identificável com aqueles que, nas ilhas do Cabo Verde, achavam pretexto para se distanciarem de uma revolução que lhes prometera paraísos, mas de que afinal desgostavam: vinham, metiam-se em negócios nada limpos, despiam a farda revolucionária e revelavam quanto ocultaram nas origens.

Hábil caçador, este cubano refutava que a mortandade causada entre os galináceos pudesse pôr em causa a sobrevivência da espécie.

- Reproduzem-se com facilidade. Deixá-los por aí, eras prejudicial na agricultura: não escapava semente. Até deviam darme gracias.

Para provar a tese de que a multiplicação desregrada trazia prejuízo para o arquipélago, recordava o havido na vizinha ilha do Maio: as galinhas do mato sobrepovoaram de tal modo o interior daquela ilha quase plana, a coberto do arvoredo que fornecia madeira para fazer carvão, que assolaram Porto Inglês – invadiram casas, lojas, tornaram-se praga, acabando por ser abatidas em massa. 

Num aparte, explicou ele:

- Trouxeram da Guiné a galinha-do-mato e não pensaram que em Cabo Verde não há predadores. Foi por isso que, mais tarde, tiveram de importar um, vindo de Cuba – yo!


III

O terreno de caça escolhido pelo cubano sempre foi a vasta achada para lá de Salineiro, onde a plantação de acácias se deita a perder de vista: uma barbaridade. Quem não identifique a árvore maligna, ao ver o estendal pensará que se trata de algum pomar, tal as acácias se alinham a distâncias regulares. Tratou-se de terrível maldade cometida contra o país nos anos seguintes à declaração de independência, quando se sonhava com os “morangos do nordeste”: é que acácia (a chamada “acácia americana”) é infestante daninho, chupa do solo toda a água nele existente. Contribui para reforçar o sequeiro. Ainda se as plantassem em zonas de tarrafo… Mas não. Disseminaram milhares de acácias ao longo de quilómetros, num desperdício de dinheiro que mais empobreceu Cabo Verde.

- O autor deste crime devia ser enforcado numa acácia!, costumava barafustar Emerenciano que, por vezes, acompanhava Alfonso nas deambulações venatórias.

- Cala-te, respondia o cubano. E justificava: o plantio foi feito com boas intenções. Tinham a ideia de que, pondo árvores, adoçavam o clima e combatiam a desertificação.

- Com acácias? Deixa-me rir. A acácia é pior que o eucalipto. Mas o eucalipto, apesar disso, ainda serve para a indústria de celulose e para a carpintaria. A acácia para nada serve: quanto muito, dá carvão. Não é por acaso que em grande parte do mundo as arrancam e as consideram uma praga.

De facto, a estupidez do plantio de acácias reforçou a seca e ainda mais erodiu os solos. Dói o coração ver o massacre perpetrado contra a natureza, um massacre que teve antecedentes no século XIX, quando o Governador Martins decidiu colocar as primeiras daquelas árvores. Se Martins deu mau exemplo, no século XX abusaram. E merecerá homenagens quem tiver a ousadia de as mandar arrancar e substitui-las por marmeleiros e figueiras ou, porque não?, alfarrobeiras que por aqui se terão adaptado bem, fazendo fé na toponímia do município: lá está Alfarroba, na falha que se avista em Chã Gonçalves.

É no mato de acácias que as galinholas se escondem, voando em bandos por cima das árvores quando o sol se encaminha para poente – saúdam o aliviar dos calores que abrasam a achada, do mesmo modo que as cabras, as vacas, os burros e os porcos se animam com a promessa de sombras.

O sol a pino, vertical sobre a achada, não assustava Tércio y Tércio. Fazia-se ao empedrado ou aos trilhos tumultuosos do leito seco das ribeiras, conduzindo a sua pick-up pintada de camuflado como se fosse militar – era um assumir da sua antiga identidade de oficial do exército de Cuba. A camuflagem, contudo, tinha aqui um efeito contrário: não a disfarçava, dissolvendo-a na paisagem, antes a anunciava ao longe. “Lá vem o cubano!”, gritava-se mal se avistava à distância a estranha carripana. E Alfonso deliciava-se em dar nas vistas.

Ninguém estranhava suas andanças, mesmo no forno das tardes. Preparava-se o cubano para zarpar da Cidade Velha, já sentado ao volante da carrinha, quando avistou Emerenciano atravessando a rua do Calhau. Reclamou-o:

- Ei, quieres vir para Belém? Emerenciano aceitou o convite: “Não tenho nada para fazer esta tarde. Porque não? Vamos nisso. Vou contigo”.

Emerenciano acomodou-se no lugar do pendura. Alfonso avançou para Caniço e meteu para S. João, buzinou à passagem pela loja de Djon-Djon e trepou o monte até à bifurcação para Chã Gonçalves. Depois, foi o árduo caminho para os altos que encerram, nas suas dobras, a pacatez de Belém.

De súbito, correndo no trilho, duas galinholas atarantadas procuraram refúgio entre as acácias. O cubano travou. Com agilidade insuspeitada em sexagenário, Alfonso estendeu o braço para trás do banco onde a caçadeira dormia. Levou a arma à cara e, ainda dentro da viatura, apontou pela janela aberta. Desfechou. Um estrondo abafou o susto de Emerenciano, que quase saltou no assento, enquanto uma galinha-do-mato tombava sobre a terra seca e dura e a sua companheira levantava voo, assustada.

- Porra, cubano! Fiquei surdo. Estou surdo. Disparar dentro da carrinha não lembra ao diabo, xiça!
Alfonso riu-se e foi buscar o troféu tombado na secura. Emerenciano saiu da pick-up, agitando a cabeça, a polpa das mãos a espremerem-se sobre os ouvidos.

- Raio de macaco, este cubano. É mesmo maluco.

- Non puedes ser soldado, muchacho. Te susta un simples disparo! Si combatieras en la guerra…

Alfonso Tércio y Tércio tinha agora pretexto para desenrolar memórias da sua guerra de Angola, onde integrara, como oficial de engenharia, o corpo expedicionário ido de La Habana em socorro do MPLA. Estivera no Cuito Canavale, na ofensiva sobre o Huambo.

- Isto foi só uma cartucheira. Si audiras disparo dos canhões como era? Te emierdavas...

- Eu não sou soldado, não estou numa guerra. Convidaste-me para vir contigo a Belém, não foi para andares por aí aos tiros.

Emerenciano estava irritado. Mas tinha de fazer das tripas coração e aguentar. A alternativa era regressar a pé à Cidade Velha, quilómetros à torreira, que automóveis a passar por ali eram coisa mais que rara. Rosnando pragas, foi-se acalmando. Para isso servem os raios e coriscos.


IV

Do boteco de Xinda Veiga, em S. Domingos, à cândida esplanada de Mosquito Horta, o churrasco de galinha-do-mato é pitéu cobiçado. Aquela carne, rija e fibrosa, agarrada ao osso, faz as delícias de muita gente e justifica deambulações por estradas difíceis – estradas é uma maneira de dizer. Como se diz que o cubano é fornecedor das churrascarias. É boato. Ninguém alguma vez o topou em tal tráfico que, de resto, nem sequer é crime. A galinhola não está em extinção, não há quem reclame por licenças de caça nem há taxas para esta atividade. Nenhuma regulamentação existe.

Não faltam especialistas nesta caça que não precisa de ser furtiva. Certo é que Alfonso gostava de patuscadas, de convívios com amigos, cerveja e grogue a correr. E assados, até porque os cubanos são exímios no churrasco. Fama têm-na. 

Alfonso Tércio y Tércio, certa feita, congregou roda de amigos para pachorrenta tarde de domingo em Achada de S. Filipe, à saída da cidade da Praia, por Monte Vaca. Vieram uns vinte à requisição. E o cubano esmerou. Queria fazer prova da habilidade islenha, nisto rival de filipinos no tratamento de um bom porco assado.

Suíno bem calibrado comprado dias antes, ainda teve tempo para rondar as ruelas rurais da Achada. Foi morto, com facada certeira, na véspera da comezaina. Guinchou e sangrou, patas amarradas e espadeirantes, antes que se fizesse a sorte de queimar as cerdas, precedente do desmonte das miudezas. Tudo a cargo do cubano, que só ele teve alforria para matador, talhante e assador.

Ficou a carne a esfriar de um dia para o outro, no pela-manhã lá estava Alfonso a cavar um buraco de mais de dois metros de comprido para, no fundo, espalhar carvão e lenha que alimentassem quanto bastasse o demorado braseiro que se anunciava. Para espeto, escolheu vara aparentemente apropriada: lenho grosso e extenso que, enfiado do traseiro à focinheira do bicho, iria permitir rolar o cerdo sobre o baile das chamas. Tudo de acordo com os preceitos, explicou ele:

- É assim que se hace en Cuba.

Sentou-se à beira da fossa ardente. Com impressionante calma avisou:

- Vai levar cinco horas a assar. Necessito que, de meia em meia hora, alguém venha aqui rodar o espeto para que o porco fique bem tostado. E isto cansa.

Voluntários não faltaram - entre eles, Emerenciano que, nessa tarde, acabara de conhecer o cubano, início de alongada amizade. 

Alfonso estava deliciado: ensinava arte a cabo-verdianos. De certeza que nenhum catequista se sentiria mais feliz a ensinar doutrina a efebos. O cubano estava no oitavo céu. A mão direita, descaída ao nível do joelho, segurava o espeto e, num alarde de força, rodava o pau e a sua carga.Com languidão. Com perícia. E a atmosfera emprenhava-se de um odor salivante: cheirava a crestagem de carne gordurosa. O rosto de Alfonso falava por si – do seu deleite, do seu quase orgasmo.

Em dado momento, um estoiro: o varapau que servia de espeto, cansado do suíno que aloirava ao lume, ardido de chamas e de fumo, rompeu-se e despejou o porco sobre o braseiro. Atiçadas pelo derrame e pela gordura pingante, as labaredas cresceram, afugentando tentativas de salvamento. A carcaça condenou-se a torrar até ficar carvão.

O cubano olhou o desastre. Triste e sem palavras. Levantou-se com pesar, mirou a cova aberta por suas mãos. E despediu-se do manjar. Só Emerenciano se pronunciou:

- Pronto! Ficámos a saber como se assam porcos em Cuba!

Alfonso mirou-o de alto abaixo, com o espesso sobrolho alteado. Depois, aproximou-se do rioleiro e deu-lhe um abraço. Ficaram amigos.


V

Entre o desastre da Achada de S. Filipe, na Praia, e a arcabuzada de Belém onze anos transcorreram e cimentaram amizade entre dois homens que, oriundos de pátrias diferentes, Cidade Velha reuniu: cinco séculos após alfa, a histórica urbe mantinha-se globalizante. Perdera muito do seu umbigo oceânico que a prendera e soltara do ventre do tempo. Já não era porto, nem visitada pelas armadas, os veleiros do antigamente já não se arriscavam para fundear perto da eminência dos escolhos e recifes atemorizadores como quando o mar era o acesso único à cidade encaixada no vale que muralhas de rocha vulcânica defendiam e isolavam. Os séculos talharam estradas pelas encostas e corroeram-lhe a memória da origem – fixaram a Ribeira Grande ao chão da ilha, deceparam-na dos seus braços marítimos, mas não destruíram o cadilho: continuou a ser o laboratório onde se amalgamavam fluxos diferentes que convergiam para uma mesma massa de diferenças, para uma comunidade onde o elo comum era o diverso. Esse continuava a ser o milagre, o mistério e o encanto da Cidade Velha: a sua origem e o seu destino.

Alfonso viera de Cuba. Emerenciano de Portugal. Cidade Velha os juntara. Cada qual com o seu percurso e a sua identidade, consideravam-se hoje ambos tão cabo-verdianos como os cabo-verdianos. E ambos assumiam Cidade Velha como bandeira. Estranho vazadouro aquele… Talvez lugar nenhum do mundo tivesse igual condão para reunir o antes disperso e com ele construir os elos de uma corrente.

Emerenciano e Alfonso tinham o crioulo como o esperanto do seu diálogo. Deformavam-no, reconstruíam-no, reformulavam-no, tropeçavam na sua gramática e inventavam um crioulês no qual se entendiam. A língua da terra, tal como no início dos tempos, continuava a refazer-se, mercê dos contributos que ali desembarcavam e desprezavam cristalizações. Por isso mesmo era crioulo e recusa do definitivo, matéria-prima e plástica, húmus sempre renovado e renovável.

Contrastavam. Alfonso era guerreiro, reivindicava o seu passado militar e a espingarda era parte de si mesmo como os braços, as pernas, a boca ou o sexo. Emerenciano proclamava-se pacífico e pacifista, mas a companhia do cubano era-lhe tão prestimosa como o bode o é para a carraça. Completavam-se. Tornavam-se indispensáveis.

Homem de armas, o cubano disparava por alimento. A bala não lhe fazia sentido se não trouxesse provisão. Em Angola tomara o vício da caça. Em Santiago de Cabo Verde, a galinhola valia-lhe agora de antílope ou de pacaça. E, sempre que podia, metia-se pelos matagais de acácias e espinheiros em busca de alvos. Torcia o nariz quando Emerenciano o admoestava: que as galinhas do mato eram bem comunitário e, como tal, a comunidade deveria ser ressarcida do abate; que à caça só tinha acesso quem pudesse comprar arma e munições, pelo que a melhor fortuna deveria ajudar os desfavorecidos – defendia o licenciamento dos caçadores, tanto pela necessidade de preservar as espécies, tanto pela justeza da redistribuição das sortes. Mas, dizendo-se embora socialista, Alfonso Tércio y Tércio chegando aí, estancava: era socialismo a mais, dizia.

Não abdicava do seu exercício. Todas as semanas empunhava a caçadeira e internava-se por achadas e cutelos. Dois ou três disparos, recolhia os despojos e regressava feliz, repartindo depois a carnuça pelos amigos. Mas nem sempre os azimutes certificavam o seu mapa. Exemplo foi uma vez que a caçadeira desfechou sobre cabrito, o que deu protesto dos aldeãos. Desculpou-se: pensava que o caprino não tinha dono, que também houvesse por ali “cabrito do mato”. Haver, havia, mas não era o caso. 

Na verdade, tudo se perdoava a El Predador. Popular, acamaradava pelos lugares, gostava de ajudar no que podia – um conselho, um alvitre, a reparação de um artefacto. E não recusava farra para que fosse convidado. Era o “cubano”, personalidade famosa desde a Malagueta até Monte Tchota.

Porém, certo dia, o caldo quase entornou devido a erro de montaria. Foi pelas bandas de Santana. Alfonso abandonara a carrinha e galgou uma barreira. Tinham-lhe dito que no vão de uma ribeira seca vadiavam cabritos do mato, dos verdadeiros.

- Cabritos do mato, de verdad?, inteirou-se.

Que sim. E ele que ansiava estrear-se na modalidade! À distância, divisou enganadora mancha, atrapalhada pelas ramarias na hora de lusco-fusco. Não era mais alta que uma cabra, de pelagem parda escura. Levou a arma à cara, apontou. Disparou. O vulto tombou. Era um jumentinho, pequenote como são os asininos de Cabo Verde. Os olhos dóceis e sofridos no estertor ainda viram o cubano aproximar-se e estarrecer.

Desde então, Emerenciano, para o arreliar, atazanava-o quando ele regressava das caçadas:

- Ei, Predador, encontraste hoje burros do mato?

Tércio y Tércio respondia com sorrisos. Era bravo apenas nas caçadas.

sexta-feira, 8 de março de 2019

[0054] Nuno Rebocho, mais uma história

Narrando histórias de bichezas, o autor recorda “vinganças” de búfalos feridos e delas retira ensinamentos para o dia-a-dia dos humanos. A reter. 


O BÚFALO FERIDO

Trazia a espingarda presa às mãos. Deitada. A espingarda era menino ao colo. O caçador caminhava no passo saltitante dos caçadores, a espingarda dava afoiteza. Apesar disso, as cobras eram de recear.
Neste jeito, o homem deu de caras com o búfalo. Estancado na savana, o animal ostentava hastes e pastava. E tinha a modesta importância de ser búfalo.
O caçador alçou a arma. Perfilou a mira no enquadramento. Contou até três sem tremura. E disparou. Todavia, o búfalo, ruminando ervas, mexeu-se no momento decisivo.
O tiro de morte ficou em ferida. O ruminante levantou-se sobre os traseiros, escoicinhou, corrida doida mato adentro. Aos berros.
Ainda o caçador apostou no trote atrás da fera. Debalde. O búfalo escamoteou-se entre a floresta de ramos. Era corrida condenada, roupas rasgadas nas sebes, carne ferida nos picos herbáceos. Patinou nas lânguas.
Bem que barafustou o homem do tiro mal dado. Bem que se ufanou, entre dois golos de álcool, da pontaria. E por meia dúzia de dias, o búfalo foi tema para lupanares e cervejarias. Depois, assunto morto, que história de caça fica episódio.
O búfalo, dilacerado no couro e nas carnes, não se refez com duas lambidelas de língua milagreira. Remoeu a mastigar vinganças: histórias do mato dizem que são assim os irracionais. E não esqueceu. Plantou-se no local do drama, ciente de que o criminoso voltaria ao lugar fatídico. Até que o caçador retornou à savana.
O búfalo lá estava. Cheirou-lhe a cútis, cornos em baixo. Atirou-se em galope. Marrou. Surpreendido, o caçador foi atirado ao ar, deu uma cambalhota. Morreu sobre o capim. O búfalo ainda lhe aspirou o corpo estendido antes de se internar no mato.
- Pobre homem. Que mais curta é a memória dos caçadores do que a daqueles que por eles foram perseguidos.

terça-feira, 5 de março de 2019

[0053] Um felino de Nuno Rebocho

O autor recolhe na vida animal fábulas que alimentam o comportamento dos humanos e busca nelas conclusões para o dia-a-dia: por exemplo, o que em situações extremas deve valer mais, o amor à liberdade (implique o que implique para se obtê-la) ou as comodidades de um estar adaptado à sujeição que lhe retira essa liberdade? Tudo tem vantagens e inconvenientes… Mas a liberdade é a liberdade.


O GATO MOISÉS

O gato foi achado em noite de chuva. Estava ferido, encharcado, esfomeado. Tomaram-no ao colo, levaram-no para casa, alimentaram-no. E deram-lhe nome doméstico: Moisés, em memória das circunstâncias do achamento.
Ao desvelo dos donos, Moisés ganhou banhas, gato anafado, ronronante e dorminhoco. Luziu o pêlo. Dias felizes aqueles em que, entre pele e ossos, carne e gordura se concentraram. 
Refez forças e com elas a perceção da disciplina caseira: o caixote da serradura, a comida em horas certas, o chamamento dos donos, a obrigação de sofrer carícias e de ronronar. Habituado à rua, à força de não gostar, Moisés indispôs-se.
Rondou a janela, cismou por detrás dos vidros a saudade da liberdade. Esfregava o focinho nas vidraças. E, assanhado, começou de revirar as unhas às festinhas dos donos. Teve castigo de chinela.
Havia, em sua índole, natural gratidão. Ingrato não era. Mas não nascera animal doméstico.
Certo dia apanhou a porta de casa aberta e esgueirou-se de um salto. Desceu as escadas em corrida e retomou a rua. Miou em apelo às gatas: “estou de volta”.
Reconheceu terrenos, assenhoreou a rua que era aquela, efetivamente, a sua casa. Bem que os donos deram pela falta e o procuraram de porta em porta:
- Moisés, bche, bche, bche, Moisés.
Moisés, nada.
À noite trepou aos telhados. Já sem nome. Miou trinados lúgubres, eróticos. Mostrou-se às gatas. Uma veio. Mirou-lhe o pelo listrado, cores fulvas e brancas. Acariciou-o com o focinho. Lambeu-o. Miaram em conjunto.
De súbito, horror! A gata deu um salto. Descobrira o estigma da vida doméstica, da civilização, estampado para sempre no corpo do suspirante. Era capado. 
Numa fúria, sovou-o. E o gato que fora Moisés, fugiu. Ferido, em sangue, escondeu-se debaixo de um caixote. E linguou os arranhados.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

[0049] Nuno Rebocho, mais uma fábula

Mais uma das suas fábulas cínicas com mostras de moralista aprendiz. É uma história contada a quantos nunca desistiram de ser meninos.  


O CAMALEÃO IMPREVIDENTE

Alapava-se o camaleão à parede. Branco, da cor da cal. Trepava cortinas de chita, ficava amarelo, ficava azul, às bolinhas. Refugiava-se nos manjericos, era verde. Ou tijolo como o vaso. Ou indefinível como a terra vegetal.
Neste defeito mimético, o camaleão era, especialmente era, a alegria da criançada. Os putos perdiam-se em deleite, horas e horas, basbaques ao bicho sem cor própria.
Chegara a casa dias antes. Trouxera-o o pai, fanático ecológico: “nada de flites, de banzés, de mixórdias químicas que só fazem mal”. Mata-moscas davam prejuízo, loiça partida. Fitas de melaço eram inestéticas - sórdidas. Havia os métodos eléctricos. Mas com a energia tão cara... Mais os estoiros de grelhadura que complicavam com os nervos. Optou pelo camaleão.
Libertado em casa, desenrolou a cauda e encostou-se a parede forrada de papel. A primeira mosca expôs-se ao alcance. O camaleão disparou a língua, capturou o insecto. Engorgitou-o. Os putos bateram palmas. O pai levou as mãos ao cinto, puxou as calças de contentamento.
- Viram? Então? Dá ou não dá resultado?
Vinham amigos admirar o animaleco. A sala era “ah” de espantos ao maravilhoso de mudar de cor conforme o poiso. Compreendida a razão das honras, o camaleão caprichava: tingia-se de cores alheias com máxima perfeição.
As crianças, o pai, recompensavam-lhe as proezas. Chegavam a apanhar, com as mãos em concha, as moscas que invadiam a sala de jantar. E embevecidos, alimentavam-lhe a gula.
Assim, rodeado de carinhos e atenções, o camaleão engordava. Mudava de poiso, mudava de cor. A família chegou a baptizá-lo: deram-lhe o crisma António, e, era curioso, parecia que ele atendia ao nome.
Numa manhã, farto de uma bambinela onde se instalara, o camaleão desceu as cortinas, correu pelo chão rumo a um vaso do lado oposto da sala. Verdíssima avenca encostava-se aí a alva cana. Ficara o camaleão acastanhado, da cor do soalho. Perfeito, como de costume.
A mulher-a-dias, de espanador em punho, entrou para limpar o pó. Não lobrigou diferenças entre bicho e chão. Pôs-lhe o pé em cima. Esborrachou-o.
António morreu. Na família houve choro e ranger de dentes. 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

[0046] Nuno Rebocho: mais uma das suas fábulas cínicas

De Nuno Rebocho, mais uma das suas fábulas cínicas: desta vez, é o peru que se prepara para as quenturas do forno, em dia de festa.


O PERU BÊBADO

Pelo Natal, tempo de festa. O peru aproximou-se da cerca, esticou o pescoço, enrubesceu e enfunou as rémiges. “Peru velho”, disse-lhe o dono. A ave envaidecida, avermelhada de gozo, agitou-se:
- Glu, glu, glu-glu-glu.

Foi isto na segunda-feira. O dono desenrolhou garrafa de medronho, encheu um copo e despejou-lhe o líquido, áspero e violento, goela abaixo. Encharcou-lhe o papo, as vísceras. O peru estremeceu, mais quente. O capoeiro esfumou-se em névoas, paisagens de sonho. Sentiu-se liberto como se as redes caíssem, o mundo agigantado à volta. Uma sede de bons sentimentos, um desejo de fraternidade pesou-lhe no bucho. Em arrepios, terno e lânguido, soluçou:
- Glu, glu, glu-glu-glu, glu, glu-glu.

Terça-feira. O peru despertou em tonturas, dor de cabeça horrível. Da festa, certamente. No imo, apesar de bico empastado, o bicho sentia-se feliz com o dono que destino lhe dera em sorte. Gratidão imensa, vinda do fundo, dos intestinos, do papo, do baço, do fígado, inundou-o. O dono fazia-o fruir das delícias, ele comparticipava da festa.
Nesse meio da tarde, aproximou-se o homem da capoeira e o peru não se conteve. Veio à rede. Meneou-se. Abriu-se em leque. Rubro de paixão, recitou-lhe um aplauso:
- Glu, glu, glu-glu-glu.
Com método, gestos repousados e calculados, o homem tomou a garrafa, novo copo de medronho para a goela do galináceo. O bicho inchou, transportado às florestas americanas. Cambaleou o passo até ao centro do galinheiro, aberto a todo o pano. Glorioso, imenso. Sublimemente grato, desbarrundou euforia e vaidade em alexandrinos:
- Glu, glu-glu, glu, glu, glu, glu-glu-glu-glu-glu-glu.

Terceiro dia, quarta-feira. O animal acordou mal disposto, cabeça pesada, pálido, com cólicas. Feliz. O universo já não se confinava à acanhada miséria das quatro redes da capoeira.
Arrastou-se, aproximou-se da vedação, asas alisando a terra, barbas em baixo. O dono sorria-lhe, ele alegrou-se. Na mão do senhor, lá estava a garrafa.
O homem de novo despejou a aguardente num copo e entornou-a pela goela do peru. O bicho dilatou as penas. O bicho cantou:
- Glu, glu, glu.
O dono pegou-lhe pelo pescoço e, de um golpe, decepou-o. Depois de depenado, passou pelo forno e foi servido no jantar da festa. Com castanhas. 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

[0037] Nuno Rebocho e mais uma das suas fábulas

À mistura com poesia (muita), crónicas que via desfiando (já dois livros publicados - “Estórias de Gente” e “Estravagários” – e mais dois anunciados – “Quebra-Canela, aventuras & desventuras de um portuga nas ilhas do Cabo Verde” e “Estrada da Beira”), romances e novelas, estudos diversos, o autor concentrou-se num conjunto de contos “para quantos continuaram a ser meninos” a que deu o nome de “fábulas cínicas”. Esta é uma delas.



O CÃO E O SAPO

Mal o sol rompeu, ergueu-se o cão. Aspirou profundamente o ar fresco, abanou a cauda, acocorou-se nas patas de trás e ladrou. Depois, corresposta ao apelo da brisa, vadeou a quinta em rompantes. Assustou a pardalada. Agitou o galinheiro. Despertou os coelhos. O lobo de alsácia era - ficava evidente - dono e senhor. O ladrar afugentava, o vulto amedrontava, o correr aterrorizava.

Diariamente, o sol nascia e tudo o que voava aprontava-se para bater a asa às arremetidas do bicho. Tudo o que tinha pernas aprestava-se a fugir às ofensivas do canino. O animal, apreciado o sabor amplo do poder, saltava, trotava, latia às nuvens. E resfolegava.

O lobo de alsácia impunha-se. Apenas a quem lhe dava a comida e o acorrentava, ele obedecia. Então agachava-se, lambia-lhe as mãos. Aos outros, aos desconhecidos ou no porte inferiores, era demo.

Ora, naquela madrugada, o cão - na praxe de rei no quintal - uma vez mais arremeteu. E correu. Outra vez saltou. E assustou. Triunfante do garbo e da presença, reladrou. Silêncio amachucado, arrepiado, se fez na herdade. Nem vivalma se revelava, acoitada onde pudesse.

De súbito, insólito de impossível, um coaxar irrompeu detrás de um montículo. O bicho estancou, incréu. Espetou orelhas a certificar-se do que ouvia. O coaxar repetiu-se. Entesou o rabo, farejou. Atento, pata adiante, pata atrás, ginasticado, avançou. A espreitar. Para lá do monte, um charco. E ali, descuidado, entretinha-se um sapo em brincadeiras na água estagnada. Indiferente a terrores, mirou o canzarrão. Este aproximou-se. Fez-se o batráquio mais pequeno, mas permaneceu atascado, quieto e tímido.

- Xó, não me ouviste? Atreves-te a ficar, a desafiar-me?, falou com voz de baixo. Mas o sapo, amedrontado, não achou resposta que não sumido coaxo: croac.

O cão recebeu-o no focinho, como ofensa. Se irritado estava, mais ficou. Abriu a bocarra de dentes pontiagudos para o tomar entre as maxilas. O desgraçado não soube o que fazer. No pânico, prestes a despedir-se da vida, coitado, urinou-se.

Foi um esguicho salino e breve o que se entornou pelos olhos do inimigo. Suportando com dor o acre da urina, o cão deu de cego. De rabo entre as pernas, ganindo, ganindo, o lobo de alsácia pôs-se em corrida, de encontrões às árvores.

Inesperadamente salvo, o sapo respirou fundo e comentou para os seus botões:
- Chiça. Olha se eu não tivesse medo...

sábado, 29 de dezembro de 2018

[0031] Nuno Rebocho, contador de histórias. Desta feita com focas, para os amigos e leitores em geral, como prenda de final de ano

Nuno Rebocho caracteriza-se com contador de histórias ao ponto de, por isso mesmo, surgir como personagem em romances de Vasco Resende (“Antónia, nome de guerra”). Os animais que, em muitos aspectos, personalizam os humanos, são matéria que ajudam a criticar comportamentos.

Ver mais três contos de Nuno Rebocho, AQUI, AQUI e AQUI

AS FOCAS MILITANTES

Estavam as felizes em sossego, dispostas no areal. O caçador veio. Laçou-as. Foca a foca, cada delas foi capturada, metida em gaiolas com destino ao circo. E sempre acontece em tais desgraças: os anfíbios torceram-se, contorceram-se, guincharam, viraram-se de borco, gritaram, espadanaram na areia. Era a resistência inútil dos já vencidos, apostados em que o vizinho tope que sucumbiram com honra.

Das costas de África as trouxeram para cá. De humilhadas, cruzaram o oceano no bojo de cargueiro. Sofreram dos balanços, enjoaram do percurso.

Em Lisboa despejadas: tiradas dos porões, içadas por guindaste, depositadas no cais onde comprador atento as enxergou à cata de defeito que justificasse desconto na encomenda. E atiradas para um camião, lá foram à descoberta de mundo novo, vida nova.

Assim passaram ao cenário como vedetas. Na tenda, foram libertadas - como quem diz: dilatou-se o espaço do calaboiço. O tratador recebeu-as de bastão em punho, a prepará-las para a educação das boas maneiras. As focas lá tiraram curso. À bastonada e com nacos de peixe.

Vinha todos os dias o tratador à tenda. Ali aprenderam as focas a soerguer-se sobre a cauda, a agitar os bigodes, a equilibrar bolas na ponta do focinho, a jogá-las em números de habilidade. E com algum custo, muita dificuldade, muita zanga do tratador se fez o amoldamento ideológico dos focídeos.

Durou meses o exercício. Semanas intensas de trabalho. No receio da dor, as focas aprenderam os gestos, os jeitos, as partes, os movimentos de conjunto. De cor e salteado. Não foi de um dia para o outro, não senhor. Mas aos poucos. Lentamente.

Por fim, o espetáculo. As focas figuravam nos cartazes - eram atração. Fizeram-se coqueluche. Foram aplaudidas. Os bichos descobriram o segredo da sobrevivência: empinadas, abriam as bocarras ao peixe que o tratador lhes atirava. E batiam palmas. 

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

[0019] Nuno Rebocho e um grilo de boa voz

NUNO REBOCHO, Queluz, Portugal, 1945
Jornalista e poeta, o autor nunca menosprezou a ficção, como o demonstra o seu romance “A Segunda Vida de Djon de Nha Bia”(além de outros arremedos ainda na carteira). Durante dez anos esteve recolhendo histórias, minimilizando-as, reduzindo-as ao mais simples. Esta é um dessas historietas apodadas de “fábulas cínicas” e dedicadas “a quantos mantêm capacidade de ser meninos”. 


O GRILO CANTADOR

Enfiado na lura, o grilo cricrilava todo o santo-dia extenso cantar. Do emaranhado de estevas e salgueirinhas ressaltava um quase chilreio a entrelaçar-se nos odores da paisagem. Minúsculo e preto, o invertebrado cantava de natural alegria pela abundância do pasto e no chamamento da fêmea - taciturna e muda, gélida como as fêmeas que se prezam de boa educação e muitos preconceitos.

Quem passava nas redondezas sustinha-se. Ficava por uns momentos embevecido, de ouvido à escuta, na admiração daquele som agudo e intermitente, recheado de felicidade. Mas o grilo, à cautela, mal pressentia anormalidades no sussurro conhecido dos arbustos, remetia-se ao silêncio. E as cores das plantas, mesmo o vermelho queimado do chão, como que emurcheciam.

Era, pois, previdente o grilo. Por vezes, escapava-se para fora da toca a mirar o sol. Todavia, pelo sim pelo não, não fosse o diabo tecê-las, regressava ao casulo e retomava a cantoria. Nesta placidez, o bicharoco vivia, comia, refastelava-se, fazia necessidades, perpetuava a espécie, dormia e, sobretudo, cantava.

Não há felicidade que sempre dure. É o que se diz. De facto, uma bela tarde, o azar tocou-lhe para se cumprir o destino fatal dos grilos. Estava ele baladando como era costume, quando o acaso quis que por ali perto passasse um garoto. Ouviu-lhe o cricri. Parou. Orientou o ouvido. O bichito teve pressentimento de perigo. Quedou-se no buraco. Sem fugir.

Porém, sabido era o catraio. Conhecia os hábitos da caça, tivera tempo para calcular onde se acoitava o brinquedo. De gatas, as mãos separaram trevos, ervilhacas, ervas, apalparam o terreno; o rapazinho, paciente, procurou-lhe o poiso. Ao resto de uns minutos, encontrou-o.

Pegou numa palhinha. Enfiou-a no orifício, pôs-se a rodá-la. E o grilo, coitado, sentia o ariete tocar-lhe ao de leve a carapaça, atingir-lhe o rabo com arrepiantes cócegas. Todo estremecia, rodopiava. Não se conteve e cantou. Ao ritmo da música, à cadência das festas, as pernas mexeram-se, retiraram-no da toca.

O garoto vencera no ardil. Carinhosamente, tomou-o entre dois dedos, colocou-o na palma da mão, mirou-o satisfeito. E guardou-o dentro de uma caixa de fósforos que consigo levava e na qual fizera dois furos para o animal respirar.

Pobre do grilo preso! Triste a escuridão da caixa fechada! O cantar não tinha a mesma vivacidade. Que importava ao garoto se lhe escutava a melodia? Levou-o para casa, arrumadinho em cima de uma prateleira. Todas as noites, o rapaz levava-lhe um naco de alface borrifada de água. E o grilo cantava, cantava. Em recompensa, o dono fazia-lhe cócegas no rabo. Com uma palhinha.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

[0009] Nuno Rebocho, um contador de fábulas, com a "Fábula do carneiro filósofo"


NUNO REBOCHO, Queluz, Portugal, 1945
Jornalista e poeta, com um romance e dois livros de crónicas já publicados, Nuno Rebocho é igualmente contista. Nos trabalhos ainda “na gaveta”, há um conjunto de “fábulas cínicas”, crítica de costumes e de comportamentos. Como esta historieta de um rebanho alentejano… 
Continuamos, assim, a repetição dos contistas já publicados em "Contos da tinta permanente". Na próxima terça-feira, teremos de novo Nicolau Saião.

FÁBULA DO CARNEIRO FILÓSOFO

Eram todos merinos e seguidores do chefe. Dava gosto vê-los, de lindos, lindos: o chefe balia num méhé feito de tremuras enquanto o chocalho tilintava o compasso do trote. O resto do rebanho lá vinha atrás, passinho à semelhança do do guia, no coro monótono - méhé. Vigiado por modorrento serra d’aires, o rebanho era feliz.
Quase. Porque não faltava - era fatal - quem destoasse, a ovelha ranhosa como por cá se diz. Tinha chifres espirais, retorcidos, mal-educados à definição e conveniência dos costumes: era o desalinhado carneiro filósofo, espírito anarca. Era o punk. Tinha vício tremendo: protestar. E hábito contumaz, pernicioso: contestar.
Entre dentes, o sujeito desalinhava no meio do coro tranquilizante dos balidos simétricos: “Cambada! O que o chefe faz, todos fazem. Sem imaginação, sem inspiração. Merecem o nome que têm. Carneiros, carneiros todos!”
Deste jeito se passavam dias. O chefe adiante, o rebanho atrás, passo certo, balido de mando, balidos de obediência, concêntricos, monocórdicos, satisfeitos. E o pastor, encostado ao cajado, pernas enfiadas nas safonas, dormitava. O carneiro filósofo protestava.
Lógico que, nas circunstâncias, fosse olhado de lado. Os pares ficavam à distância, não coisasse o mal espalhar-se e manchar honras feitas desde o berço, segundo sábia tradição passada de pais para filhos, de avós para netos. A irritação do filósofo crescia na razão direta do isolamento. Passou a ser o da cauda, o último, passo trocado, rebelde ao praxismo.
À hora do sol-pôr, depois de tangidas trindades em igreja próxima, o rebanho a trote a caminho do ovil. Vinha o guia, como sempre, na dianteira, assistia-se à ordem: logo atrás, em fila, o rebanho no passinho sempre igual, sempre certinho, balido uníssono nas respostas ao chefe. Obviamente: o último de todos, o carneiro filósofo, esse, resmungava.
Eis senão quando o chefe tropeçou na vereda, despenhou-se em cambalhotas na vala direita que a bordejava. Outro, outro e outro, carneiro após carneiro, o rebanho atirou-se, disciplinado, aos tombos, em mortais, em piruetas, para o fosso. O carneiro filósofo tasquinhou. Regougou. Guinchou:
- Cambada, cambada! Para onde vai o chefe, vão todos. Vejam só. Tem isto algum jeito?
E zás, contestatário, atirou-se em força para a vala do lado esquerdo.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

[0003] Nuno Rebocho estreia-se no "Contos da tinta permanente" com a "Fábula do touro sem cornos"

Como se indicou no post anterior, "Contos da tinta permanente (Ctp)" sairão às terças e sextas. Porém, neste início de actividade contista, dado o interesse suscitado pelo blogue, vamos comer a esta primeira semana um dia em ambos os casos, retomando-se o calendário de terças e sextas a partir da próxima.

NUNO REBOCHO, Queluz, Portugal, 1945
Jornalista, escritor e poeta, foi criança para Moçambique onde cresceu e estudou, continuando os estudos em Lisboa. Preso pela PIDE em 1967, esteve nas masmorras salazaristas durante cinco anos. Foi dirigente político, monitor de história sindical e assessor de sindicatos. Chefiou a redacção da RDP-Antena 2, foi adjunto do Ministro da Habitação, Obras Públicas e Transportes do VI, VII e VIII Governo Constitucionais. Em conflito com a administração da RDP, demitiu-se e partiu para Cabo Verde onde foi assessor da Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santiago. Actualmente a viver em Portugal. Tem um romance e dois livros de crónicas publicados e um terceiro no prelo.


FÁBULA DO TOURO SEM CORNOS

Era o orgulho da lezíria. Foi bezerro e depois cresceu.

Bonitote, roliço, pescoço lançado e negro, bons quadris, o bicho fazia a vaidade da vacada turina. Maioral e campinos tinham-no como menina dos olhos. O agricultor - o reservatário, como então se dizia - falava dele nas conversas de café. Na vila. 

E a manada babava-se no gozo do espécimen. Reverenciado, iam para ele os melhores bocados e já lhe previam um bom cruzamento com fêmeas de registo no Livro Genealógico.

Mas, como se foi desenvolvendo, notou-se-lhe atroz anomalia: era mocho. Os chifres não medravam, tal se fossem comidos pelos ratos ou ficado esquecidos no útero materno.

O bonitote tornou-se vexame, vergonha da casta, desespero do cercado. Os outros, seus irmãos de raça, quando o bicho se fez adulto, miravam-no do alto, marravam-lhe a escorraçá-lo para lugares recônditos, menos expostos às vistas dos passantes.

Já adulto, o animal definhava no pudor de si mesmo, do defeito ridículo que para sempre o minimizava. Um após outro, os manos cornuptos eram levados ao redondel onde cumpriam, orgulhosos, o dever de touros de corrida. E não voltavam à lezíria: seguiam diretos para o matadouro.

Até que um dia, um dos que heroicamente marchara para a arena regressou - ferido, com febres, cansado, vergado ao peso de faena de gala. Contou na prado as agruras.

No cérebro dos bravos perpassou a imagem do seu destino, do castigo que homem lhes fabricara. E dele ficava isento - via-se - o touro sem cornos, o único que, pelo defeito, não dava para marradas, para deslizes sob o capote, para alvo de bandarilhas, para pegas de caras. E de desprezado o anómalo se converteu de novo em animal do dia. Entre os seus.
Foi a revolta. À uma, os animais atiravam-se, de cornos em riste, contra o tronco das árvores no afã de quebrar os pedúnculos ósseos que lhes ressaíam da cabeça. Partiram-se hastes, desarmaram-se frontes. A vacada ficou desenfeitada.

No dia seguinte, ao meter ao campo, o maioral coçou a nuca. Nunca visto o espetáculo insólito o do lado de lá do aramado. E grande o prejuízo que tudo perdido de um cuidado estrénuo agora inútil. A solução, única: falou com talhantes e fechou negócio.

De madrugada, toda a manada seguiu para o matadouro.