sexta-feira, 15 de março de 2019

[0056] Um conto do moçambicano Mauro de Brito

Do escritor moçambicano Mauro de Brito chegam a “Contos da Tinta Permanente” estes segredos da época da chuva. Para saborear com deleite.


SEGREDOS POR BAIXO DA CHUVA

Foi no quintal do farol abandonado no topo de uma verde colina feita em dunas, que a Kianga e o pangolim Mabeco se deram a conhecer, no habitual passeio da manhã da menina Kianga, que era feito a caminho da escola.
Entrou pelo edifício, que há anos tinha sido abandonado, ficou a fingir ver baleias e outros animais do mar, anunciando ser uma grande capitã e que estava ali para pôr ordem nas coisas, que o mundo lhe parecia estar ao avesso. Junto à janela, com seus olhos redondos e vivos, pôs-se a contemplar o sol abraçando a terra. Aconteceu que apeteceu-lhe ir ao quintal, onde havia algumas árvores de fruta e um capinzal, de onde viu distinguir-se do verde, um conjunto de escamas dispostas em camadas em tons de castanho claro, instantes depois dois pequenos olhos chamaram mais a sua atenção, sem muita demora, o desconhecido mexeu-se e enrolando-se num repente; primeiro houve um susto por parte da rapariga, mas depois deixou-se ficar um instante, em observação e esperava alguma outra reacção.
Ao contrário do que ouvia, decidiu aproximar-se e ver de perto, tratou de desmanchar o emaranhado de capim em que se escondia o desconhecido. Deu-se conta no momento, que se tratava de um pangolim, vinham-lhe à memória, imagens de vários animais sobre quais aprendera nas aulas, e agora tentava distingui-lo dos outros.  
− O professor tinha dito que se chamava pangolim. Para o espanto dela, o pangolim emitiu algumas palavras:
− Não me faça mal, sou um amigo. Tratou de chegar mais perto e saber mais. Aos poucos o medo e receio se desfizeram.
A partir daquele dia, aos poucos, tornaram-se amigos. E assim o farol, passou a ser o ponto de encontro. O que era um acaso, passou a ser frequente, ali brincavam e jogavam nas horas livres, contando cada um, histórias do seu mundo, os encontros eram secretos, pois segundo orientações dos mais velhos “não deviam brincar com desconhecidos”. Assim, guardaram esse segredo a sete chaves.
Havia passado mais de três meses desde o último encontro, para a inquietação da Kianga. Embora com ausência do seu mais novo amigo, continuou a frequentar a colina e o farol, onde se deliciava com frutos da época como massalas e canhú, também com a agradável vista do mar.
A colina era um lugar de incomum beleza. Para além do farol, também havia dunas que chegavam a cerca de 15 metros de altura, com camadas de vegetação rasa, com flores escarlates, que apenas ali cresciam, fazendo ser motivo de comentários variados. “É um lugar estranho, o melhor é que ninguém vá la”, diziam os mais velhos; facto que não era levado a sério pela criançada. Ignoravam, e cada dia, a colina se tornava mais famosa e lugar preferido para as brincadeiras de outros meninos, antes e depois das actividades escolares. A época chuvosa, apesar de curta, e de chuvas abundantes, quando estas caíam, era sinal de boa época para sementeira e consequentemente excelente colheita, dias de festa e de muita alegria. E assim foi nos meses seguintes, entre o intenso sol, calor e chuvas. O pangolim que vivia distante da povoação, aparecia sempre nas manhãs frescas, quando ainda as nuvens não inundavam o céu limpo, em contraste, o verde reluzente dos arbustos, da folhas das árvores que apenas ali eram possíveis avistar. Para Kianga, a queda da chuva não era apenas isso, mas algo mais, e relacionava-se com a chegada de Mabeco.
Embora tudo corresse bem, e se tornassem mais próximos, o facto de o Pangolim andar ausente nos primeiros meses do ano, não a deixava tranquila, tinha que descobrir o que acontecia. Algumas pessoas do povoado assim como os parentes da Kianga, ficaram a saber que havia um animal que rondava por ali, no que alertaram a que todos evitassem andar por caminhos desconhecidos, estes acreditavam que os pangolins estavam ligados a maus agoiros e uma ligação com eles era como condenar o destino ao fracasso, atraindo azar para a comunidade, contestado por Kianga, pois Mabeco nunca tinha causado algum mal, desde que se conheceram, conviviam com tranquilidade e harmonia mas por insistência dos pais, prometeu fazer algo...
Estava uma manhã fresca, sem raios de sol, por cima de toda folha ainda via-se as gotas de água da chuva do dia anterior. Mabeco decidiu pela primeira vez, sair do quintal para visitar a vila. Houve um encontro ao acaso, pelo estreito caminho, ladeado por massaleiras, que levava Kianga à escola. Pararam o passo, tendo-se cumprimentado e com desânimo atirou ao seu novo amigo, − olha, não devemos brincar sempre, sabes que muitos não concordam com isso. 
– Não há o que temer minha amiga, ripostou Mabeco, por acaso fizemos algo incorreto? Magoei-te? A nossa amizade é nossa amizade, e ponto final, desculpa, devo discordar de ti.
− Bom, é melhor esquecer o que nos entristece, vamos sim aproveitar o dia; vês como está bonito o mar? 
− Sim, está mesmo, gosto muito deste lugar − ripostou. Eu não gostaria de sair daqui para um outro lugar, e digo mais. Vou convencer o meu pai que não fazes mal algum e quem sabe até te deixar viver aqui sempre − ao que concordou Mabeco, fazendo vibrar o seu corpo em escamas, trançadas com tamanha mestria da natureza.
Mabeco não mais tocou no assunto, apesar dos comentários que andavam na boca de todos, embora assim estes mantinham uma firme amizade. Mas logo que a época chuvosa caminhava para o fim, e os sinais apareciam, os campos que de verde se enchiam, começaram por ficar secos, os rios que andavam a transbordar meses antes, agora via-se as margens em bancos de areia. Por outro lado a vista do mar mudava de cara. E mantiveram a sua amizade, tendo conservado o lugar no quintal do farol e a sua visita sempre a coincidir com o verão e a época chuvosa.

sexta-feira, 8 de março de 2019

[0054] Nuno Rebocho, mais uma história

Narrando histórias de bichezas, o autor recorda “vinganças” de búfalos feridos e delas retira ensinamentos para o dia-a-dia dos humanos. A reter. 


O BÚFALO FERIDO

Trazia a espingarda presa às mãos. Deitada. A espingarda era menino ao colo. O caçador caminhava no passo saltitante dos caçadores, a espingarda dava afoiteza. Apesar disso, as cobras eram de recear.
Neste jeito, o homem deu de caras com o búfalo. Estancado na savana, o animal ostentava hastes e pastava. E tinha a modesta importância de ser búfalo.
O caçador alçou a arma. Perfilou a mira no enquadramento. Contou até três sem tremura. E disparou. Todavia, o búfalo, ruminando ervas, mexeu-se no momento decisivo.
O tiro de morte ficou em ferida. O ruminante levantou-se sobre os traseiros, escoicinhou, corrida doida mato adentro. Aos berros.
Ainda o caçador apostou no trote atrás da fera. Debalde. O búfalo escamoteou-se entre a floresta de ramos. Era corrida condenada, roupas rasgadas nas sebes, carne ferida nos picos herbáceos. Patinou nas lânguas.
Bem que barafustou o homem do tiro mal dado. Bem que se ufanou, entre dois golos de álcool, da pontaria. E por meia dúzia de dias, o búfalo foi tema para lupanares e cervejarias. Depois, assunto morto, que história de caça fica episódio.
O búfalo, dilacerado no couro e nas carnes, não se refez com duas lambidelas de língua milagreira. Remoeu a mastigar vinganças: histórias do mato dizem que são assim os irracionais. E não esqueceu. Plantou-se no local do drama, ciente de que o criminoso voltaria ao lugar fatídico. Até que o caçador retornou à savana.
O búfalo lá estava. Cheirou-lhe a cútis, cornos em baixo. Atirou-se em galope. Marrou. Surpreendido, o caçador foi atirado ao ar, deu uma cambalhota. Morreu sobre o capim. O búfalo ainda lhe aspirou o corpo estendido antes de se internar no mato.
- Pobre homem. Que mais curta é a memória dos caçadores do que a daqueles que por eles foram perseguidos.

terça-feira, 5 de março de 2019

[0053] Um felino de Nuno Rebocho

O autor recolhe na vida animal fábulas que alimentam o comportamento dos humanos e busca nelas conclusões para o dia-a-dia: por exemplo, o que em situações extremas deve valer mais, o amor à liberdade (implique o que implique para se obtê-la) ou as comodidades de um estar adaptado à sujeição que lhe retira essa liberdade? Tudo tem vantagens e inconvenientes… Mas a liberdade é a liberdade.


O GATO MOISÉS

O gato foi achado em noite de chuva. Estava ferido, encharcado, esfomeado. Tomaram-no ao colo, levaram-no para casa, alimentaram-no. E deram-lhe nome doméstico: Moisés, em memória das circunstâncias do achamento.
Ao desvelo dos donos, Moisés ganhou banhas, gato anafado, ronronante e dorminhoco. Luziu o pêlo. Dias felizes aqueles em que, entre pele e ossos, carne e gordura se concentraram. 
Refez forças e com elas a perceção da disciplina caseira: o caixote da serradura, a comida em horas certas, o chamamento dos donos, a obrigação de sofrer carícias e de ronronar. Habituado à rua, à força de não gostar, Moisés indispôs-se.
Rondou a janela, cismou por detrás dos vidros a saudade da liberdade. Esfregava o focinho nas vidraças. E, assanhado, começou de revirar as unhas às festinhas dos donos. Teve castigo de chinela.
Havia, em sua índole, natural gratidão. Ingrato não era. Mas não nascera animal doméstico.
Certo dia apanhou a porta de casa aberta e esgueirou-se de um salto. Desceu as escadas em corrida e retomou a rua. Miou em apelo às gatas: “estou de volta”.
Reconheceu terrenos, assenhoreou a rua que era aquela, efetivamente, a sua casa. Bem que os donos deram pela falta e o procuraram de porta em porta:
- Moisés, bche, bche, bche, Moisés.
Moisés, nada.
À noite trepou aos telhados. Já sem nome. Miou trinados lúgubres, eróticos. Mostrou-se às gatas. Uma veio. Mirou-lhe o pelo listrado, cores fulvas e brancas. Acariciou-o com o focinho. Lambeu-o. Miaram em conjunto.
De súbito, horror! A gata deu um salto. Descobrira o estigma da vida doméstica, da civilização, estampado para sempre no corpo do suspirante. Era capado. 
Numa fúria, sovou-o. E o gato que fora Moisés, fugiu. Ferido, em sangue, escondeu-se debaixo de um caixote. E linguou os arranhados.

sexta-feira, 1 de março de 2019

[0052] António Rosa, de novo, e um rádio "afogado"

RÁDIO

Hoje os jovens exibem, perante os seus pares, os artigos de marca como prova do seu estatuto social para fazerem prevalecer a sua supremacia e marcar a sua posição dentro do grupo. Não estudei sociologia para poder interpretar este fenómeno, mas a verdade é que ele já não é novo. No meu tempo de rapaz já assim era. Não havia a disputa das marcas, porque nem todos os possuíam, mas do próprio bem em si.
Recordo-me de ouvir o meu colega JF dizer que tinha um rádio transistorizado a pilhas, nesse tempo, há mais de meio século, apenas com onda média, que levava para a cama onde ficava, nos domingos de manhã até mais tarde, a ouvir música debaixo dos lençóis. Eu imaginava como isso deveria ser agradável, como deveria ser bom.
Chegaram as férias escolares e fomos acampar para a margem do Guadiana, hoje já submersa pela barragem do Alqueva. Pedimos uma tenda de campanha e emprestaram-nos uma cozinha de campismo, sem fundo nem forro, mas mesmo assim serviu.
E lá fomos nós, de sacos às costas, que nesse tempo ainda se não usavam mochilas, para uns dias de lazer com muitas expectativas de boas pescarias. O sítio escolhido, na foz do Lucefecit, era extremamente aprazível, com boas sombras de chorões, um moinho nas proximidades e um terreno chão, sem irregularidades e pleno de grama rasa que permitia bom assento para a tenda. 
Eu, o meu amigo HC e o meu amigo JF, depois de descarregarmos as bagagens fomos dar uma pequena volta de reconhecimento pelas redondezas. Debaixo de um frondoso chorão cuja rama pendia até à água escontrámos um barco escondido. Era uma chata, de madeira, com todo o equipamento necessário, os remos e uma lata para retirar a água, que sempre costuma entrar. Ficámos intrigados com a descoberta, mas por pouco tempo, pois logo apareceu um indivíduo mal aparentado, com um aspecto andrajoso e mais ainda, com apenas uma perna, sendo a outra substituída por uma muleta que apoiava debaixo do braço e que não lhe retirava mobilidade nem destreza de movimentos.
Junto seguiam-no dois cães, qualquer deles tão mal encabelado quanto o dono. Ouviam-se os chocalhos de ovelhas que não deveriam estar longe. Depois de uns cumprimentos assim por cima da burra, o sujeito foi à pergunta crucial: ao que vínhamos? Entendendo que não havia perigo quanto aos nossos propósitos, passou a esclarecer que poderíamos estar à vontade, como se fosse o dono e senhor dos terrenos. Avisou ainda que não nos assustássemos se, durante a noite, ouvíssemos barulho de algum camião a trazer alguma carga para dentro do moinho. Ficámos a olhar uns para os outros estupefactos, pois nem estrada havia.  Como chegaria ali um camião, a descarregar o quê? E porquê à noite?
Ainda assim, o HC tomou a iniciativa de lhe perguntar se era dono do barco escondido e se o poderíamos usar para pescar um pouco mais longe da margem. É claro que sim, se tiverem cuidado, foi a resposta. O cuidado não era com a nossa integridade física, mas com a chata, não fossemos nós afundar parte do seu ganha-pão.
O nosso amigo JF tinha levado o seu rádio, como não poderia deixar de ser, mas nós nem sequer tínhamos autorização de lhe tocar. Apenas ele, dono, podia ligar, desligar, aumentar ou diminuir o som daquela maravilha da tecnologia de então, que até tinha uma caixa protectora de cabedal.
O meu amigo HC, que Deus lá tenha, era extraordinariamente bem-disposto e ardilou de imediato uma partida para inquietarmos o JF. No dia seguinte, depois do almoço, fingimos estar a dormir a sesta, o que levou o JF a ir pescar sozinho para uma zona sossegada do rio a uns escassos oitenta metros da tenda. Foi a ocasião certa para levar à prática o nosso plano. Fomos à tenda buscar o rádio, atámos-lhe um fio de coco de cerca de dois metros à asa e fomos de imediato para o barco, com a maior descrição e silêncio possíveis.
O HC, com o seu enorme corpanzil, deitou-se na proa de barriga para o ar, retirou o rádio da caixa, colocando-o no fundo do barco, ficando com a caixa de cabedal em grande destaque sobre a barriga. Na mão segurava o fio de nylon a ela atado. Eu peguei nos remos e fui deslocando o barco, muito de mansinho para não fazer barulho, até ao local do pescador. Já perto, foi ligado o rádio, no fundo do barco, em alto som para provocar a ira do JF.
Não me lembro de ter ouvido na minha vida tanto palavrão seguido. Então, para levar a provocação ao cúmulo, o HC disse: «- Estás a gritar porquê? Por causa desta porcaria?» e deitou a caixa para a água, calando discretamente o rádio.
JF atirou a cana para o lado e lançou-se rapidamente à água, vestido e pronto, para salvar a sua jóia.
Ficou dois dias sem nos falar.