sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

[0049] Nuno Rebocho, mais uma fábula

Mais uma das suas fábulas cínicas com mostras de moralista aprendiz. É uma história contada a quantos nunca desistiram de ser meninos.  


O CAMALEÃO IMPREVIDENTE

Alapava-se o camaleão à parede. Branco, da cor da cal. Trepava cortinas de chita, ficava amarelo, ficava azul, às bolinhas. Refugiava-se nos manjericos, era verde. Ou tijolo como o vaso. Ou indefinível como a terra vegetal.
Neste defeito mimético, o camaleão era, especialmente era, a alegria da criançada. Os putos perdiam-se em deleite, horas e horas, basbaques ao bicho sem cor própria.
Chegara a casa dias antes. Trouxera-o o pai, fanático ecológico: “nada de flites, de banzés, de mixórdias químicas que só fazem mal”. Mata-moscas davam prejuízo, loiça partida. Fitas de melaço eram inestéticas - sórdidas. Havia os métodos eléctricos. Mas com a energia tão cara... Mais os estoiros de grelhadura que complicavam com os nervos. Optou pelo camaleão.
Libertado em casa, desenrolou a cauda e encostou-se a parede forrada de papel. A primeira mosca expôs-se ao alcance. O camaleão disparou a língua, capturou o insecto. Engorgitou-o. Os putos bateram palmas. O pai levou as mãos ao cinto, puxou as calças de contentamento.
- Viram? Então? Dá ou não dá resultado?
Vinham amigos admirar o animaleco. A sala era “ah” de espantos ao maravilhoso de mudar de cor conforme o poiso. Compreendida a razão das honras, o camaleão caprichava: tingia-se de cores alheias com máxima perfeição.
As crianças, o pai, recompensavam-lhe as proezas. Chegavam a apanhar, com as mãos em concha, as moscas que invadiam a sala de jantar. E embevecidos, alimentavam-lhe a gula.
Assim, rodeado de carinhos e atenções, o camaleão engordava. Mudava de poiso, mudava de cor. A família chegou a baptizá-lo: deram-lhe o crisma António, e, era curioso, parecia que ele atendia ao nome.
Numa manhã, farto de uma bambinela onde se instalara, o camaleão desceu as cortinas, correu pelo chão rumo a um vaso do lado oposto da sala. Verdíssima avenca encostava-se aí a alva cana. Ficara o camaleão acastanhado, da cor do soalho. Perfeito, como de costume.
A mulher-a-dias, de espanador em punho, entrou para limpar o pó. Não lobrigou diferenças entre bicho e chão. Pôs-lhe o pé em cima. Esborrachou-o.
António morreu. Na família houve choro e ranger de dentes. 

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