Mais um escritor angolano, Luciano Canhanga, convive em Contos da Tinta Permanente. Outros virão, prometemos.
Os sul-africanos que, vezes sem conta, violavam com os seus invisíveis aviões o território do país tinham abrandado as investidas. Dizia-se mesmo que se tinham retirado definitivamente ou que tinham sido corridos pela tenacidade das FAPLA. A rádio, única naqueles anos, dava pouca informação e os meninos como Jacinto, mesmo sendo curiosos e perguntando ou lendo quase sobre tudo, tinham um deficit de informação sobre o que era a guerra, como e onde se desenvolvia e quem eram os actores mediatos e imediatos. Apenas palavras de soar bem ao ouvido e de significação oculta preenchiam o seu vocabulário do dia-a-dia.
Os noticiários que se seguiam ao “Angola Combatente” começavam sempre com comunicados das forças governamentais sobre a situação política e militar no KK onde os fantoches e seus aliados, no dizer dos jornalistas de então, eram derrotados minuto a minuto, mas onde também, na retirada, acabavam por matar civis: mulheres grávidas, crianças e velhos. Apenas os jovens que estavam nas gloriosas estavam fora das atrocidades dos violadores kifumbes.
Apesar da saudade dos pais que se tinham mudado de Luanda para o Munhango, as férias do fim de ano lectivo tinham corrido bem a Jack e aos tios. Os primos estavam todos felizes porque tinham ganho novas brincadeiras. O natal tinha sido maravilhoso e todos os meninos tinham ganho muitos presentes que o tio Wandisyapo comprou na loja do Sô Venâncio.
Wandisyapo e a irmã, Naxitula, tinham combinado que Jacinto regressaria a casa acompanhado do primo Bernabé, enquanto o irmão mais novo, Xendivali, ficaria com o tio. Lito que estava adoentado voltaria a casa mais tarde.
No dia em que Jacinto e Bernabé receberam a notícia de morarem juntos na vila de Munhango, quase não dormiram. A curiosidade de Bernabé era tanta e queria que o primo lhe falasse sobre como eram as águas dos rios, os animais, as frutas da mata e das lavras, os peixes dos rios, o chilrear dos passarinhos e tudo mais.
— Oh primo, conta então, ou não queres que eu vá contigo? – ameaçou Bernabé, em jeito de troça.
— Bebé! Arruma a tua mochila. Os teus olhos te vão contar ao longo da viagem. – Respondeu-lhe Jack, como era tratado Jacinto no seio familiar.
— E tu, Jack, já arrumaste a tua mochila? — ripostou Bernabé.
— Ainda não. Mas eu sei onde andam as minhas coisas e não será difícil.
— Olha para isso. – Bernabé mostrava o cantil que ganhara como presente por ter transitado de ano académico. – Vai ser útil ao longo da nossa viagem até à casa da tia Naxitula. — disse.
— Ai é? E vamos mesmo a pé? – perguntou Jacinto a zombar. Os dois já tinham combinado gastar o dinheiro da passagem em guloseimas e fazer o percurso de dez quilómetros a pé. Conheciam o caminho e eram também conhecidos dos aldeões daquela região onde bastava dizer de quem se era filho ou neto para logo ser acolhido em qualquer aldeia por onde se passasse.
No domingo, dia em que o comboio faz o percurso Lwena-Vye, os meninos foram à estação dos caminhos-de-ferro acompanhados por Wandisyapo, pai de Bernabé e tio de Jacinto. Os rapazes, que já tinham o dinheiro da passagem, fingiram dirigir-se à bilheteira de modo a despistar Wandisyapo. E conseguiram mesmo ludibriá-lo, pois tinham conseguido de véspera uns bilhetes que já não tinham validade. E foram estes que mostraram ao pai, de quem se despediram.
— Papá, não adianta esperar pela partida do comboio. Jack e eu já somos grandes e o papá pode ir descansado. Quando chegarmos, a tia vai ligar para dar notícias. Não é isso Jack? – perguntou Bernabé.
— Sim, tio. – respondeu Jacinto, a fingir que subia na carruagem, puxando pela mão do primo.
Mal Wandisyapo marcou os primeiros passos em retirada, os dois trapaceiros desceram da carruagem e meteram-se a caminho do mato que liga as embalas. Na mata cerrada do Moxico, em direcção ao pôr-do-sol, os dois aventureiros transpuseram riachos e contornaram montanhas, deleitando-se, ao longo do percurso, com muitas frutas: umas colhidas de pomares que iam encontrando e outras silvestres. Viram também um passarinho preto, amarelo e vermelho que lhes fez recordar a bandeira de Angola.
— Jack! Olha aí o Angola-Avante! – exclamou Bernabé, o primeiro a ver o passarinho no cimo de uma árvore.
— Angola-Avante é o hino nacional. Esse aí é cor-de-bandeira. – corrigiu Jack que era um ano mais velho do que o primo.
Depois de caminharem cerca de uma hora, o mutismo e o cansaço fez morada entre eles. — Jack, porque não paramos um pouco para descansar e apreciar que está à volta? – sugeriu Bernabé.
— Sim, Bebé. Também sinto a boca seca de sede. Queres um pão com manteiga? – brincou Jacinto. A sombra de uma árvore frondosa foi escolhida para descansar e conversar.
Jack puxou da mochila a sua bússola para ver em que direcção estavam, enquanto Bernabé prospectava com o seu binóculo o que se passava à volta. Foi naquele instante que viu, não muito longe do local em que estavam, uma cabra do mato que corria perdidamente.
— Jack, Jack! Uma cabra do mato está a correr em direcção ao rio. Queres ver? Deve haver um leão atrás dela!
— Hum, leão? – balbuciou Jack acossado de medo.
— Sim aqui há leões, leopardos, hienas, onças e outros animais ferozes. Doutra vez – contava Bebé – o papá caçou um leão velhinho que rondava o curral do Soba. Só a juba dele? Parecia um espantalho. Era um bicho assim… – Bernabé indicava com gestos a enormidade da juba do bicho. Enquanto Bernabé descrevia o animal, Jack, já quase sem forças nas pernas, sorvia uma porção de água do cantil. Foi no mesmo instante em que Bebé, também ele sedento, esticou a mão para receber o cantil.
— Está aqui. – disse Jack.
— Mam! Estou perdido. – gritou Bernabé que se meteu a correr pelo mato.
Nisto, Jack que tinha pensado que o primo fugia duma fera, também se meteu em fuga pelo mato, metendo por um outro atalho.
Andaram perdidos no sertão cerca de hora e meia até que se reencontrarem numa aldeola, já próximo do Munhango. Estavam exaustos, sedentos e famintos.
— De que fugiste, Bernabé? – questionou Jack todo aborrecido.
— Não foste tu que disseste que o leão estava aí? Ou querias que eu servisse de almoço do bicho? – respondeu Bernabé também agastado.
— Eu não me referi ao leão. Esticaste a mão para receber o cantil e eu te disse “está aqui” o que pedias.
— E por que te meteste também a correr? – voltou a perguntar Bernabé já mais calmo. — Fugi porque, ao te ver com o “pé no ngimbu”, pensei que tivesses visto, na verdade, um leão!
Sinto-me honrado em estar aqui. Grato.
ResponderEliminarÉ um prazer, meu caro. Contamos consigo. A porta estará sempre aberta para si.
EliminarAbraço,
Joaquim Saial