POEMAS E GAVETAS
Regresso sempre ao mesmo quarto da poesia, aos poemas de
Eugénio de Andrade. Também moro em
poemas de outros poetas, poemas que amo, poetas que admiro. Escrevo poemas
ou pensamentos nas margens dos seus textos onde me demoro numa serena quietude
reconquistada. São pequenos textos escritos a lápis, por vezes com letras tão
miudinhas que mais tarde, dificilmente consigo decifrá-las. Mas escrevo ... escrevo
o que me aflige ou me encanta.
Demoro-me mais tempo nos livros de Eugénio de Andrade quando
busco claridade, silêncio ou a flor da água que me deslumbra.
Tenho várias gavetas onde guardo os poemas sagrados de muitos
outros poetas eleitos. Mudo constantemente de gaveta na busca incessante de
outras mais excêntricas. São gavetas e gavetas, livros e livros, poemas e
poemas que mais amo.
Se abrires uma gaveta das mais excêntricas, encontrarás
poemas dos mais extravagantes: que voam como as aves, mergulham no mar e
regressam cheios de alegria, a cheirar a rosas bravas e a alfazema, que cantam
a vida, o ardor da brisa acariciando lábios pintados de desejo ou a vibração da
alma num corpo em fogo, poemas que despem o mar com os lábios e regressam numa
erupção de ondas em desalinho.
Verás que as gavetas já são poemas. Moro nas gavetas onde
demoro o tempo de ler os poemas mais silenciosos, os que sabem a bagas de romã,
a claridade dos campos de papoilas ou de tulipas cor-de-rosa, a sonhos de amor,
a milheirais floridos ou a trigo maduro. Bastam-me esses instantes.
Entra comigo numa gaveta-poema e sentirás palpitar de deleite
o coração, o corpo inteiro que não cessarão de pulsar.
Mas volto sempre a uma das gavetas excêntricas dos poemas de
Eugénio de Andrade, das que voam sobre a neve e poisam, suavemente, nas minhas
mãos abertas, como se fossem pedir abrigo na casa onde afinal moram, onde vivem
tempos de liberdade, excentricamente desarrumados, extravagantemente ociosos,
mas em silêncio, silêncio de chuva miudinha na vidraça, silêncio de flores a
abrirem-se nas auroras de dias claros, silêncio da lua nova a romper num céu
azul, silêncio de um pôr-do-sol sobre o mar dourado, silêncio dos poetas, da
poesia, silêncio dos sonhos de amor e de beijos ao luar.
Os poemas poisam, docemente, nas minhas mãos que beijo com a ternura da água, cântaros que cantam a alegria das chuvas nas nossas ilhas.
Carlota de Barros
Lisboa, 30 de Setembro de 2020
Retrato de Eugénio de Andrade, por Emerenciano - in correiodoporto.pt |
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