domingo, 23 de fevereiro de 2020

[0094] Um conto cheio de "miaus"...

GATAS NO TELHADO

António Rosa
Era um edifício antigo, sóbrio, com uma imponência que fazia jus ao seu período de construção, certamente posterior ao terramoto. Impunha-se de esquina, entre a Rua das Praças e a Rua das Trinas, como baluarte defendendo aquele cantão do típico e antiquíssimo bairro da Madragoa.

O segundo andar do número 10 estava arrendado por uma senhora do norte, a Dª Antónia, que trabalhava como secretária (ou telefonista?) na Assembleia Nacional, como então se dizia. Como o espaço era grande e a casa tinha bastantes compartimentos, dado que o sótão era aproveitado com boas mansardas, estavam os quartos todos alugados a estudantes e até a jornalistas (as redacções de muitos jornais ficavam ali pelas proximidades), que era uma forma de aumentar o rendimento mensal, pois os funcionários públicos do tempo de Salazar ganhavam uma miséria.

Foi para aí que me fui hospedar, nos finais da década de sessenta, de resposta a um anúncio do "Diário de Notícias" que publicitava os quartos. Tinha dezassete anos frescos e a ingenuidade de uma criança que sempre vivera na província, debaixo das saias da mãe e muito particularmente debaixo das saias de uma tia e madrinha (que Deus tenha), solteirona, prepotente e castradora. Tinha acabado de ingressar no curso de Electrotecnia e Máquinas, do extinto Instituto Industrial de Lisboa, que ficava alojado num palacete da Rua de Buenos Aires, à Estrela. Era só subir a Rua das Trinas e pouco mais até lá chegar.

O tempo ia passando, o coração cada dia mais apertado com a proximidade da primeira frequência, pois as dificuldades que tinha eram enormes, por manifesta falta de conhecimentos e pré-requisitos. Mas não queria dar parte de fraco. Não dizia nada e vivia angustiado com o espectro do descalabro iminente.

O meu pai, por questões profissionais, necessitou ir a Lisboa e teve a infeliz ideia de me ir visitar, até porque lhe interessava ver em que condições eu estava alojado. Jantou comigo e, a convite da Dª Antónia, acabou por lá dormir. Ela arranjou-lhe uma cama num espaço de passagem entre a varanda do telhado e o quarto do Morganheira, que era aluno do extinto Instituto Comercial e pintor de aguarelas nas horas mortas (que eram muitas). Os aposentos do Morganheira ficavam na ala nascente do sótão, com acesso a uma varanda que ficava ao nível do prédio vizinho, já da Rua das Trinas, residência do saudoso Dr. Pedro Homem de Melo, também ele um rico homem do norte e grande eminência cultural na etnografia e particularmente no folclore, tendo até programa semanal na RTP, o que então era um acontecimento. 

Mas acontecimento verdadeiro era o facto de ter ele duas empregadas domésticas, duas criaditas, como então se dizia, fardadas à maneira clássica e que eram um verdadeiro assombro pelas curvas que a natureza lhes proporcionara. 

A mansarda da casa delas tinha acesso ao telhado, que tinha pousa-pés sobre as telhas facilitando o caminho até à dita varanda. Não sei que combinação tinha havido com o Morganheira e com o jornalista do "Século", que vivia na mansarda da frente, e do qual já não recordo o nome, que as gatas, a meio da noite, vindas da varanda passaram pelo corredor, ao lado da cama do meu pai, para se introduzirem no nosso prédio da Rua das Praças.

Meses e meses se passaram sem que eu tivesse conhecimento disto que vos contei, até que um dia, quando choviam imprecações sobre o insucesso de um exame de Física Especial, com a acusação de vida de boémia em Lisboa, saltou o caso. Injustamente acusado, por mais desculpas, argumentos e juras que apresentasse fiquei ciente que, na cabeça de meu pai, as dúvidas sempre persistiram.

Agora, tenho pena de que não tenha sido verdade. Já que fiquei com a fama, ao menos que tivesse tirado o proveito.

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