sexta-feira, 30 de novembro de 2018

[0014] Prémio de Literatura Oceanos

Serão anunciados no próximo 7 de Dezembro, no Palácio da Ajuda (Lisboa), os vencedores do Prémio Oceanos, edição de 2018. Este Prémio de Literatura em Língua Portuguesa será anunciado pelo Ministério da Cultura.

[0013] Concurso de histórias bascas

Com prémios de 1000 euros para o vencedor e 500 euros para os finalistas a Zenda Autores, Libros y companhia com o patrocínio da Iberdrola promove um concurso de histórias bascas para textos originais e inéditos, escritos quer em euskera (língua do País Basco) ou quer em castelhano na extensão mínima de 100 caracteres e máxima de 1000 palavras. A selecção de 5 histórias concorrentes deverá ser publicada na Internet (blogue, facebook ou twitter) de 28 de Novembro às 12H00 até 9 de Dezembro às 23H59. Para este concurso foi designado um júri constituído por seis elementos: Txani Rodríguez, Ana Malagón, Iban Zaldua, June Fernández,  Ander Izagirre y Mikel Urkiaga. Mais informações devem ser pedidas a contacto@zendalibros.com.

[0012] De novo Deodato Santos, desta feita "Guardador de gotas de água"

DEODATO SANTOS, Lagos, Portugal, 1939 
Na serra algarvia, o lacobrigense Deodato Santos molda as palavras com a mesma ousadia com que ataca e esculpe a dureza da pedra. 

A ousadia que o levou a desafiar o antigamente e a buscar no exílio a liberdade para manejar a palavra em consonância com o seu pensamento (e sentimento)

Sobre o escultor e escritor Deodato Santos, ver AQUI




O GUARDADOR DE GOTAS DE ÁGUA

Escultura de Deodato Santos
Nem todas foram especiais como aquelas vindas congeladas de um glaciar alpino, ou como aquelas recolhidas de um amanhecer de nevoeiro em Serpa, ou como aquela que deslizou pelo vidro que me separava do exterior quando sobre ele com um dedo fiz um traço horizontal.
A maior parte foram gotas vulgares.
Como aquela que emitiu sinais de luz - que se quisessem dizer alguma coisa apenas seriam compreendidas pela eternidade - do ponto exacto matemático que situava o centro do seu máximo instável equilíbrio esférico, a sua efémera rotundidade, a sua curta prenhez e o seu rápido parto.
As recolhi, as guardei.
As entregarei a um derradeiro viandante, desapaixonado plenipotenciário incumbido de enigmáticos desígnios.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

[0010] Depois do carneiro filósofo de Nuno Rebocho, temos hoje as moscas filósofas de Nicolau Saião


NICOLAU SAIÃO, MONFORTE, 1946
Com o pseudónimo de Nicolau Saião, reparte a sua reforma entre Portalegre e Arronches. Poeta e escritor, é a segunda vez que visita este portal.


ANÍBAL E AS MOSCAS FILÓSOFAS

Estava há sete semanas naquele quarto de hospital e principiava a chatear-se.
Todos o tratavam muito bem - alguém lhe emprestara mesmo uma telefonia – mas o certo é que começava a sentir-se ligeiramente aborrecido.
Não era que a enfermeira não lhe trouxesse a comida quentinha a horas certas, nem que o dr.Varela lhe faltasse com a sabedoria médica. Não. Toda a gente era realmente muito simpática, mas ele principiava a ficar um bocado… frio.
A partir da terceira semana começara a segredar para si próprio ideias que apanhava ao calhar. E, caso estranho, pensava, pensava muito, pensava como nunca havia pensado: pensamentos gordos, mesmo suculentos, que lhe deixavam na boca um sabor esquisito e galopante, como se fossem comboios molengões andando sobre carris podres. Não estava a gostar nada daquilo.
Além do mais, de noite o quarto enchia-se de vagas correrias, vagas risadas…
Virou-se para o outro lado.
O pára-choques apanhara-o exactamente em cheio no sítio onde as costelas dizem adeus ao estômago. Acordara depois, de súbito, numa cama descompassada com formigas e abelhas a passearem para baixo e para cima a toda a altura do esqueleto, suaves, venenosas. A cabeça muito bem entrapada repousava virtuosamente sobre uma almofada branca. Em volta, tanto quanto se lembrava, uns fantasmas abusadores deambulavam num leva-traz peculiar zurzindo o ar ambiente com uma lengalenga que nem por ser em voz sumida era menos estarrecedora.
Depois foi-se habituando.
O dr. Varela chegava ao crepúsculo, ou ao nascer do sol, com os óculos muito calmos e mudos a apontar na sua direcção: pegava-lhe no pulso, rosnava sabiamente, abanava a cabeça e, antes de sair, escrevia qualquer coisa num papel. Ele por momentos pensava que o dr. Varela tinha um pacto secreto com o seu aborrecimento, mas está-se a ver que era só impressão.
A enfermeira, como é natural, vinha mais vezes. Tinha um nome impronunciável, olhava aos ziguezagues e era magra e penugenta. Cheirava a relógios bem lubrificados e nunca se ria. Também não devia ter de quê, pensava ele, mas tudo aquilo lhe fazia nervos.
A enfermeira era ferozmente cumpridora. Uma boa profissional: puxava-lhe a roupa para o pescoço se o topava destapado, metia-lhe pastilhas entre os beiços, a horas correctas ajudava-o a assoar-se e a fazer mais coisas. Enquanto ele teve os braços em gesso, deu-lhe a papa com um clarão de bondade nos sobrolhos perfeitamente assustador.
O termómetro que sempre transportava no bolsinho da bata constituía uma realidade imprópria.
Saía depois de o olhar com satânico interesse a enfermeira.
Antes de fechar a porta a sua mão traçava no ar um círculo cinzento e agressivo
A esposa visitava-o três vezes por semana, mas isso já não o arreliava por aí além.
Arte de Nicolau Saião
Ficara imunizado por dezassete anos de matrimónio. Já estava mais que familiarizado com o seu narizinho de coruja egoísta e com a sua voz que a passagem do tempo tornara rascalhante. Limitava-se a ficar calado, com os olhos bem fixos no meio do tecto. Às quatro da tarde a esposa abandonava a partida e ia-se com o seu passo de flamingo de noventa e oito quilos. Ele fingia que não era nada com ele.
Foi no dia em que lhe tiraram as últimas ligaduras que ele viu as moscas.
Eram duas, esvoaçando solenemente na meia sombra com um ar tranquilo e respeitável. Tinham o aspecto de moscas de sociedade, talvez já grisalhas dos anos e ele por uns segundos raciocinou que até nem se espantaria se lhes visse bengala e gravata.
Durante vários dias as moscas não lhe largaram o quarto.
Eram moscas filósofas. As suas conversas, num tom muito fino e discreto, eram do mais alto interesse e centravam-se sobre os grandes temas do universo: o Homem, o Tempo, a Infância, todas as coisas – enfim – que horrorizam ou causam prazer, o Mundo, o Amor e a Morte. Um nunca mais acabar de problemas maravilhosos e inextrincáveis.
A ele o que mais o danava era o seu arzinho superior, como fingindo que nem por ele davam: como se ele fosse um retrato decrépito que para ali estivesse. E, no entanto, elas bem sabiam que ele não perdia pitada das conversas, com os punhos o mais possível cerrados.
Começou a detestá-las. Precisamente no dia em que lhe tiraram o gesso da perna direita.
No entanto, por orgulho, nunca tentou imiscuir-se nas suas conversas. Ainda não descera tão baixo.
Na tarde seguinte, tarde de visita conjugal, as moscas falaram do Ser e das metafísicas, Falaram também das estrelas e seus prestígios, dos barcos à deriva nos mares antigos, dos astrónomos e dos reis dos países afastados. Ele sofria tanto que foi com renovado alívio que viu a cara-metade abandonar a cena da sua tortura.
Com pasmo e raiva estendeu o braço e abriu a telefonia. Adormeceu ao som dum fadinho picado em surdina.
E sonhou sonhos esquisitos de defuntos e bosques imensos, de catedrais e aranhas.
Acordou ao crepúsculo. Em cima da mesa estava uma bandeja com vitualhas. Nada se ouvia. Nem…o voar de uma mosca.
As moscas tinham partido. Durante o seu sono pela tarde fora, tinham decerto voado através da janela entreaberta buscando diverso poiso, concerteza sempre debatendo entre si as coisas belas e incríveis. E ele sentiu de súbito vontade de partir tudo, pois já lhes havia jurado p’la pele: quando estivesse de posse de todos os seus meios físicos, ele lhes diria. Haveria de as ensinar com decisão: ficariam, até, sem vontade de tasquinhar o mais apetitoso bocadinho de excremento.
Mas o certo era que haviam partido. Inexoravelmente. E nada, pensou, poderia fazer!
O crepúsculo, cinematográfico e devorador, entrava aos gargarejos para dentro do quarto. Do outro lado da porta uns passos conhecidos crepitaram com energia.
O dr. Varela entrou, com os óculos muito serenos.
Com uma branda emoção a palpitar progressivamente na garganta ele deu por si a notar, cheio de deliciosas comichões, que a cara do dr.Varela era mesmo, mesmo parecida com a da mosca mais faladora.  

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

[0009] Nuno Rebocho, um contador de fábulas, com a "Fábula do carneiro filósofo"


NUNO REBOCHO, Queluz, Portugal, 1945
Jornalista e poeta, com um romance e dois livros de crónicas já publicados, Nuno Rebocho é igualmente contista. Nos trabalhos ainda “na gaveta”, há um conjunto de “fábulas cínicas”, crítica de costumes e de comportamentos. Como esta historieta de um rebanho alentejano… 
Continuamos, assim, a repetição dos contistas já publicados em "Contos da tinta permanente". Na próxima terça-feira, teremos de novo Nicolau Saião.

FÁBULA DO CARNEIRO FILÓSOFO

Eram todos merinos e seguidores do chefe. Dava gosto vê-los, de lindos, lindos: o chefe balia num méhé feito de tremuras enquanto o chocalho tilintava o compasso do trote. O resto do rebanho lá vinha atrás, passinho à semelhança do do guia, no coro monótono - méhé. Vigiado por modorrento serra d’aires, o rebanho era feliz.
Quase. Porque não faltava - era fatal - quem destoasse, a ovelha ranhosa como por cá se diz. Tinha chifres espirais, retorcidos, mal-educados à definição e conveniência dos costumes: era o desalinhado carneiro filósofo, espírito anarca. Era o punk. Tinha vício tremendo: protestar. E hábito contumaz, pernicioso: contestar.
Entre dentes, o sujeito desalinhava no meio do coro tranquilizante dos balidos simétricos: “Cambada! O que o chefe faz, todos fazem. Sem imaginação, sem inspiração. Merecem o nome que têm. Carneiros, carneiros todos!”
Deste jeito se passavam dias. O chefe adiante, o rebanho atrás, passo certo, balido de mando, balidos de obediência, concêntricos, monocórdicos, satisfeitos. E o pastor, encostado ao cajado, pernas enfiadas nas safonas, dormitava. O carneiro filósofo protestava.
Lógico que, nas circunstâncias, fosse olhado de lado. Os pares ficavam à distância, não coisasse o mal espalhar-se e manchar honras feitas desde o berço, segundo sábia tradição passada de pais para filhos, de avós para netos. A irritação do filósofo crescia na razão direta do isolamento. Passou a ser o da cauda, o último, passo trocado, rebelde ao praxismo.
À hora do sol-pôr, depois de tangidas trindades em igreja próxima, o rebanho a trote a caminho do ovil. Vinha o guia, como sempre, na dianteira, assistia-se à ordem: logo atrás, em fila, o rebanho no passinho sempre igual, sempre certinho, balido uníssono nas respostas ao chefe. Obviamente: o último de todos, o carneiro filósofo, esse, resmungava.
Eis senão quando o chefe tropeçou na vereda, despenhou-se em cambalhotas na vala direita que a bordejava. Outro, outro e outro, carneiro após carneiro, o rebanho atirou-se, disciplinado, aos tombos, em mortais, em piruetas, para o fosso. O carneiro filósofo tasquinhou. Regougou. Guinchou:
- Cambada, cambada! Para onde vai o chefe, vão todos. Vejam só. Tem isto algum jeito?
E zás, contestatário, atirou-se em força para a vala do lado esquerdo.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

[0007] Pepita Tristão oferece-nos "Sombras e sonhos"

PEPITA TRISTÃO, Castelo de Vide, Portugal, 1951
Pepita de Alegria Sanchez Tristão Cardoso é uma veterana da imprensa regional portuguesa que, ao dia a dia das notícias, acrescenta o mister de contista permitindo-lhe o repassar para a novela muito do que perpassa diante dos seus olhos. E são contos poderosos…


SOMBRAS E SONHOS

O dia amanheceu cinzento, tal como o meu espírito.
Por entre um nevoeiro cerrado, impróprio de um Verão que se preza, diviso a tua sombra.
Chamo-te, mas não olhas para trás. Prossegues num passo apressado.
Por mais que estugue o meu, seguindo na tua peugada, quase te perco, de cinzento vestido, entre a névoa que teima em não abrir.
Corro, mas mesmo assim, a distância mantêm-se até que paras junto do quiosque onde diariamente comprávamos o jornal – o único que às 7. 30 da manhã já está aberto.
Aproximo-me, enquanto folheias um vespertino e tento puxar-te pelo braço para te chamar a atenção.
A minha mão encontra o vácuo. Tu não és senão a minha vontade de te trazer de novo à vida.
Envergonhada, pago o jornal que folheaste.
O meu coração sente-se ainda mais oprimido, enquanto, como uma autómata, me dirijo ao café onde tantas vezes tomámos o pequeno-almoço, juntos, ainda impregnados de vestígios da fusão dos nossos corpos, que nem o duche rápido conseguia apagar.
Sento-me numa mesa, solitária, frente à enorme vitrina que me separa da rua pardacenta.
Em vez da habitual bica, peço ao rapaz ensonado que me atende, meia de leite e uma merenda mista – o teu pequeno-almoço habitual – e, enquanto aguardo, folheio maquinalmente o periódico, sem atentar nas notícias.
Ainda mal recuperada, penso na visão que tive e que não posso deixar repetir-se. Parece que a dor da tua perda em vez de se atenuar com o tempo, acentua-se e se torna cada vez mais insuportável, a ponto de me enlouquecer.
Passo mais uma página, e chego às centrais.
Frente aos meus olhos, ainda viçoso, surge um pequeno botão de rosa, vermelho-sangue, preso a um cartão branco. “Parabéns. Amo-te muito!”
Fico sem reacção. Não tenho coragem para pegar no cartão, onde a tua letra inconfundível, me fascina, pois estou certa que se tentar, se esfumará, também por entre os meus dedos.      
- A senhora faz anos hoje?
Volto a mundo real e olho para o empregado que espera, de bandeja na mão, que eu desvie o jornal.
Ele apercebe-se do meu espanto e aponta para a rosa.
- Não é hoje o seu aniversário?
Impossível. Isto será mesmo real? Pego no cartão, a medo...
- Anos? Eu?
- Desculpe... não pude deixar de ler... parabéns...
Olho para o alto da página do jornal. Segunda-feira, 20 de Junho ... Não há engano.
É hoje o meu aniversário.

segunda-feira, 12 de novembro de 2018

[0006] "O sobretudo", por Deodato Santos

DEODATO SANTOS, Lagos, Portugal, 1939 
Escultor, radicado no Algarve, Deodato Santos é um “poeta arrependido”. 

Na Amadora, com Joaquim Benite, marcou a sua presença com uma poesia forte e o seu trabalho escultórico admirado por Artur Bual – memórias que deixaram sinais nos Cadernos Andaime. 

A sua vibração poética transparece em Barão de São João onde o artista rumina as suas andanças pela Europa em anos de antes de Abril de 74 (Paris e Genebra).


O SOBRETUDO

                              para Joaquim Benite

É sozinho que se veste?
No Inverno é mais difícil ao dobrar-me para atar os atacadores das botas.
O que eu perguntava era se é você próprio quem compra a roupa que veste?
Não compro roupa. Visto aquela que os outros deixaram de usar ou por ter passado de moda ou por terem morrido.
A roupa reflecte sempre o estado de espírito de quem a usa. Se você não usa roupa própria é porque não ousa assumir uma personalidade própria...se a tiver. 
A roupa como tudo o que se põe em cima do corpo transmite uma marca social e tem uma função de chamariz para acasalamento.
Não só isso. Há pessoas que aguentam a mesma roupa durante um espaço de tempo mais prolongado e outras que precisam de uma mudança constante, mesmo de várias vezes ao dia, conforme as alterações humorais,  conforme a renovação anímica de que estejam necessitadas.
Bem visto.
No seu caso, que anda sempre de sobretudo, o que representa? Se não é um chamariz será um repulsivo? É uma armadura? Para não deixar entrar o exterior e não deixar sair o interior?
É uma questão de eficiência. Já reparou o tempo da sua vida gasto a decidir a roupa que vai vestir? No fundo já não sabe qual é o seu estado de espírito
e é a roupa que o vai definir. Já não veste a roupa em função do seu estado de espírito mas é a roupa que vai determinar esse estado de espírito. Já calculou o tempo que perdeu a procurar a etiqueta da roupa interior? A atenção posta nessa tarefa mesquinha vai condicionar a sua atitude para o resto do dia. Deixou de ser um homem que sai do sono e do sonho para tornar-se um homem utilitário.
Não calculei não. Mas calculo, pelo que acaba de dizer, que não traga nada por debaixo desse sobretudo. E a sua mulher deixa-o sair assim?
O que tem?
O que tem? É ridículo o ar que tem?
Acredito que sim. Como não me posso ver a mim próprio, admito perfeitamente que para si possa ter um ar ridículo.
E não se importa de ter um ar ridículo?
Não, e como não tenho hipótese de formar opinião própria aceito sem contestar nem tomar partido, todas as outras. Repare que todos nós somos ridículos aos olhos de outros, à luz das estéticas, das racionalidades e das nacionalidades que cada um tenha.
Não se olha ao espelho?
Só quando faço a barba.
Na sua casa de banho não tem um espelho de corpo inteiro?
Só um espelho para ver a barba quando me barbeio.
Qual é a sua nacionalidade?
A minha nacionalidade? A minha nacionalidade é o meu quarto. A que propósito vem essa pergunta sobre a minha nacionalidade?
Porque me está a parecer um homem estranho.
E quando é estranho não é da nossa nacionalidade.
Pois.
E, está-se mesmo a ver, é-se de nacionalidade inferior.
Pois claro.
Pois claro.
E a sua mulher não lhe diz para se vestir de um modo mais estético?
Se calhar diz, diz, mas esqueço-me… e os olhos também.
Os olhos também, o quê?
No meu espelho só vejo barba quando me barbeio e os olhos. Os olhos para ver se me reconheço. Se não me reconhecer saio, se me reconhecer não saio.
Faz bem. Reconhece, ao reconhecer-se, que não tem ar digno para sair.
Nem mais.
Admiro-me muito que haja alguém que o convide?
Ainda bem. Convidar para quê?
Para tanta coisa, para conviver socialmente.
Entre pessoas da mesma nacionalidade.
Claro. E não sofre por ninguém o convidar?... terei percebido um instantâneo pestanejar irónico nos seus lábios impassíveis? 
Pestanejar é com as pestanas.
Eu sei. Mas como nomear a principal característica do pestanejar, o instantâneo, quando tal acontece na zona labial?
Não sei. Aí está um campo em que devia aplicar a mesma atitude estética que usa para o vestir.
Que está a dizer com isso?
Além da sua formação estética para com a maneira como se escolhe e combina a roupa com que se encobre e esconde o corpo, podia dedicar-se à estética literária e encontrar a palavra que defina o mexer dos lábios, correspondente ao pestanejar das pestanas.
E que ganhava com isso?
Ganhava o acesso a uma outra área social.
Quem lhe diz que não convivo já, de maneira até muito chegada, com artistas da palavra escrita e de outras expressões, daqueles ao mais alto nível do reconhecimento público? E que não opino com saber e elegância sobre obras e estilos?
Claro. Que ingenuidade a minha. Como poderia um homem como você, não andar nas vernissages, nos autógrafos, nos beijinhos.
Entre pessoas da nossa nacionalidade não se anda de sobretudo dessa maneira. 
Olhe que este sobretudo pertenceu a uma pessoa muito considerada que foi aceite, melhor dizendo tolerada, pela vossa nacionalidade.
Não me escapou a qualidade do tecido e o corte desse sobretudo. É sobretudo por isso que lhe fica mal, pelo contraste que faz consigo. As mangas tapam-lhe as mãos e a bainha pouco lhe falta para ficar debaixo dos tacões dessas botas rústicas. Para além do mais não é uma peça de roupa que se use agora em pleno verão.
Tenho frio. O frio interior não se explica.
Sou capaz de até aceitar isso. Sim concordo, plenamente. Imagino a existência de uma espécie de frio inextinguível, pronto a tolher-nos em qualquer altura menos esperada. 
Pessoas há que o sentem a cada momento.
No seu quarto? Pessoas daqui? Da sua nação?
Pessoas de todas as nações destes quartos.

sábado, 10 de novembro de 2018

[0005] CONTOS FALADOS (1) "A invenção da água"

Um conto líquido, aquático e sobretudo etílico, de Mário-Henrique Leiria (de CONTOS DO GIN-TONIC), dito magistralmente por Mário Viegas. Ver AQUI

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

[0004] A estreia de Nicolau Saião no Ctp com "História natural"

NICOLAU SAIÃO, Monforte, Portugal, 1946
De seu verdadeiro nome Francisco Ludovico Cleto Garção. adoptando o pseudónimo em homenagem às suas raízes alentejanas, Saião foi meteorologista antes de ter sido nomeado responsável pela parte cultural da Casa José Régio, em Portalegre. Tem vasta colaboração literária e artística em jornais nacionais e regionais.

Escritor, poeta e artista plástico, agora reformado, reparte a sua vida entre Portalegre e Arronches. 

O conto que publicamos está integrado no livro "Antologia Fantástica Europeia", publicado em Paris. 


HISTÓRIA NATURAL
                                               
Quando a tia pobre e amada lhe morreu espapaçada, como um figo podre, debaixo dum camião de transportes, Hipólito disse com as lágrimas a escorrer pelas bochechas: “É chato e dramático. É triste! Mas, se pensarmos bem… é natural. Sim, é natural!”.

Olhei-o sem muito espanto. É que eu já conhecia, desde os bancos da escola, o espírito eminentemente positivista do meu amigo, a sua visão racional. Hipólito era um verdadeiro realista e eu peço licença para dizer que filosofava como poucos. Como muito poucos.

A firma de que era sócio, num dia enevoado de Maio faliu com todos os matadores. Tal acontecimento causou nos meios apropriados um pânico considerável. Hipólito, contudo, limitou-se a franzir o cenho ao de leve: “É trágico. É mesmo perturbador! – disse – Mas, se pensarmos bem…é natural. Sim, é natural!”.

Estávamos, nessa altura, no seu gabinete de administrador. Hipólito, pensador de fino quilate, cérebro privilegiado, dava-me a honra de muito me considerar, embora eu fosse um simples empregadote sem mais valia. Foi então, recordo-me, que ouvimos um súbito alarido. Eu precipitei-me para o corredor. Hipólito seguiu-me calmamente. Fora o comendador Branco Madeira, presidente da Assembleia Geral da empresa. Caíra pela janela. Se calhar de propósito. Do décimo segundo andar.

Olhei lá para o solo, com os olhos arregalados. O comendador jazia como jazem os que se piram pelo décimo segundo piso: parecia uma mosca esfrangalhada e nojenta. Já o rodeavam muitas pessoas.

Por detrás de mim, Hipólito resmungou mansamente: “Que coisa! É extremamente constrangedor. Mas…é natural. Penso que é natural!”. Limpou uma lágrima furtiva, rápida, com a ponta do dedo mindinho. Ofereceu-me um cigarro, que aceitei ainda com as mãos a tremer.

Passados quatro dias, o seu filho mais novo ao praticar alpinismo numa montanha dos arredores caiu para dentro dum rio que lhe ficava na base e engoliu cerca de oitenta litros de água. Calculei eu. Finou-se, evidentemente. Senti muito a morte do moço. Hipólito, de negro vestido, atrás do caixão inclinou-se levemente e rosnou para a minha orelha. Baixinho, mas eu ouvi bem o que sensatamente me disse. Inclinei a cabeça e continuámos a participar sem mais alardes naquele acto tristíssimo e trágico mas, como o meu amigo referira, perfeitamente compreensível. Hipólito era assim. Lógico, um matemático ou um astrónomo em potencia. Eu apreciava-o muito.

Em Agosto fomos passar as férias, juntos, para uma praia elegante. A mulher de Hipólito e o filho que lhe restava foram juntar-se a nós três dias mais tarde. Ao quarto dia, depois de ter levado a banca do casino à glória, a excelsa senhora defuncionou-se sem o querer, abatida a tiro por um croupier de maus bofes e nervoso.

Desenho de Nicolau Saião
Quando lhe levaram a notícia, Hipólito ergueu-se de repelão da cadeira de verga onde repousava. Tremia ligeiramente. Respirava um pouco apressadamente. 

Pouco a pouco foi-se acalmando. Um véu de tristeza – eu acho que era um véu – nublava-lhe viuvamente o olhar cinzento. “Ora que maçada! É um problema chatíssimo! No entanto, no entanto…pensando bem, foi natural! – disse com inteligência.

Olhei-o com admiração. O espírito e a calma filosófica de Hipólito cada vez me atraíam mais inapelavelmente.

Ao voltarmos para casa, num carro funerário, o filho de Hipólito teve um percalço: chorava desabaladamente, contorcia-se, gemia duma forma que metia pena. Ao estorcer-se num gesto mais largo, sem que o pudéssemos deter saiu pela porta de vidraça descida (fazia cá um calor!). Dei um grito! Que querem, não me contive. O carro funerário parou, toda a gente desceu. 

Hipólito, por uns momentos breves, contemplou longamente o que restava do filho como se acreditasse poucochinho. Eu mordia os dedos e as unhas.

Um largo suspiro se escapou do peito largo, profundo, de Hipólito enquanto ele com bondade me
ajudava a afastar dos despojos. “Já é azar! É um azar tremendo! Mas, vendo bem as coisas, sopesando o caso…não deixou de ser natural!”.

Olhei-o mais uma vez com admiração fraterna.

Passou-se uma semana. Durante esse tempo não vi o meu velho companheiro de infância. Aliás, desempregado, passei o tempo a ler. Filosofia. De vez em quando tomava um cálice de conhaque. A bebida, segundo ouvi dizer, dos fortes e dos sabedores. 

Ao oitavo dia, biblicamente, vi Hipólito. Tinha ido visitar-me. Demos um longo, cordialíssimo aperto de mão. Hipólito vinha anunciar-me que eu fora colocado por sua intercessão num emprego de futuro. “Com calma, Jagodes, tudo se consegue. Tudo se compõe naturalmente!”. Acenei que sim, emocionado. Entretanto, dirigimo-nos ao elevador.

Hipólito foi o primeiro a entrar. Azar dele. O primeiro e o último, aliás. Eu não entrei, pude aperceber-me que o elevador não estava lá! Só o buraco, negro e misterioso, esperava com maldade. Hipólito despenhou-se, soltando um grito em estilo “terror inglês”. Um grito meio grasnado.

Com o coração a bater um pouco desci as escadas, devagarinho e com cautela. Muitas escadas. Abri a porta do elevador, na cave e contemplei o Hipólito.

Hipólito gemia suavemente. Quando deu por mim, quando os sentidos algo abalados lho permitiram, começou a gemer mais alto. Quase a gritar!

“Socorro, Jagodes! Vai chamar um médico depressa…senão morro. Sinto-me já a morrer. Chama-me um médico, um sacerdote… Jagodes!”.

Perdera a calma. Até suava. Tinha um bocado de espuma no queixo.

Dei uma gargalhadinha. Desatei mesmo a rir em pequenos solavancos. Filosoficamente.

Que querem? Estava a achar tudo naturalíssimo.

[0003] Nuno Rebocho estreia-se no "Contos da tinta permanente" com a "Fábula do touro sem cornos"

Como se indicou no post anterior, "Contos da tinta permanente (Ctp)" sairão às terças e sextas. Porém, neste início de actividade contista, dado o interesse suscitado pelo blogue, vamos comer a esta primeira semana um dia em ambos os casos, retomando-se o calendário de terças e sextas a partir da próxima.

NUNO REBOCHO, Queluz, Portugal, 1945
Jornalista, escritor e poeta, foi criança para Moçambique onde cresceu e estudou, continuando os estudos em Lisboa. Preso pela PIDE em 1967, esteve nas masmorras salazaristas durante cinco anos. Foi dirigente político, monitor de história sindical e assessor de sindicatos. Chefiou a redacção da RDP-Antena 2, foi adjunto do Ministro da Habitação, Obras Públicas e Transportes do VI, VII e VIII Governo Constitucionais. Em conflito com a administração da RDP, demitiu-se e partiu para Cabo Verde onde foi assessor da Câmara Municipal da Ribeira Grande de Santiago. Actualmente a viver em Portugal. Tem um romance e dois livros de crónicas publicados e um terceiro no prelo.


FÁBULA DO TOURO SEM CORNOS

Era o orgulho da lezíria. Foi bezerro e depois cresceu.

Bonitote, roliço, pescoço lançado e negro, bons quadris, o bicho fazia a vaidade da vacada turina. Maioral e campinos tinham-no como menina dos olhos. O agricultor - o reservatário, como então se dizia - falava dele nas conversas de café. Na vila. 

E a manada babava-se no gozo do espécimen. Reverenciado, iam para ele os melhores bocados e já lhe previam um bom cruzamento com fêmeas de registo no Livro Genealógico.

Mas, como se foi desenvolvendo, notou-se-lhe atroz anomalia: era mocho. Os chifres não medravam, tal se fossem comidos pelos ratos ou ficado esquecidos no útero materno.

O bonitote tornou-se vexame, vergonha da casta, desespero do cercado. Os outros, seus irmãos de raça, quando o bicho se fez adulto, miravam-no do alto, marravam-lhe a escorraçá-lo para lugares recônditos, menos expostos às vistas dos passantes.

Já adulto, o animal definhava no pudor de si mesmo, do defeito ridículo que para sempre o minimizava. Um após outro, os manos cornuptos eram levados ao redondel onde cumpriam, orgulhosos, o dever de touros de corrida. E não voltavam à lezíria: seguiam diretos para o matadouro.

Até que um dia, um dos que heroicamente marchara para a arena regressou - ferido, com febres, cansado, vergado ao peso de faena de gala. Contou na prado as agruras.

No cérebro dos bravos perpassou a imagem do seu destino, do castigo que homem lhes fabricara. E dele ficava isento - via-se - o touro sem cornos, o único que, pelo defeito, não dava para marradas, para deslizes sob o capote, para alvo de bandarilhas, para pegas de caras. E de desprezado o anómalo se converteu de novo em animal do dia. Entre os seus.
Foi a revolta. À uma, os animais atiravam-se, de cornos em riste, contra o tronco das árvores no afã de quebrar os pedúnculos ósseos que lhes ressaíam da cabeça. Partiram-se hastes, desarmaram-se frontes. A vacada ficou desenfeitada.

No dia seguinte, ao meter ao campo, o maioral coçou a nuca. Nunca visto o espetáculo insólito o do lado de lá do aramado. E grande o prejuízo que tudo perdido de um cuidado estrénuo agora inútil. A solução, única: falou com talhantes e fechou negócio.

De madrugada, toda a manada seguiu para o matadouro.