L’ÉTÉ INDIAN
António Rosa |
E aqui estou eu, empoleirado na melhor posição que posso, sentado entre a forca de dois galhos fortes cá no cimo da árvore, à mercê dos mosquitos. O campo de visão parece-me razoável, atendendo a que daqui avisto uma boa parte do ribeiro, lá em baixo. É aí que os animais inevitavelmente vêm beber.
O dia cai a olhos vistos. Escurece a cada minuto que passa. Já vi e revi todas as condições da máquina, desde o obturador ao leque de fecho do diafragma. Parece estar tudo bem. O sistema de infra-vermelhos também já foi testado. O apoio onde ela se encontra é estável e permite com facilidade um razoável ângulo de rotação, quer vertical, quer horizontalmente. No entanto, apesar de já estar bem habituado ao trabalho com ela, receio que a minha vista me atraiçoe nos momentos cruciais da focagem. E nada pior de que fotografias desfocadas, sem que possam ser repetidas. Não posso dizer ao bicho que volte ao mesmo sítio e se deixe estar quietinho.
Medito na fragilidade de um homem só, aqui isolado, armado em pássaro, pousado no alto de uma árvore enorme a não sei quantos metros de altura do chão, indefeso nesta selva bruta, recheada de perigos, e agora de sombras, cada vez maiores e mais disformes.
Os sons da noite que se aproxima são cada vez mais intensos e alguns, especialmente os das aves nocturnas, arrepiantes. Grilos, aos milhares certamente, fazem uma chinfrineira ininterrupta, bem como rãs e sapos a coaxar ao despique.
Agora sim, que já está escuro como breu e os sons ainda parecem mais intensos. Não tiro os olhos do ribeiro, sempre na esperança que apareça algo. Mas praticamente não o vejo. Já não consigo enxergar a água, apesar de saber bem onde ela está.
Por vezes há certos sons assustadores que não consigo identificar. Chegam a subir-me arrepios pela coluna acima. Na verdade, não estou muito à vontade. Entretanto, com a caída total da noite, começou a levantar-se uma brisa que até já começa a ser fresca demais, aqui em cima. O que é certo é que, por causa dela, os mosquitos parece terem acalmado as suas ânsias de sangue.
De tempos a tempos ouvem-se os cantos dos pavões, ao que outros, mais longe, respondem também em coro. É agradável por ser um som velhamente conhecido, mas aqui na Índia parece ter uma sonoridade diferente, que mete mais respeito.
Ligo o sistema de infra-vermelhos da câmara para inspeccionar o movimento no ribeiro. É natural que, com esta escuridão alguns animais se comecem a aproximar para se dessedentarem de um dia tão quente como foi o de hoje.
Ajeito-me melhor no ramo, procurando não fazer qualquer ruído que possa identificar a minha posição. Qualquer pequeno barulhinho pode ser fatal. Posso ao mínimo descuido afugentar os animais e dar por perdido todo este trabalho. E começo agora a pensar no pior. E se o animal for um tigre, um tigre de Bengala com os seus dentes de sabre? Sei que os felinos sobem facilmente a qualquer árvore. Apesar da sua corpulência e do seu grande peso, tem garras suficientes para se agarrar ao tronco da árvore e vir fazer-me uma visita. Não estou nada seguro aqui. Novo arrepio pela coluna acima. E desta vez um dos grandes.
Começo a pensar que, se o animal estivesse a beber ou numa emboscada a tentar caçar alguma presa que se estivesse a dessedentar no ribeiro e eu tivesse o azar de acidentalmente espirrar ou tossir ficaria imediatamente descoberto e à mercê dos seus “dentinhos”, sem qualquer defesa possível.
Sei que tenho a necessidade urgente de afastar este pânico, de não pensar em tais coisas. Aliás fui bem avisado disso. Acima de tudo afastar o medo e depois esperar com paciência. Com muita, muita paciência e sempre em absoluto silêncio.
Os infernais grilos esgotam-me os ouvidos e começo a estar mal sentado. Os sapos e as rãs não param a sua sinfonia. Será que são sempre os mesmos ou irão alternando uns com os outros para descansar?
Ouvi agora um leve resmalhar nas ramagens lá em baixo. Ligo de imediato o sensor térmico da câmara e vejo uma mancha vermelha que se aproxima da água com todas as cautelas. Que bicho será? Não lhe consigo identificar bem a forma. Parece uma pequena gazela mas não tenho a certeza. Preparo o disparador da câmara e já tenho o dedo sobre o botão. Efectivamente é uma gazela. Já está com os anteriores flectidos e o focinho na água fresca.
De repente, tudo se cala. Calam-se os grilos, as cigarras, os pavões, os sapos e as rãs. Mas o que foi que aconteceu? O silêncio total é agora aterrador. Agora sim, é que isto mete medo. Não se ouve rigorosamente nada. O sensor térmico mostra um vulto vermelho, esguio, avançando muito lentamente na direcção da descuidada gazela e eu sinto calores e arrepios por mim acima. O indicador treme-me no botão do disparador. Vejo-o agora nitidamente, vindo por detrás da incauta gazela. É um tigre e bem corpulento que estará a uns escassos três metros da pobre presa. Prepara o salto. E eu quero fixar o momento exacto do ataque. O dedo treme-me. O bicho encurva a coluna e com uma agilidade surpreendente, zás…
Trim… Trim… Trim… “the time is thirty past seven”… “is time to stand up”…
Para dizer a verdade, custou-me mais perder a fotografia para a National Geographic do que ter que me levantar para ir trabalhar.
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