domingo, 14 de junho de 2020

[102] Mais um conto de Sofia Cardoso, desta feita com asas a bater e zumbidos por todo o lado

Sofia Cardoso brinda-nos com novo conto, recentemente publicado na colectânea "À Volta da Fogueira",  pela Emporium Editora, de Almada

A MOSCA

Sofia Cardoso
A noite caíra. Festejos em cada recanto, atraiam corpos sedentos de apaziguamento. Na tenda, o fresco da noite tornara-se num hálito gelado. As constelações permaneciam mudas aos anseios dos humanos. Os insetos, enfrentavam a noite sem receios. Zumbidos cruzaram o ambiente. Os muscidae são dos insetos mais comuns, dada a sinantropia de algumas das suas espécies.

Ninguém parecia incomodado. A música, os fogos de artificio, o hálito a cerveja barata e morna, ofereciam um festim a cada um dos pequenos insetos que arriscavam a vida para que a sua prole sobrevivesse a mais uma noite, a outro dia.

Hematófaga - é próprio da sua natureza alimentar-se de sangue -, voou livremente durante algumas horas que lhe pareceram uma vida. A eternidade do ciclo, levou-a a concentrar-se. Contraiu as asas de modo a testar a capacidade de voo, zona superior bem posicionada, probóscide em posição final. O sistema de foco funcionou perfeitamente e nos últimos segundos a sintonia com a natureza atingiu o ponto mais elevado. De cócoras, um robusto espécime, tornara-se no recetor ideal. Nem chegou a ter qualquer tipo de pressentimento.

Muscidae é um dos insetos mais comuns, dada a sua sinantropia. Pousou ágil. Uma picada só. Pouco habituada ao contacto com o sangue dos audazes, jovens apaixonados e nobres de alma, caiu morta. Pouco elegante, mas missão cumprida. Morrera de barriga cheia e com um esgar de satisfação.

Se as moscas tivessem direito a ter sentimentos, hoje, este insignificante mas temido inseto sentir-se-ia realizado.

1 comentário:

  1. Uma história cheia de non sense, que me parece metáfora de muitos outros insectos que por aí atacam ufanos sem olharem às consequências

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