terça-feira, 16 de julho de 2019

[0079] Mário Pereira, em conto angolano

Do escritor angolano Mário Pereira, já reportado em Contos da Tinta Permanente, referimos mais um conto


MAN JACK DA COBARDIA

Corria o ano de 1963 em Luanda.

E, num dos subúrbios da capital, num dia em que o sol insistia em aquecer o ambiente como raras vezes o fazia, os putos corriam atrás de uma bola de borracha: uns à procura do golo do empate, enquanto outros defendiam, de qualquer maneira, a sua baliza, lançando a bola para longe: para queimar tempo; simulando lesões que não existiam e agarrando o avançado fora da grande área afastando-o da boca do golo,…

E, num certo momento, o jogo parou!

A bola, que fora chutada para a baliza defendida por Santito Matias, entrara no quintal de Man Zeca, o tal que vezes sem conta rasgara o esférico a punhal perante a mol de gente embevecida que assistia o jogo do princípio ao fim! Pela frustração causada, muitos auguravam, num dia destes, a oportunidade para indagarem Man Zeca, no beco da rua de trás, quando o sol se fosse embora! 

O presságio, para alguns, era funesto; enquanto, para outros, não passava de mais um episódio que teria um final semelhante: o da bola rasgada pela fúria de quem, sempre, pelos mesmos motivos, exibia um punhal na mão; ao da tristeza estampada no rosto, não só de quem fora impedido de correr atrás da pelota, mas também dos que se aglomeravam nos quatro limites do campo.

E enquanto se pressagiava sobre o que viria a seguir, - a desforra que fariam a Man Zeka botando no chão do beco escuro onde namorava com a Zinha as cascas de 100 bananas no momento em que ele se dirigisse para lá ao anoitecer - vinha do fundo da rua uma débil figura que parecia incapaz de se contrapor à ira dos ventos de Abril, estes que se habituaram a levantar para os ares as ninhadas de aves assentes no meio das moitas; as chapas esburacadas do casario em desalinho, deixando a céu aberto a desgraça do povo clamando por liberdade. 

Fingindo conhecer o que à sua volta se passava, a débil figura - que trazia no canto direito da boca uma beata apagada de cigarro Juca e um gorro negro na cabeça -, evitou indagar a causa por que ali se achava a mole de gente e, acenando aos conhecidos que o saudavam com deferência, levantou a mão com o dedo indicador em riste, chamando, para o beco mais próximo, um dos que implorava a resolução daquele caso que parecia insolúvel. – O que é que se passa aqui? – Indagou Man Jack. 

É o puto Zito que jogou a bola para o quintal do Man Zeka. Então, o Man Zeka, furioso, prendeu não só a bola, mas também o miúdo que chutou a redonda para lá. 

– Mas a bola estragou alguma coisa? Aleijou alguém? Partiu algum vidro? – indagou Man Jack, enquanto ajeitava o cigarro, já aceso, inspirando e expelindo, pela boca e pelo nariz a fumaça quente que se alojara no peito. 

– Não se sabe, Man Jack. Só sabemos que o dono do quintal disse que já tinha avisado que da próxima vez que a pelota entrasse no seu quintal, não só ela seria retida, mas também o autor do chuto, e quem viesse em seu socorro, fosse quem fosse! E a clausura seria por tempo indeterminado, a não ser que houvesse, por parte dos familiares, a intenção de pagar o estrago… e exigiria um pedido de desculpas por parte dos pais, avós, tios e amigos do prevaricador, pelos abusos que vêm sendo cometidos até à presente data…

Dirigindo-se à porta da casa do ofendido, lá onde a bola e o puto estavam retidos, Man Jack falou assim: - Dá-me licença, Man Zeca. Sou eu, o Jack. – Quem? – O Jack, Man Zeka. – Oh! Man Jack? Entra, se faz favor. Pode entrar, Man Jack. O prazer é todo meu, caramba…. Ó, Man Jack? Como é, meu? Há tanto tempo que a gente não se via, pá!

Gerou-se um silêncio sepulcral quando Man Jack e Man Zeca se abraçaram perante o olhar atónito de quem espreitava a cena pelos intervalos das aduelas do quintal; gente que ansiava a solução do caso que juntara a vizinhança contra o detentor da bola e do puto Zito, o melhor goleador do musseque Rangel. 

– Então, Man Jack? Como é que vão as coisas por aí? Lá em casa tá tudo bem? - Graças a Deus, man Zeca! Tirando as perseguições dos Arara kwara, o resto vai caminhando, mas com a maior das atenções, porque o Arara Kwara não estão para brincadeira, não. Ainda ontem, não sei se já sabes, cangaram o Jingongo, o filho da Donana, o mais velho. 

– Mas estas questões vão ser tratadas noutro dia. E, então, como é que vão os mambos por aqui? Os miúdos; a mana Dominguinha? E a Donana, a tua irmã mais nova? Nunca mais a vi, Man Zeca. Anda mesmo cá ou viajou? Desde o ano passado no funeral da Ximinha que nunca mais lhe pus o olho em cima! 

– Está tudo sob controlo, Man Jack; vamos indo, como dizem os mais velhos cá da banda, mano. 

– Bom, mas o que eu queria mesmo dizer, Man Zeka, é o seguinte: é esse aglomerado aí fora que me está a preocupar; temos de evitar esses ajuntamentos tumultuosos à nossa volta, seja por que motivo for. Os Jipela Njipe e os Araras volta e meia estão aí a passar e sempre com o olho em cima da gente e qualquer cheiro a geringonça é suficiente para os tipos actuarem! E já sabes como é que isso é, pá! 

– Ok, Man Jack, percebi tudo. Mas esses putos dão trabalho sério! Por mais que a gente fala, os gajos não querem saber e então, pela falta de respeito permanente, canguei-lhes a bola que caiu aqui mesmo no quintal, na hora em que eu ia a sair do cubico para ir fazer um biscate. 

– E, como se não bastasse, ó mano, o tipo que chutou a bola ainda saltou para dentro do quintal sem pedir autorização e, por isso, como qualquer um de nós faria, também lhe canguei. É esse indivíduo que está aí sentado no fundo quintal, mano. 

– Tá bem, pá. Não deixas de ter as tuas razões! 

– Porém, como as coisas estão por aqui, não devemos criar inimizade com esses putos, ó mano! 

– Devemos tê-los connosco, tás a entender? Se não fossem eles, ontem mesmo já me teriam cangado pois, foram vistos três indivíduos, dos tais, de calça preta e camisa branca, a circularem pela rua em sentido oposto! 

– E foi um grupo de putos que nos alertou do perigo, mano, a mim, ao Mangololo e ao Jinguma. E foi assim que nos escapamos e não conseguiram encontrar-nos. Man Zeca! – Diga, Man Jack. 

– É assim, mano: temos de estar em sintonia com esses miúdos pois, são eles que nos dão guarida, quando nos vêm avisar, na calada da noite, que está gente estranha a rondar o Bairro, tás a ver? 

– Para além disso, ó mano Zeca, essa é a única diversão que eles têm antes de as chuvas chegarem. 

– Quando há chuva, a diversão deles muda logo, porque essa água assentada transforma os campos da bola em grandes lagoas. 

– Aí, a brincadeira é mergulharem nessa imundície até se cansarem. Temos que ter mais calma! Somos mais velhos e devemos orientar essa malta miúda a estar dentro da normalidade, apesar das adversidades. 

– Para além disso, ó Man Zeca, que eu saiba a tua casa só tem uma janela que dá para a rua e ela, a casa, nem é de madeira, ó pá. É de barro. 

– E mesmo que a bola bata na parede, mano, o barulho que faz é nulo, não te incomoda. 

– Por outro lado, o teu quintal não é feito de vidro, é de aduelas esburacadas pelo salalé. 

– E se a bola bater nele quem sofre são esses mesmos bichitos que são atirados para o chão a cada remate que os miúdos fazem. 

– Até aqui só há benefícios para ti, mano. 

– Até me apetece dar uma gargalhada por te dizer isso, mano. 

– O barulho que eles fazem, meu mano, é do despique pela bola e, quando há golo, há aquela algazarra normal de quem já está a ganhar, em que os jogadores e adeptos correm, abraçam-se, atiram-se para o chão, assobiam, jogam areia para o ar e xingam quem não é do seu time. 

– É só isso mano! 

– Para ti e para muitos que aqui vivem, ó Man Zeka, estou-te eu a dizer, isto é um autêntico filme ao vivo, um benefício que traz alegria a quem, como tu, aqui no Rangel, não tem luz eléctrica, nem em casa nem na rua; não tem água canalizada e o chafariz fica longe; a casa não areja por só ter uma porta e uma janela em miniatura… 

– Esses jogos na rua, mano, são uma autêntica sala de estar onde as pessoas podem conviver vendo os putos a correr descalços à procura de enfiar a bola na baliza! Tás a ouvir o que te estou a dizer, ó mano! 

– Por isso, Man Zeca, o que tens de fazer é libertar a bola e o miúdo, mas, atenção, Man Zeca: tens de chamar alguns deles para presenciarem a entrega; testemunharem a tua amizade para com eles e para que estejam permanentemente a teu lado; para receberem de ti a proposta de que podem jogar sempre sem restrições, mas com árbitro presente para não haver batota que traz confusão no meio e fora do campo. 

– Atenção, muita atenção: não te esqueças de prometer aos miúdos que no final dos jogos haverá sempre um bombózito assado, uma gingubita e aquela quitaba da boa, daquela que já tem gindungo; uma tijela grande com farinha musseque, água e açúcar e com isso ofereces uma rodada de ngongwenha para essa malta. Para se refrescarem, dá a cada um uma caneca do bom kitoto. 

– Para os kotas, já sabes: preparas uns bons nacos de gengibre e uma boa caneca de kimbombo e pronto, já está…-

– Man Zeca! – Diz, Man Jack. 

– Estou a ver ali no fundo do quintal uma lata com cal já usada e que parece que já não tem mais serventia para a tua casa!

– Entrega isso aos putos para alinharem o rectângulo de jogo pois, nunca se viu que as linhas laterais de um campo de futebol sejam os limites das casas que o ladeiam! 

– Sinceramente, mano! 

– Vamos botar ordem nisso, o mais rápido possível e evita cangar os putos por causa da bola! 

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