terça-feira, 22 de janeiro de 2019

[0040] Teresa Balté, de novo e de elevador

TERESA BALTÉ, Lisboa, Portugal, 1942
Teresa Balté surpreende-nos com conto pleno de imaginação e humor. Um Chiquinho letrado dá lição a "cuspidor" profissional, a bordo de elevador (ou ascensor) da Carris. 

É este o 40.º post e quase o mesmo número de contos publicados no blogue que esperamos continuar a desenvolver e que vai tendo os seus leitores (e autores) fiéis.

Ver AQUI outro da mesma autora, publicado no Contos da Tinta Permanente.

OS BENEFÍCIOS DA LEITURA

Olá, Chiquinho, boas-tardes – disse o homem, acendendo um cigarro e cuspindo o tabaco que se lhe colara ao lábio.
– Boas-tardes, sr. Alves.
– Então a tua mãe não vem hoje buscar-te?
– Hoje não, sr. Alves, não pôde vir. Teve de ir ajudar uma vizinha que adoeceu.
– Coitada. A Deolinda da loja?
O Chiquinho não deu troco.

– E tu, Chiquinho, és capaz de ir sozinho para casa? Sabes o caminho? Não te perdes? – perguntou o homem soprando uma nuvem de fumo.
– A minha mãe deu-me dinheiro para o elevador. Ponho-me em casa num instante. É muito fácil.
– Cuidado com os automóveis – disse o homem. E, desencostando-se da parede, acrescentou: – Olha, eu tenho de tratar de umas coisas lá em cima, no bairro. Aproveito e faço-te companhia.

Atravessaram a rua em silêncio e subiram para o elevador quase vazio. O homem atirou a beata pela janela, sentou-se e voltou à conversa:
Ascensor da Glória (ou elevador...), Lisboa - Foto Wikipedia
– Então essa escola, Chiquinho? Já conheces as letras?
– Já conheço as letras gradas do jornal.
– O quê? Tão depressa? Não acredito…
– Já sei ler, sr. Alves – respondeu o Chiquinho.

O homem ou não ouviu ou não ficou convencido. Tossiu. Cuspiu para o chão. Suspirou… olhou para a direita e para a esquerda e, no fundo do carro, avistou um pequeno letreiro com uns dizeres.
– Então mostra lá o que sabes – pediu com voz rouca, e espetou o dedo gordo na direcção do aviso. – Vês aquele papel? Vai ler-me o que está além escrito.

O Chiquinho não pensou duas vezes. Levantou-se e foi. Abriu caminho pelo elevador, que entretanto se enchera, parou diante do letreiro e estudou as letras. Por fim, com ar solene e alto e bom som, soletrou: – “A-ten-ção-É-ab-so-lu-ta-men-te-pro-i-bi-do-cus-pir-so-bre-qual-quer-par-te-do-car-ro.-Mul-ta-cem-es-cu-dos.”

Todos se riram. O Chiquinho achou que o caso não era para graças. O elevador pôs-se lentamente em marcha. O sr. Alves engoliu e não deu troco.

Um "primo" do Sr. Alves do conto de Teresa Balté, o "Escarra & Cospe", figura inventada por Carlos Botelho para juntar às ilustrações dos seus "Ecos da Semana" na página final (a 8) do jornal humorístico "Sempre Fixe". A imagem que aqui vemos pertence ao último "Ecos da Semana", de 14 de Dezembro de 1950 (início em 1928), ali acompanhada de todas as outras que deram mais brilho e acinte às criticas semanais de Botelho. Há uma certa desilusão do autor nesta despedida, ao fim de décadas de insistência em centenas de pranchas, pois a crítica ao "Escarra & Cospe" não resultou. Até hoje...

3 comentários:

  1. Uma forma simples de educação cívica, que bem poderia ser dirigido tanto aos miúdos com aos graúdos.

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  2. Delicioso, este conto elegante e singelo... para todas as idades

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