Do escritor moçambicano Mauro de Brito chegam a “Contos da Tinta Permanente” estes segredos da época da chuva. Para saborear com deleite.
SEGREDOS POR BAIXO DA CHUVA
Foi no quintal do farol abandonado no topo de uma verde colina feita em dunas, que a Kianga e o pangolim Mabeco se deram a conhecer, no habitual passeio da manhã da menina Kianga, que era feito a caminho da escola.
Entrou pelo edifício, que há anos tinha sido abandonado, ficou a fingir ver baleias e outros animais do mar, anunciando ser uma grande capitã e que estava ali para pôr ordem nas coisas, que o mundo lhe parecia estar ao avesso. Junto à janela, com seus olhos redondos e vivos, pôs-se a contemplar o sol abraçando a terra. Aconteceu que apeteceu-lhe ir ao quintal, onde havia algumas árvores de fruta e um capinzal, de onde viu distinguir-se do verde, um conjunto de escamas dispostas em camadas em tons de castanho claro, instantes depois dois pequenos olhos chamaram mais a sua atenção, sem muita demora, o desconhecido mexeu-se e enrolando-se num repente; primeiro houve um susto por parte da rapariga, mas depois deixou-se ficar um instante, em observação e esperava alguma outra reacção.
Ao contrário do que ouvia, decidiu aproximar-se e ver de perto, tratou de desmanchar o emaranhado de capim em que se escondia o desconhecido. Deu-se conta no momento, que se tratava de um pangolim, vinham-lhe à memória, imagens de vários animais sobre quais aprendera nas aulas, e agora tentava distingui-lo dos outros.
− O professor tinha dito que se chamava pangolim. Para o espanto dela, o pangolim emitiu algumas palavras:
− Não me faça mal, sou um amigo. Tratou de chegar mais perto e saber mais. Aos poucos o medo e receio se desfizeram.
A partir daquele dia, aos poucos, tornaram-se amigos. E assim o farol, passou a ser o ponto de encontro. O que era um acaso, passou a ser frequente, ali brincavam e jogavam nas horas livres, contando cada um, histórias do seu mundo, os encontros eram secretos, pois segundo orientações dos mais velhos “não deviam brincar com desconhecidos”. Assim, guardaram esse segredo a sete chaves.
Havia passado mais de três meses desde o último encontro, para a inquietação da Kianga. Embora com ausência do seu mais novo amigo, continuou a frequentar a colina e o farol, onde se deliciava com frutos da época como massalas e canhú, também com a agradável vista do mar.
A colina era um lugar de incomum beleza. Para além do farol, também havia dunas que chegavam a cerca de 15 metros de altura, com camadas de vegetação rasa, com flores escarlates, que apenas ali cresciam, fazendo ser motivo de comentários variados. “É um lugar estranho, o melhor é que ninguém vá la”, diziam os mais velhos; facto que não era levado a sério pela criançada. Ignoravam, e cada dia, a colina se tornava mais famosa e lugar preferido para as brincadeiras de outros meninos, antes e depois das actividades escolares. A época chuvosa, apesar de curta, e de chuvas abundantes, quando estas caíam, era sinal de boa época para sementeira e consequentemente excelente colheita, dias de festa e de muita alegria. E assim foi nos meses seguintes, entre o intenso sol, calor e chuvas. O pangolim que vivia distante da povoação, aparecia sempre nas manhãs frescas, quando ainda as nuvens não inundavam o céu limpo, em contraste, o verde reluzente dos arbustos, da folhas das árvores que apenas ali eram possíveis avistar. Para Kianga, a queda da chuva não era apenas isso, mas algo mais, e relacionava-se com a chegada de Mabeco.
Embora tudo corresse bem, e se tornassem mais próximos, o facto de o Pangolim andar ausente nos primeiros meses do ano, não a deixava tranquila, tinha que descobrir o que acontecia. Algumas pessoas do povoado assim como os parentes da Kianga, ficaram a saber que havia um animal que rondava por ali, no que alertaram a que todos evitassem andar por caminhos desconhecidos, estes acreditavam que os pangolins estavam ligados a maus agoiros e uma ligação com eles era como condenar o destino ao fracasso, atraindo azar para a comunidade, contestado por Kianga, pois Mabeco nunca tinha causado algum mal, desde que se conheceram, conviviam com tranquilidade e harmonia mas por insistência dos pais, prometeu fazer algo...
Estava uma manhã fresca, sem raios de sol, por cima de toda folha ainda via-se as gotas de água da chuva do dia anterior. Mabeco decidiu pela primeira vez, sair do quintal para visitar a vila. Houve um encontro ao acaso, pelo estreito caminho, ladeado por massaleiras, que levava Kianga à escola. Pararam o passo, tendo-se cumprimentado e com desânimo atirou ao seu novo amigo, − olha, não devemos brincar sempre, sabes que muitos não concordam com isso.
– Não há o que temer minha amiga, ripostou Mabeco, por acaso fizemos algo incorreto? Magoei-te? A nossa amizade é nossa amizade, e ponto final, desculpa, devo discordar de ti.
− Bom, é melhor esquecer o que nos entristece, vamos sim aproveitar o dia; vês como está bonito o mar?
− Sim, está mesmo, gosto muito deste lugar − ripostou. Eu não gostaria de sair daqui para um outro lugar, e digo mais. Vou convencer o meu pai que não fazes mal algum e quem sabe até te deixar viver aqui sempre − ao que concordou Mabeco, fazendo vibrar o seu corpo em escamas, trançadas com tamanha mestria da natureza.
Mabeco não mais tocou no assunto, apesar dos comentários que andavam na boca de todos, embora assim estes mantinham uma firme amizade. Mas logo que a época chuvosa caminhava para o fim, e os sinais apareciam, os campos que de verde se enchiam, começaram por ficar secos, os rios que andavam a transbordar meses antes, agora via-se as margens em bancos de areia. Por outro lado a vista do mar mudava de cara. E mantiveram a sua amizade, tendo conservado o lugar no quintal do farol e a sua visita sempre a coincidir com o verão e a época chuvosa.