terça-feira, 23 de novembro de 2021

[0124] Falando de poesia, em prosa


POEMAS E GAVETAS

Texto de Carlota de Barros


Regresso sempre ao mesmo quarto da poesia, aos poemas de Eugénio de Andrade. Também moro em  poemas de outros poetas, poemas que amo, poetas que admiro. Escrevo poemas ou pensamentos nas margens dos seus textos onde me demoro numa serena quietude reconquistada. São pequenos textos escritos a lápis, por vezes com letras tão miudinhas que mais tarde, dificilmente consigo decifrá-las. Mas escrevo ... escrevo o que me aflige ou me encanta.

Demoro-me mais tempo nos livros de Eugénio de Andrade quando busco claridade, silêncio ou a flor da água que me deslumbra.

Tenho várias gavetas onde guardo os poemas sagrados de muitos outros poetas eleitos. Mudo constantemente de gaveta na busca incessante de outras mais excêntricas. São gavetas e gavetas, livros e livros, poemas e poemas que mais amo.

Se abrires uma gaveta das mais excêntricas, encontrarás poemas dos mais extravagantes: que voam como as aves, mergulham no mar e regressam cheios de alegria, a cheirar a rosas bravas e a alfazema, que cantam a vida, o ardor da brisa acariciando lábios pintados de desejo ou a vibração da alma num corpo em fogo, poemas que despem o mar com os lábios e regressam numa erupção de ondas em desalinho. 

Verás que as gavetas já são poemas. Moro nas gavetas onde demoro o tempo de ler os poemas mais silenciosos, os que sabem a bagas de romã, a claridade dos campos de papoilas ou de tulipas cor-de-rosa, a sonhos de amor, a milheirais floridos ou a trigo maduro. Bastam-me esses instantes.

Entra comigo numa gaveta-poema e sentirás palpitar de deleite o coração, o corpo inteiro que não cessarão de pulsar.

Mas volto sempre a uma das gavetas excêntricas dos poemas de Eugénio de Andrade, das que voam sobre a neve e poisam, suavemente, nas minhas mãos abertas, como se fossem pedir abrigo na casa onde afinal moram, onde vivem tempos de liberdade, excentricamente desarrumados, extravagantemente ociosos, mas em silêncio, silêncio de chuva miudinha na vidraça, silêncio de flores a abrirem-se nas auroras de dias claros, silêncio da lua nova a romper num céu azul, silêncio de um pôr-do-sol sobre o mar dourado, silêncio dos poetas, da poesia, silêncio dos sonhos de amor e de beijos ao luar.

Os poemas poisam, docemente, nas minhas mãos que beijo com a ternura da água, cântaros que cantam a alegria das chuvas nas nossas ilhas.


Carlota de Barros

Lisboa, 30 de Setembro de 2020

Retrato de Eugénio de Andrade, por Emerenciano - in correiodoporto.pt