terça-feira, 5 de março de 2019

[0053] Um felino de Nuno Rebocho

O autor recolhe na vida animal fábulas que alimentam o comportamento dos humanos e busca nelas conclusões para o dia-a-dia: por exemplo, o que em situações extremas deve valer mais, o amor à liberdade (implique o que implique para se obtê-la) ou as comodidades de um estar adaptado à sujeição que lhe retira essa liberdade? Tudo tem vantagens e inconvenientes… Mas a liberdade é a liberdade.


O GATO MOISÉS

O gato foi achado em noite de chuva. Estava ferido, encharcado, esfomeado. Tomaram-no ao colo, levaram-no para casa, alimentaram-no. E deram-lhe nome doméstico: Moisés, em memória das circunstâncias do achamento.
Ao desvelo dos donos, Moisés ganhou banhas, gato anafado, ronronante e dorminhoco. Luziu o pêlo. Dias felizes aqueles em que, entre pele e ossos, carne e gordura se concentraram. 
Refez forças e com elas a perceção da disciplina caseira: o caixote da serradura, a comida em horas certas, o chamamento dos donos, a obrigação de sofrer carícias e de ronronar. Habituado à rua, à força de não gostar, Moisés indispôs-se.
Rondou a janela, cismou por detrás dos vidros a saudade da liberdade. Esfregava o focinho nas vidraças. E, assanhado, começou de revirar as unhas às festinhas dos donos. Teve castigo de chinela.
Havia, em sua índole, natural gratidão. Ingrato não era. Mas não nascera animal doméstico.
Certo dia apanhou a porta de casa aberta e esgueirou-se de um salto. Desceu as escadas em corrida e retomou a rua. Miou em apelo às gatas: “estou de volta”.
Reconheceu terrenos, assenhoreou a rua que era aquela, efetivamente, a sua casa. Bem que os donos deram pela falta e o procuraram de porta em porta:
- Moisés, bche, bche, bche, Moisés.
Moisés, nada.
À noite trepou aos telhados. Já sem nome. Miou trinados lúgubres, eróticos. Mostrou-se às gatas. Uma veio. Mirou-lhe o pelo listrado, cores fulvas e brancas. Acariciou-o com o focinho. Lambeu-o. Miaram em conjunto.
De súbito, horror! A gata deu um salto. Descobrira o estigma da vida doméstica, da civilização, estampado para sempre no corpo do suspirante. Era capado. 
Numa fúria, sovou-o. E o gato que fora Moisés, fugiu. Ferido, em sangue, escondeu-se debaixo de um caixote. E linguou os arranhados.

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