quinta-feira, 14 de maio de 2020

[101] Novo colaborador nos CTP, José Manuel Oliveira leva-nos até Marte

MARTE
«Saber sem imaginação não passa de fita gravada.»
Agostinho da Silva

José Manuel Oliveira
“Então, um deserto vermelho...”

Estou de férias em Ars Vallis, um ponto no hemisfério norte de Marte, o qual não se consegue distinguir daí. Vim à boleia, através de uma nave chamada “Pathfinder” lançada pelos Estados Unidos em 1996 e torna-se difícil, mesmo penoso, procurar explicar tudo isto, como o consegui, quantas vezes tive de passar despercebido através de vários gates, convencer o chefe da NASA, um velho amigo meu da tropa, ou se estou a fantasiar  (para os mais cépticos), ou a aldrabar (para os mais sérios e ajuizados), porém o que é certo é que uma parte de mim continua por lá, tendo a outra regressado aqui à Terra no ano de 2001, daí o meu agora crescente fluxo de escrita enviado aos amigos ultimamente, diante de uma situação bastante mais caseira, pelos tristes e aborrecidos motivos que já todos conhecem.

Mas o mais interessante do caso, é que, enquanto por lá andava, enfiado numa tenda em formato de iglu, dias e dias a fio, alimentado a tabletes de amendoim, pastilhas vitamínicas e sumo de beterraba, a fazer chi-chi para uma garrafa de água das pedras, e já meio enfastiado por fixar o olhar durante horas e horas num pequeno écran que varria consecutivamente o espaço em redor de Andrómeda, procurando o mais pequeno indício de vida inteligente, (sei que vocês estão aí) aconteceu qualquer coisa de inesperado que, primeiro me deixou atónito e estarrecido, para logo de seguida me fascinar e a respeito do qual ainda hoje não me encontro lá muito bem certo, acerca da sua qualidade física, onírica ou imaginária.

Encontrando-me eu certa noite a dormitar, -  um sono dúbio muito ao de leve - surgiu diante de mim no interior da tenda, uma coisa que definiria mais ou menos como um quadro ou um objecto de Duchamp, entre o chamado “moinho de café” e um espelho com pernas: a coisa era como se fosse uma imagem holográfica que parecia palpitar, umas vezes de contornos mais nítidos e definidos, outras vezes parecendo quase evanescente a ponto de se esbater de encontro às paredes da tenda, e apresentando bem no seu centro um mostrador através do qual pareciam surgir, primeiro muito rapidamente uns hieróglifos, antecedidos por uns gatafunhos saltitantes prateados (a coisa procurava ler os meus pensamentos) e logo de seguida uma mensagem bastante nítida escrita em inglês correcto:  “Follow Me Now!”. Não tive qualquer dúvida de que se tratava de uma ordem superior e aceitei o desafio. Ergui-me lentamente, como se uma estranha e hipnótica força comandasse os meus movimentos,  procurei o fato pressurizado que utilizava durante curtos passeios no exterior, (há muito que estou habituado a andar mascarado) e saí para aquele deserto vermelho que já conhecia razoavelmente das anteriores imagens enviadas pelas naves “Viking” – ou julgava conhecer – antecedido da coisa que afinal de contas poderia muito bem ser mais um robot enviado para ali há muito, uma jigajoga mais actualizada, afinal nada de espantoso para os nossos dias, embora não tivesse sido informado daquela eventualidade por parte dos meus mecenas da Terra, nem jamais alguém me tivesse apresentado a criatura.

Para mim, Marte continuava a ser aquilo que sempre fora até aí, tanto para robots dotados de excelentes câmaras, como para os experts aí em baixo,  isto é, um infindável deserto de torrões vermelhos, uma montanha considerada a maior do Sistema Solar, o “Monte Olimpo”, que era um vulcão de uns 27 Km de altitude, mas que não se encontrava perto dali e, claro, imensas crateras e canais que indiciavam já ter existido água à superfície, pouco mais se avistando. Era considerado até agora como um dado adquirido não existir de todo vida em Marte e por conseguinte, aquela criatura só poderia ter saído de alguma linha de montagem na Terra... 

Segui então de perto o meu guia, estava fresquinho cá fora (o meu visor indicava uns vinte e tal negativos) até que passados cerca de seiscentos metros em relação à minha tenda, aquela coisa parou, iluminou-se-lhe subitamente o visor, surgindo bem no seu centro uma figura geométrica de alguma complexidade, várias e coloridas tonalidades, pulsou uma luz intermitente no centro de um círculo atravessado por várias rectas e, como que por milagre, do solo ergueu-se um enorme portal (tampa rectangular da côr do ferro), deixando à vista uma abertura do mesmo formato. Aproximei-me, e foi então que obtive a visão daquilo que se me afigurou ser uma enorme cidade brilhante e colorida, a qual se estendia ao longo de um enorme vale e perfeitamente encaixada numa colossal cratera rochosa, (se desejam uma imagem aproximada que vos possa ajudar, procurem visualizar aquele quadro do Lima de Freitas “Galafura”). Um caminho que me pareceu empedrado, descia suavemente até lá, pelo que a desengonçada criatura me fez seguir por aí os seus passos.

Digamos que se encontrava a cerca de dois quilómetros, o que estava perfeitamente dentro das possibilidades do meu equipamento. Durante o trajecto procurei, em inúmeras ocasiões, entabular qualquer espécie de diálogo na língua inglesa com o meu guia, porém sem qualquer resultado. Até que chegámos diante de uma coisa que se assemelhava a um pórtico descomunal, tendo apenas observado em toda a minha vida algo de semelhante em fotografias do antigo Egipto, ou na cidade submersa de Herácleon. A coisa uma vez mais, estacou diante do que parecia ser uma entrada em ferro, os seus circuitos brilharam intensamente e, abrindo-se um portão, surgiu do seu interior uma figura humana de mediana estatura, barba hirsuta e cabeça coberta por uma espécie de boina negra e longa que parecia de flanela. Tratava-se de um homem que segundo as minhas estimativas aparentava andar na casa dos seus trinta e tal anos, aspecto saudável, trajando à moda do Renascimento, pelo menos assim me pareceu, apesar do meu estado mental confuso e quase incapaz de reter quaisquer espécie de pormenores ou detalhes. Quando me voltei para trás, o meu “guia” mecânico pura e simplesmente tinha desaparecido, o que não só aumentou o meu desconforto, como me levou a despoletar diversos pensamentos ao mesmo tempo, nomeadamente a calcular a forma de regresso à minha tenda na superfície, fazendo o caminho de volta, quem me abriria a enorme passagem no solo e o que iria suceder no entretanto. Todas essas coisas quase me faziam estalar a cabeça, até que o meu hipotético anfitrião, percebendo a confusão em que me encontrava, simulou um gesto de forma a fazer-me entender que agora podia retirar o capacete sem qualquer perigo, apontando para si próprio e desenhando um gesto largo p´lo ar à sua volta. Hesitante, lá me convenci, ficando com a cabeça a descoberto. Nada se passou, era como se estivesse na tenda, e o ar parecia-me de facto respirável. Foi então que, aproximando-se de mim me estendeu a mão determinado, olhar franco e amistoso e atirou num português correcto: “Bem-vindo a Marte!”



Apertámos as mãos, atirando-lhe eu logo de seguida: “Agradecido. Mas quem é você, o que faz aqui e o que significa tudo isto? - “o meu nome é Gaspar, Gaspar Corte Real, e o que aconteceu é uma longa história, que poderei certamente contar-lhe mais daqui a pouco...”.  Mas, oiça, eu tenho pouco tempo de autonomia, - procurei explicar-lhe - eu vivo em função deste equipamento e tenho de regressar à minha tenda, na superfície, dentro em pouco. Compreende isto ? ” – “Acalme-se , tudo se arranja.Siga-me!”. 

Foi então que percorremos alguns metros e penetrámos no interior de um edifício idêntico a muitos outros existentes na Terra, como se se tratasse de algo entre um enorme refeitório e um snack-bar. Mandou-me sentar numa das muitas mesas, perguntou-me se desejava tomar uma bebida ou comer, ao que eu lhe respondi que não, muito obrigado, levantando-se não obstante, aparecendo logo de seguida acompanhado de dois copos de rum escuro. Colocou um dos copos na minha frente e disse - “Perdão, mas espero que aprecie isto.” – “Não tenho bebido ultimamente, como deve compreender, mas está bem, aceito de boa vontade.”  

Olhei em meu redor, tendo verificado com algum espanto que nas mesas à volta, embora a uma distância apreciável, assim como ao balcão, se encontravam as mais díspares figuras, trajadas das mais estranhas maneiras, homens e mulheres, as quais dificilmente poderia de um só golpe de vista, definir com exactidão. Algumas dessas figuras fumavam até desalmadamente.

O meu interlocutor fixou bem o seu olhar no meu e atirou: 

- Você estudou alguma coisa daquilo que vocês chamam na Terra, História?

- Mais ou menos, sim!

- Deve recordar-se então que nos finais do século XV os Corte Real, empreenderam diversas viagens até um local chamado de Terra Nova, cerca do Polo Norte da Terra!? Pois bem, eu pertenci a essa mesma família, primeiro foi o meu pai acompanhado por alguns amigos, o João Fernandes, o Álvaro Ornelas, Pedro Barcelos entre outros, que rumaram a essas regiões com algum sucesso, tendo regressado todos bem, e mais tarde, passados um ou dois anos, fui eu que acompanhado pelo meu irmão Miguel, resolvemos procurar ir mais além um pouco. Nós, os portugueses, sempre assim fomos. Aconteceu que conseguimos atingir um local onde havia um imenso deserto de gelo, tendo o nosso navio encalhado irremediavelmente. Ao fim de uma quinzena de dias, encontrávamo-nos num estado lamentável, já sem mantimentos e água, tendo parte da tripulação morrido ali mesmo no local. Tendo ficado inanimado, quando acordei, o meu irmão Miguel tinha desaparecido, não o voltando a ver. Foi então que vi aquilo, era como uma enorme cidade que pairava a uns metros do chão, naquele caso, do gelo. Emitia um clarão de tal intensidade que sempre pensei que iria ficar cego ali mesmo. Caí de novo inanimado, e quando acordei, não tinha a certeza se estaria morto ou vivo, pois encontrava-me deitado numa cama de tal maneira confortável, como nunca tinha visto ou sentido em toda a minha vida. Olhei em redor e pareceu-me estar num quarto fechado sem janelas para o exterior, paredes claras ligeiramente iluminadas, embora sem qualquer fonte de luz à vista,  sentindo apenas um leve e distante zunido, era como se estivesse numa cripta. Abriu-se então uma escotilha e foi então que eles vieram até junto de mim, acalmando-me, e procurando explicar-me não sem algumas dificuldades inerentes a conceitos científicos para mim (homem do sec XV) totalmente desconhecidos, como podemos saltar as chamadas linhas temporais que nos separam, atravessando épocas históricas tão remotas e diferentes, assim como a consecutiva confusão e perturbação que isso nos poderá causar, ao ponto de nos confrontarmos com situações e fenómenos de uma tal singularidade e magnitude, jamais por nós (humanos) imaginados. São os chamados “universos paralelos”. Já lhe direi quem eram estes «eles». Existe por exemplo uma teoria, que diz termos todos nós em qualquer recanto do Universo, um chamado “sósia”, o qual, mais tarde ou mais cedo irá inexoravelmente cruzar-se connosco. Irei em breve apresentar-lhe o seu, pois ele também se encontra por cá. Nada tema porque é o outro eu de si, já tive o meu próprio confronto e sobrevivi, trata-se de uma curiosa experiência, mas vamos guardá-la para mais tarde visto você ter de regressar em breve à sua tenda. 

Agora, vou contar-lhe como tudo isto funciona, visto você estar um bocado confuso: pois bem, levanta-se da mesa e vais buscar mais dois runs, acenando de caminho a uma jovem loira de tranças,  deveras atraente e de aspecto viking: 

Estas criaturas, tal como aquela que o trouxe até aqui, são máquinas, e foram elas que me resgataram igualmente da Terra, tal como já lhe relatei, quando do meu naufrágio ao Norte daquilo que vocês hoje chamam Estados Unidos. Têm a capacidade de tripular e conduzir naves como a que lhe descrevi há pouco, porém apenas no interior do nosso Sistema Solar, as de longo curso, isto é, do Espaço Exterior, essas é que são tripuladas pelos Senhores, chamados Santini, assim como de comunicar com quem entendam, na própria linguagem do contactado, tratando-se de máquinas de alguma complexidade. Assim me descreveram - o mesmo acontecendo em relação a todas as pessoas que aqui se encontram -, o que significa tudo isto e quem são os seus superiores hierárquicos. De facto eles encontram-se ao serviço de uma Civilização situada a vários anos luz daqui, a qual estuda minuciosamente a espécie humana em diferentes ciclos e épocas, sempre em plena liberdade. São máquinas que foram postas ao nosso serviço, podemos dizer “dóceis” embora se encontrem totalmente isentas de sentimentos, claro.

Foi assim que ficámos a saber que Marte já foi a nossa casa, quando os continentes da Terra ainda se encontravam em fase de definição, sendo a nossa primeira colónia lá instalada, situada no Continente da Atlântida, o qual mais tarde se afundou. Sim nós humanos somos muitíssimo anteriores à Terra, assim como a história da nossa génese, é muitíssimo diferente daquela que vos é ensinada, havendo por aqui ainda vestígios arqueológicos - como pôde verificar quando o robot o conduziu até à entrada da cidade  – desses tempos. 

Aqui todos nos encontramos instalados como se estivéssemos numa moderna cidade da Terra, tendo sido recriada uma ambiência perfeitamente normal para todos, visto eles desejarem intensamente que todos sejam felizes. No entanto esta é apenas uma entre outras grandes cidades existentes no interior de Marte, lamento não podermos visitar as outras – toma mais um? desculpe-me.

- Nem mais nada, por favor peça à máquina para me vir buscar imediatamente, tenho apenas mais quinze minutos de autonomia. Não sei que dizer...

- Muito bem, peço-lhe só que não fale sobre isto quando comunicar com a NASA, de contrário estaríamos todos perdidos. Confio em si, voltaremos a encontrar-nos daqui por dois dias terrestres, gostaria de o apresentar ao seu sósia. Agora vamos. 

Sem sobressaltos, acompanhou-me até à saída, e, para meu alívio imediato, lá estava o robot que me levou de novo e pelo mesmo caminho, até à superfície.

Passaram-se cerca de três dias, durante os quais aproveitei para confirmar através de intensa pesquisa, as viagens dos irmãos Corte Real, tendo até obtido a curiosa informação de que o Miguel, teria sido mais tarde encontrado na zona de Providence, como chefe de uma tribo de índios, porém tive a vaga sensação de que Gaspar não queria tocar no assunto e não insisti em lhe falar no caso. Havia ainda um irmão mais velho, o Vasco, o qual ainda tentou ir no encalço dos irmãos, contudo parece ter sido impedido por parte do rei.

Chegou o nosso amigo robot durante uma tarde em que eu resolvi dormir uma sesta, e, uma vez mais, emitiu o desejo por parte de Gaspar, de me voltar a ver agora, informando-me  disso desta vez através do seu sistema sonoro e em bom português.

- Muito bem, disse satisfeito, vamos então, irei desta vez regular o equipamento para seis horas terrestres e podemos ir. 

Tal como anteriormente, Gaspar Corte Real veio receber-me ao portal, cumprimentámo-nos e lá seguimos caminho, desta vez até um outro edifício mais pequeno, tal como um gabinete médico. 

- Bom, irei agora apresentar-lhe o seu sósia, Jocé. Trata-se de uma experiência emocionante, e por conseguinte, procure manter-se firme e sereno. – formalizou um gesto em direcção à porta, e eis que surgi de lá eu, fora de quaisquer dúvidas, com o pequeno sinal negro que sempre mantive no pescoço, cabelo cortado curto (tipo astronauta), sorriso aberto e meio divertido, estende-me a mão e diz: José Manuel de Sousa e Oliveira, és tu mesmo, tal como imaginava.

Foi então que reparei naquilo. Tudo estava certo ao pormenor até ao mais pequeno detalhe, porém, com uma diferença, que me fez estremecer: o outro eu usava uma máscara a cobrir-lhe o nariz e a boca. E foi aí que decidi voltar novamente para a Terra. Levantei-me de um salto e gritei: “OH, NÃO! Mais máscaras, não!” E saí porta fora. Foi então que a minha mulher me acordou dando-me uma forte cotovelada. Estavas a sonhar ou foste outra vez à garrafa de rum?


1 comentário:

  1. Uma óptima história. Bem contada e envolvente. Li num ápice e fiquei com pena de que chegasse ao fim

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