terça-feira, 9 de julho de 2019

[0078] Estreante nos CTP, E. S. Tagino oferece-nos um conto inédito

E. S. Tagino, 1945, Grândola, Portugal
E. S. Tagino é pseudónimo de António José da Costa Neves, residente em Almada há mais de 40 anos. Licenciado em História pela FLL, durante anos publicou regularmente poesia em diversos jornais e revistas nacionais. Tem vasta bibliografia de romances (alguns de âmbito histórico, como "Sangue de Portugal", 2019) e foi galardoado com o Prémio Literário Cidade de Almada 2006 ("Mataram o Chefe de Posto"), Prémio Revelação Manuel Teixeira Gomes 2006/2007 ("Nem por Sonhos"), Prémio Literário Paul Harris 2007 ("Mea Culpa!"), Prémio Literário Poesia e Ficção de Almada - Prosa de Ficção 2008 ("O Amor nos Anos de Chumbo"), Prémio Literário Joaquim Mestre 2017 ("Um Certo Incerto Alentejo")...

JOÃO VIRADO

João Virado saiu de casa, como todos os dias. João Virado estava sempre pronto para sair. A maior parte das vezes não sabia para onde. Quase sempre dava uma volta e voltava ao ponto de partida, que é a remate natural de qualquer volta, seja grande ou pequena. Naquele dia, porém, tinha visto um anúncio na televisão em que ofereciam qualquer coisa para quem fosse capaz de fazer não se lembrava o quê. Aquele anúncio interessou-lhe. Então recordou-se de que tinha saído para perguntar no café se alguém o tinha visto. João Virado era um pouco virado da cabeça, daí a alcunha, que Virado não era nome de família. Nome de família era Corneta, por causa de um avô que tinha sido corneteiro em Infantaria 3. No caso do João, porém, apelido muito apropriado pelo que João Corneta era também chamado, muitas vezes, por João Virado da Corneta. 

João Virado não sabia fazer nada e, só por essa razão, não fazia nada. Às vezes apetecia-lhe fazer qualquer coisa, mas como não sabia o que fazer, rapidamente se esquecia desse anelo indefinido, felizmente apenas episodicamente aflorado. Naquele dia, porém, demorou um pouco mais a esquecer-se do anúncio. Quando entrou no Café, não estava ninguém. “Querem ver que a malta toda resolveu responder ao anúncio!?”, pensou João Virado, ligeiramente azoado. “Já me lixaram o emprego!”, concluiu. Chamou para dentro, apareceu-lhe a Ernestina. Vinha de olhos revirados, a palitar os dentes. “Qué da malta?”, perguntou. “Nã sei, nã tava aqui”. Ernestina era empregada do Café, mas era um pouco mais lerda do que o João Virado. “Vou dar uma volta”, disse e saiu. Ainda não tinha dado dois passos, lembrou-se do anúncio e voltou atrás.

A Ernestina, que ainda estava encostada ao balcão, a palitar os dentes, admirou-se. “Tã depressa!”, disse, sem tirar o palito da boca. A televisão estava acesa. Na pantalha, dois tipos de casaco e sapatilhas nos pés, virados um para o outro, discutiam futebol. “Agora também discutem bola de manhã!?” perguntou-se o João Virado, que não era muito virado para os desportos coletivos, em especial do futebol. Gostava mais dos desportos individuais, como a pesca, que eram muito menos cansativos. Foi nesse instante que se lembrou de qualquer coisa do conteúdo do anúncio: “…nã faça nada….”, sim, “…nã faça nada…”. Tinha sido esta fração do slogan que lhe tinha despertado a atenção. Não fazer nada era com ele, para não fazer nada estava sempre pronto. Podia estar ali um bom emprego, pensou. “Vistes o anúncio de nã fazer nada?”, perguntou, apontando a televisão. “Nã fazer nada!?, espantou-se a Ernestina, que entrava às seis e saía às vinte e duas e nunca tinha tempo para nada. “Nã fazer nada, nã sei o que é.”

“Esta gaja é parva”, pensou João Virado, voltando-se e saindo. O sol da manhã estava apetitoso e a esplanada convidativa. Ajeitou o toldo e sentou-se com as pernas esticadas. Com a pressa, por causa do anúncio, não se tinha calçado. Olhou os pés por breves instantes. Encolheu os ombros e gritou para dentro: “Tina, traz-me uma cerveja sem copo”, e continuou a olhar os pés. “Com esta já são cinco que estás a dever”, disse-lhe Ernestina, antes de pousar a garrafa. “Descansa, que no sábado, o mê pai paga-te”.

Bebericou a cerveja, a pequenos golos. “Que paz, que descanso…”, pensou enquanto descansava o olhar na colina distante pintalgada de papoilas. “Nã há como o Alentejo para um homem viver descansado”, e os olhos relancearam, agora mais perto, abarcando o coreto, onde há anos ninguém tocava, a porta dos Correios, inativados, e a farmácia, encerrada desde a morte do Dr. Valdemar.

“E a volta, nã vais dar a volta?”, interrompeu Ernestina, que tinha vindo ajeitar as mesas. “Que volta, criatura!?”, perguntou, genuinamente admirado. “Tu é que dissestes quias dar uma volta”. “Pois se disse, ainda bem que já me esqueci”.

A meio da manhã começaram a aparecer os tipos do Leste, os ucranianos e os moldavos e, ainda mais tarde, os bangladeches e os filipinos. Só depois apareceu o Xico Moleiro, que estava desempregado para aí há vinte anos. “A apanhar sol!?”, perguntou, enquanto puxava uma cadeira. “Estou a descansar”, disse Virado, estendendo a punho que o Xico socou com um pequeno toque. “Com este calor, é o melhor que um homem pode fazer”, disse e sentou-se. “Também vou descalçar as botas”, acrescentou depois de olhar para os pés do João Virado.

“Essa malta nã faz nada?”, perguntou o Xico Moleiro, passados dez minutos, apontado os tipos do Leste. “Vivem do subsídio”, respondeu o João Virado, encolhendo os ombros. “Por isso é que há cinco anos não sou aumentado”, rosnou o Xico, raivo da concorrência. “Também o mê pai. E só a trabalhêra que dá arranjar os carimbos…”. “Nem me fales disso, João, que já tou a ficar cansado!”.

Quando na igreja badalou o meio-dia, João Virado deu por concluído o descanso. Estava na hora do almoço. Quando entrou em casa a mãe perguntou-lhe. “Foste dar uma volta, João?”. “Nã senhora, fui procurar emprego”, disse, lembrando-se vagamente do anúncio. “E encontrastes?”. “Nã senhora. Nã tive tempo. O Xico Molêro apareceu e ficámos na conversa. E o pai?”, perguntou, olhando em volta. “Está ainda a dormir”, respondeu a mãe. “Mas esse calacêro dum cabrão nã faz nada!?”, exaltou-se, pela primeira vez, João Virado, que nessa manhã já tinha ido ao Café e voltado. “E o Vinagre tava lá? O teu pai este mês ainda precisa dum carimbo.” Nã senhora, só estava a Ernestina”. “Bela rapariga, sim senhor, trabalhadêra e jêtosa, bem que podias arrimar-te a ela”, incitou a mãe, pensando no subsídio que mal dava para dois e tinha de chegar para três. “É jêtosa, mas nã é do mê jêto. Palita muito os dentes”. “Mas tu precisas duma rapariga. Olha que na tua idade o tê pai já era casado”. “Ó mãe, nã teme, que ê nã tou praí virado. Ainda pra mais, logo agora que tenho em vista um emprego”. “E tem futuro esse emprego?”, perguntou a mãe, enquanto deitava a comida da panela diretamente para a malga. Não respondeu, a mãe não ia compreender. Se tinha futuro!? Ali no Alentejo, tinha futuro e tinha presente. Além disso, ele queria lá saber do futuro. No futuro haveria de ter o subsídio.
Sentou-se à mesa e comeu o caldo de couves com toucinho. A rodela de chouriço comeu-a no pão e, antes de ir dormir a sesta, ainda murmurou entredentes: “Nã fazer nada, belo emprego. Amanhã, se nã tiver tanto calor, vou continuar a procurá-lo”. 

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