quinta-feira, 23 de abril de 2020

[099] Uma nova colaboradora, Sofia Cardoso, estreia-se no CTP. Directamente de França

CONTO DO BERÇO DA LUA

Sofia Cardoso
Em minha casa éramos pobres. Miseráveis, mesmo.

A minha mãe trabalhava a terra, de sol a sol, e tinha as mãos calejadas e unhas negras, tal como a maioria dos habitantes da aldeia.

Os terrenos onde amanhava a terra situavam-se a pouca distância da taberna da aldeia onde, todos os dias, religiosamente, o meu pai costumava embriagar-se.

Ao contrário das outras famílias, geralmente bastante ruidosas e numerosas, nós éramos apenas três e vivíamos da bondade alheia.

Se minha mãe tivesse de alimentar mais do que um filho, teria que lhe dar a comer a própria terra que pisava.

Ainda assim, engravidou tantas vezes que deixou de as contar.

Em boa verdade, cada vez que descobria estar prenha, abortava, pois conhecia as plantas e ervas medicinais que o propiciavam. Ela mesmo tratava do assunto, sem se queixar.

Minha mãe era moída por pancada, sempre que não cumpria os seus deveres conjugais.

Sou observadora.

Cresci a vê-la tratar do assunto, seguindo os seus gestos, como rituais profanos.

Cada um dos meus genitores, era de poucas falas e eu agradecia o silêncio que me ofereciam.

Há quem tenha o dom da palavra, o que não era o caso de nenhum deles. Aliás, ao meu pai só conheci o dom de beber, e à minha mãe o de levar porrada no lombo sem se queixar.

Ela, azeda, de olhos embaciados, dizia-me em jeito de explicação: "- A boa mulher tudo suporta, chegará a tua vez."

Era como se desfrutasse por antecipação da imagem que fazia do meu futuro.

Eu não suportava ouvir as suas palavras cruéis.

Um dia, alguém bateu à porta, de forma insistente.

Fui eu que abri, timidamente.

Era a grande sacerdotisa mãe, que queria levar-me como aprendiza.

Falou com o meu pai, assegurando que o ofício de curandeira seria adequado.

Mas este, sentindo-se desrespeitado, retorquiu prontamente que nunca autorizaria.

A sacerdotisa insistiu em fazer negócio com ele, mas a resposta foi a mesma.

- Não e não!

-E se lhe oferecer do vinho sacro?

Acordo fechado!

Nesse dia tornei-me aprendiza da grande sacerdotisa do Berço da Lua e fiquei feliz por assim fugir do destino vaticinado por minha mãe.


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