Hoje os jovens exibem, perante os seus pares, os artigos de marca como prova do seu estatuto social para fazerem prevalecer a sua supremacia e marcar a sua posição dentro do grupo. Não estudei sociologia para poder interpretar este fenómeno, mas a verdade é que ele já não é novo. No meu tempo de rapaz já assim era. Não havia a disputa das marcas, porque nem todos os possuíam, mas do próprio bem em si.
Recordo-me de ouvir o meu colega JF dizer que tinha um rádio transistorizado a pilhas, nesse tempo, há mais de meio século, apenas com onda média, que levava para a cama onde ficava, nos domingos de manhã até mais tarde, a ouvir música debaixo dos lençóis. Eu imaginava como isso deveria ser agradável, como deveria ser bom.
Chegaram as férias escolares e fomos acampar para a margem do Guadiana, hoje já submersa pela barragem do Alqueva. Pedimos uma tenda de campanha e emprestaram-nos uma cozinha de campismo, sem fundo nem forro, mas mesmo assim serviu.
E lá fomos nós, de sacos às costas, que nesse tempo ainda se não usavam mochilas, para uns dias de lazer com muitas expectativas de boas pescarias. O sítio escolhido, na foz do Lucefecit, era extremamente aprazível, com boas sombras de chorões, um moinho nas proximidades e um terreno chão, sem irregularidades e pleno de grama rasa que permitia bom assento para a tenda.
Eu, o meu amigo HC e o meu amigo JF, depois de descarregarmos as bagagens fomos dar uma pequena volta de reconhecimento pelas redondezas. Debaixo de um frondoso chorão cuja rama pendia até à água escontrámos um barco escondido. Era uma chata, de madeira, com todo o equipamento necessário, os remos e uma lata para retirar a água, que sempre costuma entrar. Ficámos intrigados com a descoberta, mas por pouco tempo, pois logo apareceu um indivíduo mal aparentado, com um aspecto andrajoso e mais ainda, com apenas uma perna, sendo a outra substituída por uma muleta que apoiava debaixo do braço e que não lhe retirava mobilidade nem destreza de movimentos.
Junto seguiam-no dois cães, qualquer deles tão mal encabelado quanto o dono. Ouviam-se os chocalhos de ovelhas que não deveriam estar longe. Depois de uns cumprimentos assim por cima da burra, o sujeito foi à pergunta crucial: ao que vínhamos? Entendendo que não havia perigo quanto aos nossos propósitos, passou a esclarecer que poderíamos estar à vontade, como se fosse o dono e senhor dos terrenos. Avisou ainda que não nos assustássemos se, durante a noite, ouvíssemos barulho de algum camião a trazer alguma carga para dentro do moinho. Ficámos a olhar uns para os outros estupefactos, pois nem estrada havia. Como chegaria ali um camião, a descarregar o quê? E porquê à noite?
Ainda assim, o HC tomou a iniciativa de lhe perguntar se era dono do barco escondido e se o poderíamos usar para pescar um pouco mais longe da margem. É claro que sim, se tiverem cuidado, foi a resposta. O cuidado não era com a nossa integridade física, mas com a chata, não fossemos nós afundar parte do seu ganha-pão.
O nosso amigo JF tinha levado o seu rádio, como não poderia deixar de ser, mas nós nem sequer tínhamos autorização de lhe tocar. Apenas ele, dono, podia ligar, desligar, aumentar ou diminuir o som daquela maravilha da tecnologia de então, que até tinha uma caixa protectora de cabedal.
O meu amigo HC, que Deus lá tenha, era extraordinariamente bem-disposto e ardilou de imediato uma partida para inquietarmos o JF. No dia seguinte, depois do almoço, fingimos estar a dormir a sesta, o que levou o JF a ir pescar sozinho para uma zona sossegada do rio a uns escassos oitenta metros da tenda. Foi a ocasião certa para levar à prática o nosso plano. Fomos à tenda buscar o rádio, atámos-lhe um fio de coco de cerca de dois metros à asa e fomos de imediato para o barco, com a maior descrição e silêncio possíveis.
O HC, com o seu enorme corpanzil, deitou-se na proa de barriga para o ar, retirou o rádio da caixa, colocando-o no fundo do barco, ficando com a caixa de cabedal em grande destaque sobre a barriga. Na mão segurava o fio de nylon a ela atado. Eu peguei nos remos e fui deslocando o barco, muito de mansinho para não fazer barulho, até ao local do pescador. Já perto, foi ligado o rádio, no fundo do barco, em alto som para provocar a ira do JF.
Não me lembro de ter ouvido na minha vida tanto palavrão seguido. Então, para levar a provocação ao cúmulo, o HC disse: «- Estás a gritar porquê? Por causa desta porcaria?» e deitou a caixa para a água, calando discretamente o rádio.
JF atirou a cana para o lado e lançou-se rapidamente à água, vestido e pronto, para salvar a sua jóia.
Ficou dois dias sem nos falar.
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