sexta-feira, 5 de julho de 2019

[0077] Um conto de Tazuari Nkeit

TAZUARI  NKEIT
Mais um texto angolano chega a Contos da Tinta Permanente. De seu nome próprio José Caetano, é escritor e jornalista.


TAMBÉM QUERIA ESCREVER “CHORA, TERRA BEM AMADA”

Coulayá é o nome imaginário de uma das mais belas cidades do continente africano. Virada para o Oceano, tem na pesca, a extracção do sal, madeira, bauxite e a cultura do ananás umadas principais riquezas, nas mãos de uns. A maioria da população é pobre e vive resignada à condição de continuar a sê-lo, até matar o coração. 

Como na maioria das cidades africanas, os habitantes de Coulayá vivem do pequeno comércio. E espalham mercados de assados, fritos e descongelados por tudo quanto é canto. Onde houver um aglomerado de pessoas, lá estará um mercado. Os habitantes de Coulayá compram e vendem pelas ruas, ruelas e becos tudo o que lhes permita a mínima receita para comer hoje, porque, segundo a crença, o amanhã a Deus pertence. 

Também é assim, regra geral, a vida de um africano: «vida negra», para aqueles que melhor caracterizam estes povos condenados à condição de miseráveis: acordam sem saber o que comer; trabalham sem a certeza do salário; e, adormecem desconhecendo que nessa noite poderão ser vítimas de um enfarte... 

Em Coulayá os mais poderosos esforçam-se para serem vistos a rezar em templos sagrados e a oferendar esmolas como obra de caridade. É uma farsa que lhes permite o título de «Homens mais capazes da Cidade!»; ou, então, se preferirmos, um gesto de cidadania comparável ao turista americano que, de óculos escuros e calções de caqui, passeia descontraidamente pelas calçadas europeias, atirando migalhas de milho aos pombos e andorinhas que,sem tecto, esvoaçam pelo céu... 
Em cidades reais, dezenas de intocáveis querem ser vistos como heróis e homens de boa vontade. Entregam à caridade a parte do dinheiro que pouca diferença lhes faz; dinheiro roubado; migalhas dos milhões e milhões não investidos em infra-estruturas básicas; dinheiro desertor e foragido da melhor remuneração dos seus empregados; os mesmos milhões que obrigam meio mundo a correr, mentir, enganar e lutar para comer e enganar o estômago... porque, infelizmente, nesta vida semi-selvagem, a tal vida negra, mentir, enganar e lutar para comer é a regra do dia a dia: cada um por si, Deus por todos, salve-se quem puder! 

- Porque é que todas as cidades africanas vivem o mesmo dilema?- pergunto ao anfitrião, meu amigo, em Coulayá. 

- Não te rales. Não vais mudar nada! A África não tem solução.

- Como assim…?!

- Põe isto na cabeça – diz-me ele - Nós, os africanos, estamos condenados ao fracasso. Nenhum país governado por pretos se vai endireitar. Nenhum! Deus fez o homem com cinco dedos diferentes nas mãos, para representar o diferente destino dos cinco Continentes. Nós somos o dedo mindinho. Estamos condenados a pensar pequeno e a sermos os inferiores. O dedo maior, representa os brancos, mais poderosos, e os seus descendentes como o Jerry Rawlings ou o Obama. Eles são mais capazes do que nós! 

- Não acredito! Faço tudo para contrariar esta tese. Digo-te: se um dia eu concorresse a Presidente escolheria como slogan «Dez anos para Mudar África – Um Compromisso Internacional!» E, faria tudo para desmentir isso! 

O meu anfitrião respondeu-me com uma das gargalhadas mais bonitas e sonoras que já ouvi dele:

- Eh, eh, eh..., todos dizem o mesmo!!! É para enganar, meu amigo. Olha o outro, jurou a mesma coisa: «Vou mudar...! Vou mudar...! Vou mudar!». Foi tudo para ludibriar, roubar e enriquecer. Nada mudou... 

Inconformado, volto a atacar:

- Roubar?! Comigo, não! Podes ter a certeza que nunca. E quem roubar no meu Governo, ainda que sejas tu, vai para a cadeia. Serás o primeiro a ser preso e julgado... 

O anfitrião não se deixa intimidar. Volta a zombar de mim, às gargalhadas. Explica-me que perdeu toda e qualquer esperança na seriedade dos líderes políticos africanos deste tempo. E, num tom provocante, pressionou o botão do suicídio da Esperança Africana – o gatilho da derrota e da resignação! 

- Vais prender todos, então! O africano foi criado por Deus para ser assim. Ele quer comer hoje, e deixar tudo para depois. Quer o imediato, gosta do excêntrico e é extravagante. Não te rales, meu amigo. Cuida de ti e deixa o mundo andar...! 

Involuntariamente, estávamos a debater duas teses sobre a Esperança Africana: Para o meu anfitrião, a África não tem futuro; Eu e outros, dizíamos que dez anos de boa governação poderiam ser suficientes para alterar o rumo do Continente. Dez anos irreversíveis! Também tínhamos um sonho, a exemplo de Martin Luther King que nos anos 60 acreditou ser possível terminar com os preconceitos raciais, a favor da liberdade e da dignidade para todos. Porque não acreditar que a melhor governação é a solução para África? 

- Porque não segues a mesma crença e determinação de Nelson Mandela, que fez cair o apartheid sem vinganças? - faço o último esforço para convencer o meu amigo, como se fosse um caçador cansado e faminto rogando a Deus para não morrer de fome. Mas, ele é peremptório. Surdo e implacável, diz-me para ter cautelas e ser realista: 

- Olha que o tempo de Mandela, SekouTouré, Nyerere, Agostinho Neto ou Sankarajá passou. Foram-se todos como a moda d’Os Beatles! A África de hoje perdeu os seus revolucionários, e perdeu-se! Os políticos já não querem fazer revolução nenhuma, como outrora. Querem dinheiro. Querem fazer negócios e ser milionários! Cuidado, meu amigo. 

Senti um estranho calor na espinha...O meu anfitrião não era um homem qualquer: é perito e PCA de uma empresa bem-sucedida.Com mais de 40 anos de experiência profissional, é o tipo de peixe na água, homem sábio e senhor de muitas barbatanas. Sabe falar e sabe estar calado. Se é um ladrão, ou se faz tráfico de influências, não sei. Em casa, e na minha presença, vi-o receber gente graúda, a quem deu conselhos e pareceres. Pontual como a Lua e o Sol, diz que vem à minha busca 18:00 e as 17:55 bate-me à porta:

 «Conconcon...!». Diz-me ainda: - É impossível mudares a África com discursos! E nem precisas ser político para começares com mudanças. Falta nos uma grande burguesia para criar bons empregos, assim como uma classe média que lhe sirva de suporte, e, uma massa crescente, exponencial, de tecnocratas capazes de funcionar com autonomia – e um código de conduta obrigatória para todos. Sem isso, meu rapaz, vais dar o teu show, vais ser aplaudido várias vezes, mas, depois, arruma as botas e vai-te embora, como nos actuais jogos de videogame. E, faz o «logout», antes que cometas as mesmas asneiras que os outros ladrões e parasitas do videogame...! 

Mesmo assim, apesar da sua retórica e ironia, o meu bom amigo não me convenceu. O mal dele é pensar que viver e crescer mal e sem berço é sinónimo e é destino do verdadeiro africano. Em dez anos, tudo isso pode começar a mudar sem retrocessos. Eu acredito. 

1 comentário:

  1. Uma forma desencantada de olhar um povo com poucas razões para sonhar, mas com muito potencial para vencer

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